Meu último artigo no JL (no jornal houve uma gralha sobre o número de neurónios):
Alguns dos livros de divulgação de ciência com maior êxito são concisos.
Por exemplo, o astrónomo Neil deGrasse Tyson é o autor de Astrofísica para
gente com pressa (Gradiva, 2017) e o físico italiano Carlo Rovelli é o autor de Sete breves lições de Física
(Objectiva, 2015). Tanto uma como o outra obra venderam mais de um milhão de cópias
em dezenas de línguas. Se o êxito de Tyson era previsível, uma vez que o autor
é muito popular, o mesmo não se passou com Rovelli, uma autêntica revelação. Curiosamente
tanto um como outro têm origem num conjunto de artigos, num caso na revista Natural
History e no outro num jornal italiano. O segredo dos dois, para além da
concisão, é uma escrita clara.
Acaba de sair na Temas e Debates/ Círculo de Leitores um português um
titulo parecido com o de Roveli, mas sobre neurociências. O título é Sete lições
e meia sobre o cérebro e a autora é Lisa Feldman Barrett (n. 1963, em Toronto,
Canadá), professora de Psicologia da Universidade de Northeastern, em Boston,
nos Estados Unidos. A sua investigação sobre as emoções colocaram-no no top
1% dos cientistas mais citados na sua área. Este é ao seu segundo livro de
divulgação: o primeiro foi How emotions are made (2017). O neurocientista
norte-americano David Eagleman (autor do recente Incógnito, Lua de
Papel, 2022) elogiou-o: «Escrita bela e visões sublimes que vão fazer explodir
a sua mente como num fogo de artificio.»
A carreira científica de Barrett não era previsível. A sua família pertencia
à classe média baixa, sendo a mãe uma secretária que pretendia que a filha aprendesse
secretariado, ao passo que o padrasto só queria que procurasse um emprego no final
do secundário. Lisa tornou-se a primeira pessoa da sua família a fazer estudos
universitários, ao concluir uma licenciatura em Psicologia na Universidade de Toronto.
Depois iniciou a doutoramento em Psicologia Clínica na Universidade de Waterloo,
com o fim de dar consultas nessa área. Enveredou, porém, pela carreira de investigação,
por ter tentado experiências simples de psicologia, distribuindo inquéritos, e ter
falhado vezes seguidas na obtenção dos resultados previstos. Os resultados
consistentes que obteve levaram-na a surpreendentes descobertas sobre emoções, como
tristeza e alegria. Não só se doutorou, como, depois de algumas estadas noutras
universidades, se tornou uma especialista mundial em emoções. É autora da «teoria
das emoções construídas», segundo a qual as emoções não estão inscritas no
nosso cérebro, sendo antes previsões ou construções que o nosso cérebro faz, em
cada circunstância particular, de acordo com a nossa experiência. As emoções não
são universais: diferentes experiências em diferentes culturas conduzem a emoções
diferentes.
A meia-lição, a abrir, intitula-se «Um cérebro não
é para pensar». Explica, numa base evolucionária, que um cérebro serve
essencialmente para regular a eficiência energética de um organismo: controla a
água, o sal, a glicose, etc., de modo a manter um bom metabolismo. A Lição n.º
1 intitula-se «Temos um cérebro (e não três)». A autora recusa a ideia muito difundida
de que temos três sistemas no cérebro: um «cérebro de lagarto», um cérebro
emocional e um cérebro racional. Esta teoria, transmitida nos Dragões de Éden
de Carl Sagan, está errada. Temos,
por isso, de ultrapassar a ideia de Platão de que as nossas acções resultam de
um jogo de instinto, emoção e razão. A Lição n.º 2 é «O nosso cérebro é uma rede».
De facto, o nosso cérebro é um conjunto de partes que funcionam em conjunto:
tem 100 mil milhões de neurónios ligados. Não se trata de uma mera metáfora,
mas sim da melhor descrição científica do cérebro, um órgão cuja estrutura permite
redundâncias. Nesta lição aprendi que «um
cérebro não armazena memórias como ficheiro num computador. Reconstrói-as a pedido
com electricidade e químicos em remoinho». As memórias não se recordam: montam-se
de cada vez que é preciso. A Lição n.º 3 intitula-se «Os pequenos cérebros
ligam-se ao seu mundo. O Homo sapiens tem um cérebro que, em boa parte,
é construído cá fora, até cerca dos 20 anos, através de cuidadores que o «afinam»
e «desbastam». A autora recorda a história dos órfãos da Roménia que definharam
por falta de cuidado. A certa altura, ela despe a bata de cientista e faz
afirmações políticas: «A pobreza infantil é um colossal desperdício de oportunidade
humana». Mais adiante diz que não faz sentido distinguir entre o inato e o adquirido:
«Temos o tipo de inatismo que requer aquisições». A Lição n.º 4 é: «O nosso cérebro
prevê (quase) tudo o que fazemos», quer dizer, os cérebros fazem previsões a
partir de experiências passadas. Prevemos o que vai acontecer, com base no que já
aconteceu. Podemos melhorar as nossas previsões e, por isso, somos responsáveis
pelo que fazemos: «As nossas acções de hoje tornam-se as precisões do nosso
cérebro para amanhã e essas previsões provocam automaticamente as nossas acções
futuras».
A Lição n.º 5 intitula-se: «O nosso cérebro trabalha
secretamente com outros cérebros», o que significa que somos seres sociais. Há toda
a vantagem de termos os nossos cérebros ligados: «A melhor coisa para o nosso
sistema nervoso é outro ser humano. A pior coisa para o nosso sistema nervoso é
também outro ser humano.» Segue-se a Lição n.º 6 : «Os cérebros produzem mais
do que um tipo de mente», isto é, somos todos diferentes: «Um cérebro humano específico
num corpo específico, educado e ligado numa cultura específica, produzirá um
tipo específico de mente». Finalmente, vem a Lição n.º 7: «Os nossos cérebros podem
criar realidade.» Há uma realidade social que não deixa de ser real por ter
sido criada por nós: «Participamos activa e voluntariamente neste mundo inventado
todos os dias. Para nós, é real. É tão real como o nosso próprio nome, o qual,
já agora, também foi inventado por pessoas». No epílogo do livro (que tem um
conjunto de notas no final), a autora escreve: «O nosso tipo de cérebro não é o
maior do reino animal e não é o melhor em qualquer sentido objectivo. Mas é o
nosso. É a fonte das nossas forças e das nossas fraquezas (…) Torna-nos simples,
imperfeita e gloriosamente humanos.» Uma bela conclusão de um livro que, lido
num ápice, nos deixa a pensar.
1 comentário:
Há um palhaço que vive nos escombros. Conheço-o pela flor na copa do chapéu e pelas mãos brancas de luva. Circula na poeira do céu e faz labirintos sem saída com o fino fumo do tabaco que o enrola. Ri por coisa nenhuma dentro da boca de bocejo e fita o vazio dos olhos desenhados no rosto. É praticamente velho, mas não perdeu as rugas da infância e dos braços da mãe quase imortal. A flor de amarelo murcho já não tem todas as pétalas e descai a meio da testa parecendo um sol desistido. Talvez não consiga pensar porque o vejo sempre redondo, preso no quadrado da minha janela.
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