segunda-feira, 25 de abril de 2022

A PONTE É UMA PASSAGEM

 


Meu texto no livro sobre fotografias de Bernardino Pires que a In-Libris acaba de publicar:

O homo sapiens é o único animal capaz de construir pontes, contrariando os obstáculos que a Natureza criou. E é também o único animal a fazer arte, designadamente a arte fotográfica que permite arquivar fisicamente o tempo passado. Tanto as pontes como as fotografias são artefactos tecnológicos, mas as duas são também obras de arte, isto é, há nelas a capacidade de deslumbramento dos nossos sentidos e do nosso intelecto. Na engenharia civil as pontes chamam-se mesmo «obras de arte».

Gosto de pontes, como a Ponte D. Luís, no Porto, porque elas permitem ligações entre as pessoas de diferentes sítios. Foi por gostar de pontes que escolhi esta imagem do  fotógrafo portuense Bernardino Pires. Ela dá-nos a ver uma grande obra de engenharia – precisamente a ponte D. Luís – através da fotografia. Vejo neste belo instantâneo, captado no tabuleiro inferior, uma estrutura metálica, de dimensões sobrehumanas, mas que serve o humano propósito de travessia do rio, permitindo que pessoas e bens passem facilmente de uma margem para outra. E vejo, no chão, a luz recortada pela sombra que tanto a estrutura como as pessoas projectam (não se sabe o ano, mas pelas sombras, pode-se saber a hora, porque os astros nunca falham). Vejo ainda a atmosfera enevoada tão característica do Porto, com o inconfundível Mosteiro da Serra do Pilar em fundo.

Quando os meus olhos se fixaram pela primeira vez nesta imagem saltou à minha memória uma canção que em 1981 uma banda rock do Porto, os Jáfumega, celebrizou. Está no lado B do single Dá-me Lume, intitula-se Ribeira e o refrão diz: «A ponte é uma passagem/ p´rá outra margem». A letra dessa canção evoca a Ribeira portuense, dominada pela referida ponte: «Desafio pairando sobre o rio/ a ponte é uma miragem.../ Nas tasquinhas decoradas/ curte-se o chique burguês/ comem-se boas dobradas/ ostenta-se a embriaguez». O Porto é a «cidade das seis pontes»: de montante a juzante: Freixo, São João, D. Maria Pia, Infante, D. Luís e Arrábida. Mas a ponte mais emblemática, a ponte mais antiga de todas as que estão ao serviço, é a Ponte D. Luís  (até diria que é o ex-libris da cidade, não fora o caso de a Torre dos Clérigos poder ficar zangada). Diz-se que há cidades com menos de seis pontes e outras com mais de seis, mas com exactamente seis só existe a Invicta. Considerando só as cidades portuguesas, não estou, de facto, a ver outra com meia dúzia de pontes: Lisboa só tem duas, ao passo que  Coimbra tem quatro. Ou melhor, estou: Vila Nova de Gaia é outra cidade com seis pontes, precisamente as mesmas que o Porto. As pontes são tanto de uma como da outra margem. Mas é curioso que as duas margens alberguem cidades distintas a começar logo pelo nome, como acontece em Lisboa, mas ao contrário do que acontece em Coimbra, que é a mesma urbe dos dois lados do rio Mondego (não obstante o Código da Praxe estudantil chamar à margem esquerda o «Japão», enfatizando a distância). A geografia sempre foi delimitadora de identidades embora, com a ajuda das pontes, o São João se celebre tanto de um lado como de outro. Quando for concluída a sétima ponte, por ora apenas em projecto, a Ponte D. António Francisco dos Santos, tanto o Porto como Vila Nova de Gaia ficarão com sete pontes, tantas quantas, segundo um histórico problema matemático, a cidade de Königsberg, onde nasceu e  morreu  o filósofo alemão Immanuel Kant. 

Já não me lembro quando fui ao Porto pela primeira vez. Deve ter sido quando, em criança, passei de comboio pela, então já velhinha, ponte D. Maria Pia, obra do engenheiro francês Gustave Eiffel, suporte da linha de Lisboa para o Porto, para mudar de comboio na estação de Campanhã. Ia passar férias estivais nas terras dos meus pais: na do meu pai, em Peso da Régua, com estação na deslumbrante linha do Douro, ou na da minha mãe, em Vidago, servida pela serpenteante linha do Corgo. A recordação precisa dessa primeira vista do Douro esconde-se nos abismos da memória, mas permaneceu o calafrio que senti quando me vi, com a composição, suspenso sobre as águas, uma sensação que haveria de repetir.

Sempre que venho ao Porto, o meu olhar demora-se sempre no imponente Douro e nas pontes, que ligam as suas duas encostas. Ainda há pouco, feito turista no Cais de Gaia, não pude deixar de fotografar de vários ângulos e alturas a ponte D. Luís, que pacientemente se oferece como um modelo inesgotável para os fotógrafos. Lembro-me de a ver na capa do disco dos GNR Psicopátria, que comprei na Baixa do Porto no Natal do ano em que saiu, 1986: uma rapariga mergulha da margem da Ribeira, com impecável estilo, nas águas do Douro, em frente à referida ponte (a fotografia é de Beatriz Ferreira, uma das primeiras fotojornalistas portuguesas). Esse LP abre com a canção «Pós modernos»: «Ah! Os pós modernos agarram na angústia/ E fazem dela uma outra indústria». Foi o ano da entrada na União Europeia e o país punha o pé na pós-modernidade quando ainda nem moderno era. Ficou alguma angústia, com pouco acréscimo de indústria. No mesmo ano de 1986 saiu o LP de Rui Veloso com o título homónimo, que inclui a canção Porto Sentido, com letra de Carlos Tê, que fala da Ponte D. Luís: «Quem vem e atravessa o rio/ Junto à serra do Pilar/ Vê um velho casario/ Que se estende até ao mar.» O Porto, que sempre inspirou os músicos, foi o berço do rock português.

A fotografia a preto e branco da Ponte D. Luís feita por Bernardino Pires é do tempo do Estado Novo, dos anos 50 ou 60, quando a vida era mais a preto do que a branco e quando a música quase não passava do fado. A democracia ainda estava longe no horizonte. Só um grande fotógrafo, muito atento ao seu olhar, pode captar um instantâneo como aquele, fazendo um retrato social do Estado Novo: as duas mulheres, uma para lá e outra para cá, transportam um grande peso à cabeça. E, para cá, vem um agente da autoridade, pois nesse tempo havia sempre, onde quer que se estivesse, um agente da autoridade. Não se percebe se é um GNR, dos autênticos (os do grupo de Rui Reininho ainda não existiam). Era uma sociedade claramente sexista, pois apesar de haver transporte automóvel (descortina-se um camião ao fundo da ponte), os carregos estavam por conta das mulheres. O homem enchapelado, à direita e em primeiro plano, vai sem carga, tal como sem carga vem o «GNR».

A Ponte D. Luís (ou «Ponte Luiz I», sem o «dom» e com o «I», como está inscrito numa pedra de mármore identificativa, coeva da inauguração) foi construída entre 1881 e 1886. A inauguração foi em 31 de Outubro de 1886, cem anos antes do referido disco dos GNR. Concebida para substituir a Ponte Pênsil anterior, a obra foi desenhada pelo engenheiro belga Théophile Seyrig, que tinha sido assistente de Gustave Eiffel na construção da Ponte D. Maria Pia, inaugurada em 1877 e encerrada em 1991, quando começou a funcionar a vizinha Ponte São João, do engenheiro Edgar Cardoso. D. Maria Pia era a esposa italiana do rei D. Luís e, na nobreza, ao invés do que acontecia no povo, primeiro estavam as senhoras, pelo menos na nomeação das pontes… Quase no mesmo sítio da Ponte D. Luís (ainda lá estão os pilares e a casa do guarda)  existiu a Ponte Pênsil, também chamada Ponte D. Maria II, inaugurada em 1843, da qual há fotografias. Esta, por sua  vez, substituiu a Ponte das Barcas, onde se deu o famoso desastre de 1817, durante a Segunda Revolução Francesa. A uma ponte sucede-se sempre outra, porque precisamos e precisaremos sempre de ir de uma margem para a outra. E «a ponte é uma passagem/ p’rá outra margem».

 

1 comentário:

Anónimo disse...


Errata:onde se lia "Segunda Revolução Francesa", devia ler-se " Segunda Invasão Francesa".

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