sábado, 10 de julho de 2021

"À escola o que é da escola. À vida o que é da vida"



"... educação que queremos" que traduz a visão do "futuro que queremos", 
e das "competências transformadoras" de que os alunos precisarão 
para tornar o “futuro que queremos” numa realidade.”  
OCDE, 2017, p. 7 (aqui).

 “Estamos enfrentando desafios sem precedentes (...)
Ao mesmo tempo, essas forças estão nos fornecendo 
uma miríade de novos oportunidades para o desenvolvimento humano (...).
As crianças que entrarão na educação em 2018 serão jovens adultos em 2030.
As escolas podem prepará-las para os empregos que ainda não foram criados, 
para tecnologias que ainda não foram inventadas, 
para resolver problemas que ainda não foram antecipados (...)” 
OCDE, 2018, 2 (aqui).

“À escola vamos para aprender aquilo que não ensinam noutro lugar” 
Fernando Savater, 1997, 77 (O valor de educar). 

Colega fez-me chegar um artigo de opinião do jornal Público de hoje com o título A ilusão educativa. É assinado pelo António Barreto, sociólogo que acompanho na análise que faz daquilo que, nos últimos anos, se tem designado (sem o ser) "educação para a cidadania" ou, como na última reforma do sistema de ensino português, se determina, "cidadania e desenvolvimento".

Eis o essencial do artigo, no qual destaquei algumas passagens:
uma das mais antigas e perenes ilusões: a escola tem o poder de formar as pessoas e transformar o mundo. Pelo que seria indispensável formar os jovens de hoje para serem os homens de amanhã. 
Com estes lugares-comuns na cabeça, há décadas que muita gente, políticos, educadores e outros profissionais, querem reformar a escola para formar cidadãos. Dos republicanos aos comunistas, passando por tecnocratas, anti-racistas, LGBTI, ambientalistas e outras variedades, todos partilham esta ilusão. 
Todos querem uma escola programática, que forme as elites, que garanta a igualdade entre todos, que seja a base da democracia e que ensine as pessoas a comportar-se como bons cidadãos. Todos ou quase todos querem que a escola substitua a família, os pais e os padres (...), uma escola programática que dê sentido à vida, uma escola com ideias e ideologia, uma escola feita para formar cidadãos, uma escola vocacionada para a formação integral do indivíduo, uma escola nacional e patriótica, uma escola que dê muito mais do que a instrução, uma escola que vá mais longe do que ler, escrever e contar, uma escola que forme cidadãos virtuosos, solidários, bondosos, honestos e democratas. 
Do mesmo modo, são muitos os que até hoje se exprimiram concretamente contra a escola neutra, a escola sem valores e a escola sem conteúdos de formação moral e política. É uma polémica conhecida. Curiosamente, os autoritários e os intolerantes exprimem-se contra a escola neutra. Desde sempre, as grandes correntes de pensamento, os movimentos políticos e os agrupamentos ideológicos se esforçam por propor uma escola que satisfaça os seus interesses particulares, disfarçados de interesses gerais e de bem comum. 
Os republicanos quiseram uma escola laica, pois claro, que afastasse a Igreja da educação. Os salazaristas lutaram contra a escola ateia e laica, defendiam a escola empenhada, nacionalista e católica (...). Os democratas querem absolutamente que a escola ensine a democracia e forme cidadãos exemplares. Os socialistas combatem por uma escola para a cidadania e para a solidariedade. Os fascistas querem uma escola para a grei e para a nação, valores eternos. Os comunistas querem uma escola que seja um viveiro de valores proletários. Os verdes querem uma escola ecológica e amiga do ambiente. Outros esquerdistas querem uma escola empenhada em valores, no multiculturalismo e no combate ao racismo. Outros finalmente, nas esquerdas e por outras bandas, vêem hoje na escola a grande arma para a igualdade e o livre arbítrio na escolha do género. 
Todos querem legitimar, através da escola, a sua ideologia, os seus interesses e os seus programas. Pretendem assim que a construção curricular transform[e] a escola em fábricas do “homem novo” (...) 
Como é sabido, cada vez que surge problema importante para o qual é difícil encontrar respostas e soluções, há sempre alguém que, no canto da página, ao fundo da sala ou na primeira bancada se exprime com sabedoria secular e banal: “o importante é a educação.” E acrescenta o lugar comum: “tudo começa na escola, a escola desempenha um papel muito importante.” 
Todos os regimes autoritários e partidos políticos intolerantes procuram criar uma escola (...) com programas políticos e com ideologia. Até há democratas que esperam o mesmo. 
No passado, a religião e moral cristã, a nação, a pátria, a república laica e o socialismo libertador ocuparam sucessivamente as primeiras páginas dos programas e dos currículos. Recentemente, com o mesmo afinco obsessivo e a mesma esperança (...): a cidadania, a democracia, a solidariedade, a tolerância, a ética republicana e a Europa (...). [À] luz das modas, novos valores se impõem: o anti-racismo, o género como construção e escolha, a ecologia, o ambiente e os direitos dos animais. Sem esquecer outras tarefas mais tecnocráticas que preenchem o caderno de encargos da escola contemporânea: a literacia financeira, a aptidão digital e o consumo. 
disciplina de cidadania, outra vez em debate público, serve para tudo, da Constituição ao sexo, passando pelas regras de trânsito. Ou ainda para, segundo o palavreado oficial, saúde, sexualidade, segurança rodoviária, empreendedorismo, voluntariado, igualdade de género, risco, direitos humanos, defesa, segurança, paz, educação financeira, educação intercultural, ambiente, Europa e consumidor… 
Ora, a escola contemporânea, com este programa, corre o risco de falhar todas as suas missões. As clássicas: escrever, ler e contar. As menos clássicas: desenvolver as artes e a cultura. As mais modernas: a competência profissional. E as moderníssimas: formar cidadãos exemplares (...). 
A escola como berço da virtude é um velho mito totalitário. A escola não é nem deve ser considerada uma incubadora de cidadãos bem comportados."
Se me é permitido, acrescento à lista de entidades doutrinadoras que refere estarem infiltradas na dita componente curricular, a que mais peso julgo ter no presente, não neste ou naquele país, região ou continente, mas a nível global: as grandes corporações financeiras

Fazem elas valer os seus interesses particulares através de organizações que traçam a régua e esquadro as linhas da educação que cabe à escola. Linhas que revelam duas faces: a face mais visível, ainda que enigmática, através do enorme conjunto de orientações e recomendações que publicam no sentido de influenciar os diversos sectores da sociedade; e a face (quase) invisível, através da pressão que exercem sobre os poderes políticos (em democracia, cada vez mais frágeis).

Entre essas organizações, como tenho explicado neste blogue, destaca-se a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económicoo Banco Mundial, a União Europeia, esta por referência à parte do mundo em que estamos, mas também a Unesco e Unicef. São elas que, de modo articulado, determinam, em grande medida o alinhamento ideológico que se solidifica nas designadas competências de "cidadania", expressão que está longe de se restringir ao que imaginamos que é do foro público, da civitas, entrando no foro privado e íntimo, moldando a essência da pessoa no que há de mais intocável e que só pode ser uma construção individual. Falo do que, à margem da religiosidade, podemos designar por "alma".

A cruzada para desenvolver competências de bem-estar e de felicidade (ver aqui) situa-se precisamente neste ponto.

Termina António Barreto com palavras a que devemos regressar:
"[A] escola dá o que de melhor pode dar: ferramentas, informação, instrumentos e conhecimento. Com a colaboração das artes, das "técnicas e da cultura. O resto pertence à família, à sociedade, às profissões, à televisão, às redes sociais, aos livros, aos partidos políticos, às associações, às igrejas, aos clubes, aos jornais, aos vizinhos e às autarquias."

Sendo que as palavras que seguem:

"À escola o que é da escola. À vida o que é da vida."

São praticamente as mesmas de Hannah Arendt, incluídas no ensaio de 1957, A crise da na educação:

"O domínio da educação deve ser radicalmente separado dos outros domínios (...). A função da escola é ensinar às crianças o que o mundo é, e não iniciá-las na arte de viver."

4 comentários:

Anónimo disse...

A escola é, em larga medida, uma artificialidade criada pelas sociedades modernas para permitir ensinar às crianças e adolescentes conhecimentos que vão para além do senso comum do dia a dia. Para saber enviar foguetões para Marte é preciso ter frequentado, com aproveitamento, escolas onde se ensina Física e Química, por exemplo.
Fazer, por força de lei, das escolas paraísos na Terra, de onde saem todos os anos cidadãos com alto perfil democrático e baixo perfil curricular, é sinal de que muitos ministros e secretários de estado da Educação não sabem o que fazem.
O saber não ocupa lugar!

Socorro, a minha mulher tem um blog disse...

António Barreto escreveu, portanto, um artigo cheio de lugares-comuns. Curiosamente não mencionou o ataque cada vez mais feroz que as corporações financeiras fazem às escolas.
A escola do saber ler e contar já não existe e o tempo que nos calhou viver é vertiginoso. Felizmente, o regresso ao passado não é nunca possível.
T. Biu

Helena Damião disse...

Prezado Leitor
António Barreto não usa lugares-comuns. Relembrou e sistematizou o que há tendência a esquecer ou negligenciar. Não é um regresso ao passado, é ter em conta o que precisamos de ter em conta para pensar, neste caso, a educação para a cidadania, que como educação ética, não pode deixar de ter lugar na escola, mas num registo educativo não doutrinal.
Cordialmente,
MHDamião

Ommm disse...

Críticas há muitas...
O problema centra-se nas soluções e, globalmente, são más, quando as há.
Concordo com o registo educativo não doutrinal, embora tenha alguma dificuldade em perceber que ética se proclama sem doutrina. Talvez a mesma que levou ao registo doutrinal... O fartote do caos.
O problema é haver Educação para a Cidadania como disciplina e não haver educação, nem cidadania. Que exemplos têm os alunos disso?
O mundo é um lugar-comum cheio de lugares-comuns. Dizê-lo também é comum. Tudo é artificial, artificialidade e artificialismo. Resta-nos a natureza e o silêncio.

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