segunda-feira, 18 de abril de 2022

A PERIGOSA TENTAÇÃO DOS OBITUÁRIOS

 


Novo texto de Eugénio Lisboa

Ah, como é diferente o obituário em Portugal! Quando, na pátria de Camilo, alguém, ao fim de uma admirável vida de destacada criação, em qualquer pelouro (literatura, música, pintura, ciência, política) morre, não é costume fazer-se, dessa singular personalidade, um balanço equilibrado, objectivo, dando o seu a seu dono, sublinhando-lhe os ganhos, mas não omitindo os deslizes, os momentos menos felizes e, sobretudo, não perdendo de vista o sentido de perspectiva e não dando ao recentemente falecido um exagero de louros, em injusto e ingrato detrimento de outros que laboraram no mesmo terreno, também com inegável galhardia. 

Não, entre nós, o morto mais recente tem direito a TUDO, não ficando nada para mais ninguém morto ou vivo. Igualmente se dizia que o último a falar com Hitler era sempre aquele que ganhava… Tem-se visto, até à náusea, com os falecimentos de Herberto Hélder, Eduardo Lourenço, Agustina Bessa-Luís, Vasco Pulido Valente, Maria Velho da Costa e, agora, com a grande actriz Eunice Muñoz. Eunice era, fora de qualquer dúvida, uma extraordinária intérprete de teatro e uma pessoa de quem todos gostávamos, pela sua afabilidade, beleza, generosidade e grande sentido de partilha. Tive ocasião de a conhecer pessoalmente, em Moçambique e, depois, em Portugal e fiquei a gostar muito dela, além de muito a admirar. O que me não impede de observar – e isto em nada fere o seu enorme talento de actriz – que Eunice tinha um enorme instinto para as tábuas de Molière, embora não possuísse uma grande cultura nem mesmo uma grande cultura teatral. Isto, que era um facto, não a impedia, repito, de ser quem era, quando subia ao palco. Também o grande actor inglês John Gielgud, considerado um dos maiores do século XX e, por muitos críticos, o maior intérprete de Shakespeare, confessou, com grande humildade, aos noventa anos, que detestava Shakespeare, que o achava aborrecido e muito difícil de compreender; e confessou mais: que ele, Gielgud, era um senhor frívolo e com pouca cultura. Nada disso o impediu de ser quem foi. 

Mas o que aqui me traz hoje não é isso, mas sim o exagero dos obituários ou aquilo a que Eça de Queirós chamava “ a coragem de afirmar”. Mais uma vez, assim que a grande Eunice faleceu, começaram os excessos meridionais de alguns obituários. Dou só um exemplo, o de Diogo Infante, actor que muito admiro, tendo-o já dito por escrito, porque é isso mesmo que penso: é um notabilíssimo actor. Mas Diogo Infante, talvez por ter sido grande amigo, admirador e devedor de Eunice Muñoz, não se ficou por dizer que ela era uma das maiores actrizes de todos os tempos, mas foi ao ponto de dizer que ela foi “a maior” actriz de todos os tempos. Ora, neste domínio – o teatro – apetece-me perguntar como é que ele sabe aquilo que afirma. Tendo ele nascido em 1967, não viu certamente, em palco, grandes actrizes como Lucinda Simões, Palmira Bastos ou mesmo Maria Barroso, que teve, infelizmente, por razões políticas, uma curta vida teatral. Eu tive o privilégio de ter visto, por mais de uma vez, em palco, a grande Palmira Bastos e a grande Maria Barroso (esta, em duas inesquecíveis criações de personagens do teatro de Régio e de Lorca). Infelizmente, nasci demasiado tarde para poder ter visto Lucinda Simões. Pois bem, julgo que a única coisa que me é permitido dizer é que Eunice pertence, de direito, a esta gloriosa constelação. Nela, qual das estrelas brilhou mais, não faço a mais pequena ideia e penso, honestamente, que quem as viu brilhar também não faz. Nem me parece de grande interesse decidi-lo. Como não tem interesse nenhum, mas mesmo nenhum, saber se Eça é maior do que Camilo ou Camilo maior do que Eça.

 Eugénio Lisboa

3 comentários:

Maior disse...

Por vezes, o tamanho do peixe depende do tamanho do aquário.

A abelha só fica rainha quando é alimentada exclusivamente de geleia real, desenvolvendo-se em células mais largas do que as convencionais e construídas na vertical.

Todo o ser é contextual.

Eugénio Lisboa disse...

Disse bem: "por vezes". Porque, às vezes, o pequeno aquário acha maneira de acomodar peixe graúdo, como Camões, Vieira ou Fernando Pessoa, para nos ficarmos por aqui. E a minúscula Grécia Antiga deu o que deu...
Eugénio Lisboa

Nham! disse...

Camões, Vieira ou Fernando Pessoa engoliram o aquário e tornaram-se exteriores. A grandeza tem destas coisas.

Quanto à Grécia Antiga, não sei bem o que ficou no seu lugar...

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