segunda-feira, 25 de abril de 2022

48 ANOS DE DEMOCRACIA: UM DEPOIMENTO PESSOAL


Meu artigo na revista Dirigir & Formar do IEFP (na imagem cartaz de Vieira da Silva sobre o 25 de Abril):

O regime democrático, instalado entre nós com a revolução de 25 de Abril de 1974, fará 48 anos, passando a durar mais do que anterior período não democrático, advindo do golpe de 28 de Maio de 1926. Vivi o primeiro quando tinha 17 anos – estava no primeiro ano do curso de Física na Universidade de Coimbra e a notícia chegou a meio de uma aula de Análise Infinitesimal II. Já levo 48 anos do novo regime, tendo desenvolvido toda a minha carreira de 44 anos de ensino, investigação e extensão inteiramente no seu quadro.

Claro que o facto de um jovem de uma família relativamente modesta ter chegado no tempo da «outra senhora» à universidade, indica que no início dos anos 70 ocorreu um enorme alargamento da frequência do ensino secundário e um concomitante aumento do acesso ao ensino superior. Tive a sorte de, aos 17 anos, viver em Coimbra, onde pude passar do Liceu Nacional D. João III para a Universidade, que lhe era muito próxima. Lembro-me de, em 1972, o ministro da Educação da época, José Veiga Simão, grande responsável pela referida democratização do ensino, ter visitado o meu liceu, que tinha sido também o dele. Nesse tempo de alguma abertura foi possível a uma comissão de alunos, que eu integrava, chegar à fala com o ministro a quem pediu – com sucesso! – um subsídio para o jornal estudantil.

Enquanto caloiro universitário, pude testemunhar fenómenos de oposição ao regime – como o espalhamento de panfletos nas instalações – e de repressão – por exemplo, o afastamento compulsivo das aulas, pelos contínuos-vigilantes, de estudantes que pretendiam informar os seus colegas de eventos proibidos. A Academia de Coimbra estava no rescaldo das lutas estudantis, que tinham atingido o seu auge, em 1969, com a greve aos exames, a repressão e o consequente «luto académico», numa altura em que eu ainda andava no liceu. Não tendo tido actividade política antes do 25 de Abril (até porque era menor), sei o que era a falta de liberdades: havia o espectro da guerra colonial, exercia-se censura (que eu próprio experimentei, pois aos 15 anos já escrevia para um jornal regional) e, acima de tudo, temia-se a Direcção Geral de Segurança - DGS, a polícia política que era herdeira da PIDE. Adolescente ávido pela leitura, sabia que certos livros eram proibidos. Tendo começado a ir ao cinema, sabia que eles eram tesourados. E também sabia que, havendo formalmente eleições, sabia-se à partida quem ia ganhar.

Depois do 25 de Abril houve a explosão libertária que é bem conhecida. Em Coimbra assisti a alguns dos seus episódios, como o assalto popular, contido pelas tropas do MFA, à sede da DGS em Coimbra e como a grande manifestação do primeiro 1.º de Maio. Na Universidade passou a haver sucessivas Reuniões Gerais de Alunos e Assembleia Magnas. A gestão universitária tornou-se caótica, com alguns professores sumariamente «saneados», enquanto os governos provisórios se sucediam. Votei pela primeira vez em 25 de Abril de 1975 para a Assembleia Constituinte. No Verão quente de 1975, fui pela primeira vez ao estrangeiro, a um encontro juvenil de ciência em Londres: percebi então melhor o que era a liberdade, que em Portugal, de forma algo atabalhoada, estava a começar. Lembro-me de o ministro da Educação e Investigação Científica, Mário Sottomayor Cardia, num dos primeiros governos constitucionais, ter feito um referendo, em que perguntava aos estudantes se «queriam a Universidade aberta». Como o curso de Física tinha apenas quatro alunos, conseguimos, com a prestimosa ajuda dos nossos professores, concluir o curso com a normalidade possível. Fizemos os exames todos.

Acabado o curso em 1978 e tendo entrado logo como assistente, beneficiei de uma visita de professores alemães a Coimbra, prometendo cooperar na formação de quadros universitários, Como Física foi uma das áreas escolhidas, fiquei logo com o rumo traçado: em 1979 deixava as aulas em Coimbra para fazer o doutoramento na Universidade Goethe, em Frankfurt am Main. Quando saí era primeiro-ministra Maria de Lourdes Pintasilgo, num governo que não durou muito. Em 1980 soube na Alemanha da queda doi avião de Francisco Sá Carneiro, pouco antes de António Ramalho Eanes ser reeleito presidente da República. Voltei em finais de 1982.

A partir daí vivi a par e passo a democracia em Portugal. Curiosamente, o dia da assinatura em 1985 no claustro dos Jerónimos da entrada de Portugal na União Europeia, deu-se no dia dos meus 29 anos. Era uma bela prenda! Eu tinha verificado, durante a estada na Alemanha (de onde fiz incursões a França, Áustria, Suíça, Itália, etc., embora não a leste, pois o muro de Berlim só cairia em 1989), que o estado de desenvolvimento do país, em geral e em particular nas áreas que mais me interessavam da educação, da ciência e da cultura, deixava muito a desejar. Éramos um país fechado, avesso à novidade. Quando, no início dos anos 80, vinha a Portugal de férias, via as fronteiras terrestres portuguesas controladas, inclusivamente encerradas de noite, quando estavam abertas por toda a Europa por onde passava.

Fiz o que pude para que o país democrático se desenvolvesse: além das aulas e trabalhos de investigação, dediquei-me à difusão da cultura científica. Passei, a partir de 1987, a escrever na imprensa nacional (Expresso). E, em 1991, saiu o meu primeiro livro, Física Divertida (Gradiva), que foi um sucesso editorial. Conheci o meu colega José Mariano Gago na Conferência Física Nacional de Física realizada em Évora em 1984. Tornámo-nos amigos, pois eu partilhava o seu sonho de fazer alastrar a ciência em Portugal. Singrando numa carreira política, ele haveria, em 1995, de ser ministro da Ciência e Tecnologia, espoletando uma transformação enorme no país: fomentou uma rede de unidades de investigação, uma fundação para financiar a ciência e uma agência de cultura científica. Colaborei com ele em tudo o que me pediu. Eu próprio tomei várias iniciativas que apoiou. Houve altos e baixos no nosso caminho democrático na educação, na ciência e na cultura, mas os anos finais do século passado foram decerto um tempo alto.

Hoje em dia o país é muito diferente do que era. Há muitos mais jovens a frequentar o ensino superior e, em particular, há muitos mais doutoramentos. Em 1982, quando me doutorei, havia 87 mil alunos no ensino superior, ao passo que em 2021 havia 412 mil. Em 1982 houve 130 doutoramentos ao passo que em 2015 eram quase 3000. Particularmente nítida foi a ascensão académica e social da mulher: elas hoje são a maior parte dos alunos na Universidade, assim como a maior parte dos doutorados. Há também maior investimento em Investigação e Desenvolvimento: em 1982, investia-se apenas 0,3% do PIB, ao passo que em 2020 se voltava aos 1,6% que já se tinham atingido antes (bem aquém dos 2,3% da média da União Europeia).

A educação, a ciência e a cultura são traves-mestras da democracia. Um sistema democrático, além de dar liberdades, deve criar desenvolvimento. Em Portugal, por muitos que sejam os problemas que persistam, o balanço é francamente positivo.

 

4 comentários:

Anónimo disse...

Eu estava no 1.º ano do curso geral dos liceus.
O professor Carlos Fiolhais reconhece, implicitamente, no seu depoimento que o 25 de Abril dos cravos vermelhos, ultimamente transfigurado num mar de rosas, ainda não se cumpriu plenamente nos campos da Educação e da Ciência. Não podemos confundir a explosão de doutoramentos em Ciências da Educação, por exemplo, com um real e efetivo progresso científico e educacional do nosso país. É verdade que os principais doutrinadores e preparadores das nossas crianças para a guerra do ultramar, antes do 25 de Abril, os professores primários, foram, depois do 25 de Abril, recompensados com a equivalência a licenciados e professores do liceu, mas, muitos deles, aproveitaram-se dessas benesses para, através dos doutoramentos a esmo em ciências da educação, semearem o caos e a discórdia num sistema de ensino que, após a reforma de boa memória de Veiga Simão, nunca mais deixou de perder qualidade, assemelhando-se as escolas secundárias e EB1,2,3 + JI de hoje em dia a grandes armazéns onde os professores, juntamente com os seus colegas educadores de infância, se devem limitar a tomar conta dos seus alunos, sem ensinar!
Em termos gerais, podemos dizer que tudo começou com o ensino/ aprendizagem planificado em tabelas e grelhas, depois vieram os objetivos, a seguir os objetivos mínimos, as competências, o fim dos exames, os critérios objetivos de avaliação, o aprender a aprender, o facilitismo, a escola inclusiva, etc, etc, para hoje chegarmos às APRENDIZAGENS ESSENCIAIS por DOMÍNIOS, SUBDOMÍNIOS e RUBRICAS, de onde as matérias de ensino (na linguagem arcaica) são expurgadas, para benefício dos professores, que não devem ensinar nada, e dos alunos que, assim, facilmente aprendem tudo, e avançam todos, sempre para a frente, até atingirem o perfil democrático de aluno à saída da escolaridade obrigatória de aquém e além-mar!

Anónimo disse...

Toda a razão. Eu, por exemplo, sou professora do mais primário que se possa imaginar. Não tirei o curso, deram-mo. E ainda bem porque, hoje em dia, levo o meu tempo a coçar-me. Coço-me aqui, ali, acolá, aquém e além-mar. Às vezes, interrompo o processo para cuspir para o ar. Só não mando os miúdos às compras porque tenho medo que sejam atropelados ou que me roubem o dinheiro. De resto, limpam a sala e são felizes. Desenham, recortam, colam, jogam ao berlinde, sobem às árvores, cantam aos pássaros, brincam ao mata, mandam fisgadas uns aos outros e eu acho giro. Porque temos de os preparar para um mundo em permanente atualização do caos.
No outro dia, pus-me de perfil democrático a pensar sobre as aprendizagens essenciais e perguntei-lhes o que era isso e eles responderam que isso era brincar. Então, brincámos o dia inteirinho. Jogámos às escondidas, caçámos ovos da Páscoa e partimos os outros, fizemos bolas de sabão, móbiles com cabeças de velho e uma espingarda de cartolina com uma flor manhosa no cano. Vimos filmes, vídeos, dançámos e eu, no fim, disse:
- Meninos, estou cansada! Amanhã não vamos fazer nada!
No dia seguinte, até o Passos Dias Aguiar Mota veio, o tal que nunca vem às aulas.
E, todos os dias, tenho uma densa e sublime sensação de dever cumprido!

Anónimo disse...

Cara leitora,
A sua resposta, eivada de sarcasmo, não consegue esconder alguns laivos de triste desilusão de Vossa Excelência em relação à carreira única de professores do ensino básico e secundário e dos educadores de infância que iniludivelmente abraçou, um dia. Nestas circunstâncias, podemos dizer que estamos no mesmo barco da carreira única, somos portanto colegas quer por partilha de emoções , quer por via legal.
O dia 25 de Novembro de 1975 representou um duro revés para as aspirações dos comunistas em Portugal, porém infelizmente no campo da educação ainda são eles que mandam. Então dizem diretamente, ou através de alguns doutores em educação, travestidos de palhaços, que a função principal e obrigatória da escola é passar diplomas a todos os cidadãos do país em que se atesta que estão todos escolarizados. Se os cidadãos aprendem, ou não, alguma coisa enquanto frequentam a escola é irrelevante para as estatísticas que provam o nosso desenvolvimento.
Como exemplo do caos instalado, que vai muito além de obrigarem os professores primários e os educadores de infância a fazerem "planificações" e "grelhas" iguais às do secundário, a última grande teoria educacional, o ensino por rubricas, preconiza que, nas disciplinas em que ainda restam uns arremedos de exames, os alunos devem ser amestrados ad nauseam na resolução mecanizada de exercícios-tipo, sem compreenderem o que estão a fazer, por forma a garantir a aprovação fácil, mandando para as malvas a pedagogia baseada na compreensão das matérias por parte de professores e alunos.
Neste caldo de cultura, a indisciplina escolar, por si tão bem retratada, medra!

Anónimo disse...

Não tem que ver propriamente com o assunto, mas haverá alguma forma de entrar em contacto consigo?

Artur Crisóstomo

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