quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

DARWIN ENTRE NÓS



Hoje é o dia Darwin, o dia em que se comemoram 200 anos do nascimento do grande sábio inglês. Assinalando o dia, pré-publico o meu prefácio do livro de Paulo Trincão, "O Português que se Correspondeu com Darwin", a publicar dentro de dias pela Gradiva, que versa a história da relação entre Darwin e o açoriano Arruda Furtado:

A ciência desenvolveu-se extraordinariamente no século XIX, mas, criada noutros lados, em Portugal foi chegando com atraso, por vezes mesmo com grande atraso. No século XIX assistiu-se à segunda vaga da Revolução Industrial, não só com o desenvolvimento das máquinas térmicas (é o século da termodinâmica) mas também e principalmente com o desenvolvimento das máquinas eléctricas e das telecomunicações (é o século do electromagnetismo). Portugal, se tinha acompanhado, graças à Reforma Pombalina, o triunfo da física de Galileu e Newton e o início da química e da história natural, foi ficando para trás na ciência enquanto importava a tecnologia. Foi para nós um século conturbado, em primeiro lugar com as invasões napoleónicas, depois com a independência do Brasil, a guerra civil e ainda com as muitas vicissitudes da monarquia constitucional.

A riqueza deixou nessa época de vir da conquista e do comércio para passar a vir da indústria e dos serviços, ambos os sectores baseados no conhecimento. Graças ao conhecimento científico, o desenvolvimento na Europa e na América do Norte foi então explosivo. Para isso foi indispensável um intenso processo de escolarização da população. Mas nós, que éramos um dos países mais ricos do mundo no início do século XIX, não tivemos nem alfabetização, nem ciência nem industrialização na medida suficiente, pelo que passámos rapidamente do topo quase para o fim da lista das nações do primeiro mundo. Em Portugal sempre, mais ou menos, melhor ou pior, se ensinou ciência, mas raras vezes se praticou ciência com um nível de excelência internacional. O nosso século XIX foi a esse respeito sintomático. Entre os cientistas portugueses desse século conhecidos no mundo científico talvez só tenham lugar o botânico Félix Avelar Brotero e o matemático Francisco Gomes Teixeira. A ciência, que traz o desenvolvimento, se chega imediatamente onde é feita, aos outros sítios demora a chegar... Por outro lado, o progresso das ciências e a revolução industrial foram acompanhados por desenvolvimentos no campo da filosofia e, em geral, das ciências humanas, que não tardaram a chegar cá (Eça de Queirós fala dos livros que chegavam a Coimbra vindos de Paris por caminho de ferro pelo “Sud- Express”). Deu-se, em Portugal, o caso curioso de alguma ciência dessa época ter chegado embrulhada em filosofia e ou em ideologia, por vezes bastante adulterada...

O caso do inglês Charles Darwin, que foi talvez o maior cientista do século XIX (apesar de não ter tido um impacto na vida quotidiana tão grande e imediato como outros como os físicos Faraday, Maxwell e Hertz), permite ilustrar de modo eloquente o afastamento português da ciência no século XIX. Darwin publica em 1859 a sua famosíssima obra “A Origem das Espécies” em Londres, capital de um dos países mais avançados e mais ricos do mundo. O biólogo da Universidade de Lisboa Germano da Fonseca Sacarrão chamou já a atenção, na sua obra “Biologia e Sociedade” (Europa-América, 1989), não só para a resistência às ideias darwinistas entre nós, o que não é de admirar dada a sociedade inculta, agrícola e religiosa que nós fomos durante muito tempo, mas, o que é pior, para a nossa indiferença ao darwinismo. A essa resistência ou a essa indiferença não será estranho o facto de a religião ter exercido uma enorme influência entre nós pois, para muitos autores, a selecção natural permitia dispensar a intervenção de Deus.

O darwinismo chegou a Portugal em 1865 pela mão de um botânico da Universidade de Coimbra, Júlio Augusto Henriques, que tratou o tema na sua tese de doutoramento (“As espécies são mudáveis?”). No ano seguinte ele retomou o tema no seu concurso para professor da Faculdade de Filosofia. Lembre-se que a “A Origem das Espécies” imediatamente suscitou uma grande procura (até 1913 publicaram-se em Inglaterra nada mais nada menos do que 148 edições!). O nosso atraso foi, por isso, apenas de seis anos, certamente atenuado pelo facto de a recepção de Júlio Henriques ter sido favorável... Mas a tradução em português da “Origem das Espécies”, na Livraria Chardron da Lello e Irmão, só apareceu em 1913 (a tradução de “A Origem do Homem”, cujo original é de 1871, teve lugar em 1910). Pasme-se com este atraso de 54 anos da edição portuguesa quando já havia centenas de edições por todo o mundo! Tal atraso poderá ser justificado pela acessibilidade de traduções francesas e pelo facto de a cultura francófona reinar entre nós na segunda metade do século XIX. Mas é, convenhamos, uma fraca justificação! Como é que se poderia ser darwinista ou antidarwinista sem se conhecer Darwin no original ou, pelo menos, sem ter uma boa tradução em português, que assegurasse um correcto entendimento e uma boa incorporação na cultura nacional?

No que toca às relações de Portugal com Darwin vale-nos, para além de Júlio Henriques, o pioneirismo de Jaime Batalha Reis, um amigo de Eça de Queirós e de Antero de Quental que, em 1866, apresentou em Lisboa uma tese de agronomia na qual referia Darwin. Mas vale-nos sobretudo e principalmente, para “salvar a honra do convento”, o notável açoreano Francisco de Arruda Furtado, que é o personagem principal desta peça de teatro da autoria de Paulo Trincão. A viver na ilha de S. Miguel, Arruda Furtado, que morreu bastante novo (aos 33 anos, da tuberculose que nessa época dizimou tanta gente, alguma dela bastante ilustre), correspondeu-se, como muito bem conta Paulo Trincão neste livro, com o sábio inglês ao longo do ano de 1881, pouco antes da morte deste, e, inspirado pelas ideias darwinistas, realizou estudos de malacologia nos Açores. É extraordinário que um jovem quase isolado numa ilha do arquipélago açoriano tenha escrito ao grande sábio e tenha obtido, quase na volta do correio, uma resposta tão simpática como encorajadora. Não admira por isso que Arruda Furtado tenha escrito sentidos obituários de Darwin em 1882 nos jornais “O Século” e “A Voz do Operário”, onde revelou toda a admiração que nutria por ele. Com efeito, o autor da teoria da evolução, a quem o açoreano chamou o “Newton da biologia”, morreu nessa data com 73 anos. O académico Júlio Henriques publicou por esssa altura, na revista da academia coimbrã “O Instituto”, uma tradução de um texto em francês de Augustin Candolle, um naturalista suíço que trabalhou em França (o darwinismo, devido à doutrina do francês Jean-Baptiste de Lamarck, conheceu grande resistência em França, podendo parte da resistência em Portugal ser explicada por esse facto). Mas o investigador autodidacta Arruda Furtado elogiou Darwin em jornais nacionais, dirigidos ao grande público, pela sua própria pena. Não só fez ciência como fez cultura científica.

O darwinismo, para além dos referidos investigadores, quase não teve, em Portugal e durante todo o século XIX, cultivadores a nível científico. Júlio Henriques desenvolveu o Jardim Botânico e o Museu Botânico em Coimbra, mas viveu longos anos (morreu aos 90), sem se ocupar muito com o transformismo biológico. O maior zoólogo português no século XIX, José Vicente Barbosa do Bocage, primo em segundo grau do escritor Manuel Maria Barbosa de Bocage, também não se ocupou desse género de questões. Esse professor da Politécnica em Lisboa, formado pela Universidade de Coimbra e curador do Museu de Zoologia de Lisboa, limitou-se quase ao estudo da sistemática (Furtado trabalhou aliás com ele no Museu). Em Portugal durante muitos e muitos anos fez-se apenas biologia da classificação, da “chaveta”, uma vez que estavam para isso à disposição muitas espécies proveniente das colónias. Mesmo entre os anos 30 e 60 do século XX, quando a teoria de Darwin ia triunfando graças à sua forte aliança com a genética, aqui não se faziam progressos visíveis além das inevitáveis referências no ensino das ciências. Infelizmente, não era objecto nem instrumento de investigação.

Mas o darwinismo lá foi fazendo entre nós o seu caminho. Depois da morte de Darwin, as suas ideias entraram na discussão cultural no nosso país, efectuada, evidentemente, apenas ao nível de algumas elites culturais. Foi nessa esfera, muito mais do que na ciência propriamente dita, que essa corrente foi recebida, tanto de “braços abertos” como de “braços fechados”. A questão da origem da espécie humana e da relação biológica dela com o macaco e outros símios contribuiu para a posição reactiva da Igreja Católica, embora com o tempo a evolução tenha acabado por ser aceite e seja hoje praticamente pacífica nessa instituição. No final do século XIX, os médicos Júlio de Matos e Miguel Bombarda propagandearam o evolucionismo, incluindo a sua aplicação à história humana, embora nem sempre seguindo a linha de Darwin (Bombarda, por exemplo, era contra a selecção natural, a ideia central na teoria darwinista). E, na história, na filosofia, na política, o darwinismo foi bastante discutido, defendido por uns e atacado por outros. Antero de Quental, cuja filosofia beneficiou de forte influência da teoria de Darwin, escreveu por volta de 1881um soneto intitulado “Evolução” (“Fui rocha em tempo, e fui no mundo antigo / tronco ou ramo na incógnita floresta...”), mas Eça de Queirós descreve o espírito da época ao pôr João da Ega, um personagem de “Os Maias”, obra publicada em 1888, a chamar “besta” a Darwin (“Queres que te diga o que penso do Darwin? É uma besta... Ora aí tens. Dá cá a garrafa”).

A recepção cultural da teoria da evolução deu-se entre nós, como aliás noutros países, graças a dois grandes divulgadores - o naturalista alemão Ernst Haeckel, autor de uma filosofia monista-evolucionista, e o filósofo inglês Herbert Spencer, arauto da ideia de “progresso” como diferenciação, passagem da homogeneidade à inomogeneidade, não apenas no domínio do orgânico mas também no domínio do social. Além de Antero e de Eça, os nomes mais proeminentes da famosa “geração de 70”, outros escritores e pensadores portugueses seus contemporâneos, como Ramalho Ortigão, Teófilo Braga, Oliveira Martins e Raúl Proença, assumiram posições marcadas, de uma ou de outra maneira, pelo evolucionismo, ideias essas que provinham de Haeckel e ou de Spencer, muitas vezes através de traduções francesas. Tais ideias foram sendo debatidas na praça pública por quem as podia e queria debater, uma elite portanto. Deu-se por isso o caso paradoxal de termos evoluído na recepção cultural das ideias de Darwin apesar de quase não termos evoluímos na sua recepção científica. Leia-se a este respeito o interessante livro de Ana Leonor Pereira sobre a recepção de Darwin em Portugal “Darwin em Portugal (1865-1914). Filosofia. História. Engenharia Social” (Almedina, 2001).

Estamos em 2009, 200 anos depois do nascimento de Darwin e 150 anos depois da publicação da “Origem das Espécies” (conforme lembra Paulo Trincão o dia de publicação desse livro seminal é o mesmo do Dia Nacional da Cultura Científica, 24 de Novembro, que assinala o nascimento de Rómulo de Carvalho). Esta peça de um autor que muito tem feito em prol da cultura científica em Portugal, nomeadamente como Director da Fábrica Ciência Viva da Universidade de Aveiro, publicada e representada oportunamente no ano Darwin, é um contributo significativo para aquela cultura. Hoje todos os biólogos são darwinistas e há um grande número de biólogos portugueses a realizar investigação científica. Trabalham à luz de Darwin e vão lançando luz sobre alguns dos mistérios que Darwin nos deixou. E temos também, muito mais do que no passado, cultura científica, isto é, ciência incorporada no seio da nossa sociedade. Hoje a educação científica está, através da escola mas não só, ao alcance não apenas de alguns mas de todos. Ao contrário do que acontecia no século XIX, é hoje possível, entre nós, ligar directamente a cultura científica à investigação científica, tornando mais fortes tanto uma como outra.

O teatro é uma bela maneira de fazer cultura científica, é uma bela maneira de, através da arte, levar a ciência – neste caso a história da ciência – ao grande público, mostrando quais são e como são os seus processos e caminhos. Se Darwin é hoje um nome bem divulgado, Francisco de Arruda Furtado não será ainda suficientemente conhecido dos portugueses. Ele, que foi uma excepção à regra do atraso científico, merece sê-lo, em particular dos jovens interessados pela ciência. Tal como ele, embora longe da ciência, quem for suficientemente curioso, esteja onde estiver, poderá aproximar-se dela, pois a tem ao seu alcance. Como a peça sugere, basta para isso ser curioso. E poderá sempre haver um sábio contemporâneo que lhe responda...

8 comentários:

Crescent Surf disse...

Há uma gralha no fim desta frase ("em" está a mais):

No que toca às relações de Portugal com Darwin vale-nos, para além de Júlio Henriques, o pioneirismo de Jaime Batalha Reis, um amigo de Eça de Queirós e de Antero de Quental que, em 1866, apresentou em Lisboa uma tese de agronomia em na qual referia Darwin.

Marta disse...

Gostei imenso. Tudo. Obrigada.

Carlos Fiolhais disse...

Ja emendei a gralha, obrigado
Carlos Fiolhais

Anónimo disse...

É por isso que a Bíblia afirma que o reconhecimento de Deus é o princípio de toda a ciência.

Na Bíblia a existência de Deus nunca é demonstrada. A mesma é considerada um dado axiomático.

No Génesis diz-se, de forma categórica: “no princípio, Deus criou os céus e a Terra”. Não existe qualquer maneira de demonstrar a verdade ou a falsidade desta afirmação através da observação e da experimentação científica.

Todavia, o Universo pode ser interpretado a partir dessa afirmação ou contra ela. Não existe outra alternativa, ou uma maneira neutral e objectiva de conhecer o mundo.

Para a Bíblia, a verdadeira ciência só pode começar e acabar no LOGOS divino, Jesus Cristo, o Alfa e o Ómega. Jesus disse: “Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele e ele comigo”.

Creio firmemente que estas palavras se aplicam também à nossa visão do Universo.

http://www.portalevangelico.pt/noticia.asp?id=3260

Anónimo disse...

Ótimo prefácio. En passant, talvez pudesse retirar o acento agudo de "élite", francesismo há muito incorporado na língua portuguesa e que ninguém usa como proparoxítono.

De Rerum Natura disse...

Já emendei "elite", obrigado pelo reparo. Carlos Fiolhais

pretinha doce disse...

gostaria de aprender mais sobre a matéria.
na verdade eu acho muito interessante!
eu vou dar um exemplo: eu acredito em extrasterrestres mas há pessoas que nem purisso e isso faz-me sentir muito. mesmo muito!!

António Mendes disse...

EÇA, DISCÍPULO DE DARWIN?

Os excertos de Eça de Queirós, aqui publicados, parecem traçar um retrato anti-darwinista de Eça e, pior, parecem sugerir, que ele faz oposição à ciência do seu tempo.
Ora, esta imagem de Eça é falaciosa: confundindo-se a voz dos personagens com a voz do seu criador, assimila-se a crítica queirosiana de algumas vozes do darwinismo à rejeição de Darwin.
Para dissipar quaisquer dúvidas quanto à falsidade deste retrato, basta contrastar os contos "Adão e Eva no Paraíso", de Eça, e "Adão e Eva", do escritor realista brasileiro Machado de Assis (com quem Eça manteve uma relação de amor-ódio até ao final da vida).
Enquanto Machado de Assis oferece uma recriação literária dos relatos bíblicos, Eça dá-nos uns frescos impressivos e realistas dos episódios de uma humanidade e de um Deus que têm de se haver, não com a teoria, mas com o facto da evolução.
O realismo irónico de Eça desmascara, ao mesmo tempo, o criacionismo ignorante e o positivismo ingénuo de algumas vozes darwinistas.
O que este escritor censura no positivismo, transformista e não só, é o seu projecto de ablação da imaginação da esfera da inteligência humana, qual concubina desprezível.
Quem conheçe a Filosofia das Ciências do século XX, nomeadamente o debate entre Popper e os neopositivistas do Círculo de Viena, não pode deixar de reconhecer a justeza dos reparos queirosianos.

Os leitores não deixarão de espantar-se por reconhecer nos parágrafos finais do conto de Eça a mesma «grandeza nesta forma de considerar a vida» com que Darwin encerra a «A Origem das Espécies», tão sublime que o nosso escritor a eleva ao ponto de vista de um Deus que, «pensativo, contempla o crescer da humanidade» nesse «verídico lar»: «esses sóis, esses mundos, essas esparsas nebulosas», «feitas da nossa substância».

Em suma, assim como é errado inferir que Darwin era teísta por ter referido as «leis impostas à matéria pelo Criador» em «A Origem das Espécies», também é errado acusar Eça de ser um anti-Darwin ou de desdenhar do pensamento científico.


António Mendes
professor de Filosofia do E. Secundário
Braga

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