domingo, 24 de abril de 2022

MOONSHOT


 Meu artigo no  As Artes entre as Letras:

O termo inglês Moonshot significa literalmente o envio de uma nave à Lua, mas em sentido figurado é um plano ou projecto, em geral de base tecnológica, para fazer algo quase impossível. A palavra teve origem no discurso que o presidente norte-americano John Kennedy proferiu a 12 de Setembro de 1962 no estádio da Universidade Rice em Houston, no Texas: «Nós escolhemos ir para a Lua nesta década e fazer as outras coisas, não porque elas são fáceis, mas porque elas são difíceis; porque esse objectivo servirá para organizar e medir o melhor das nossas energias e habilidades, porque estamos dispostos a aceitar o desafio,  estamos dispostos a não o adiar e temos a intenção de o vencer, tal como aos outros». O certo é que o objectivo de viajar à Lua ainda nessa década se cumpriu: em 21 de Julho de 1969 Neil Armstrong punha pela primeira vez os pés em solo lunar, coroando uma excitante corrida espacial.

Moonshot é o título de um livro que acaba de ser publicado em tradução portuguesa com o título Como Fazer o Impossível. O subtítulo A corrida contra o tempo para criar a vacina contra a Covid-19 elucida que, em vez da corrida espacial, se trata da corrida às vacinas revolucionárias, baseadas no genoma, que ajudaram na resolução da pandemia de COVID19, que parece aproximar-se do fim. É seu autor Albert Bourla, presidente e CEO da Pfizer, a grande companhia farmacêutica norte-americana que fez uma aliança ganhadora com uma start-up alemã, a BioNTech. A vacina conjunta – a mais rápida de sempre –  mostrou ter uma eficácia de mais de 90%.

Bourla nasceu um ano antes do discurso de Kennedy (tem hoje 60 anos), em Tessalónica, na Grécia, sendo descendente de judeus sefarditas. Foi em Tessalónica (ou Salonica) que morreu no século XVI o médico judeu português Amato Lusitano. No livro, o autor diz que os seus antepassados foram expulsos de Espanha no tempo dos Reis Católicos. Os pais de Bourla sobreviveram ao Holocausto (foram 2000 dos 50 000 judeus tessalonicenses que o conseguiram), ao contrário de outros membros da família. A sua mãe escapou a um pelotão de fuzilamento alemão, por poucos minutos, porque um cunhado não-judeu subornou um oficial nazi. Os pais conheceram-se e casaram anos depois da Segunda Guerra Mundial

O CEO da Pfizer - a empresa que faz o Centrum e do Viagra - concluiu um doutoramento em Medicina Veterinária na Universidade Aristóteles, em Tessalónica, em 1985. Ingressou no ramo grego da empresa em 1993 e emigrou para os Estados Unidos em 1991.  Tornou-se chefe de operações em 2018, assegurando a supervisão de todos os processos de desenvolvimento,  fabrico e venda de medicamentos e vacinas. No ano seguinte foi designado CEO. Ocupado como estava na reorganização da empresa, não fazia na altura ideia de que lhe viria a cair em cima a pandemia de Covid-19, cujos primeiros casos ocorreram na China em finais de 2019 e que foi declarada pandemia pela OMS em 11 de Março de 2020.

O livro, escrito no Verão de 2021, conta a corrida à vacina desde as primeiras notícias, que o apanharam no Fórum de Davos. No avião de regresso anotou as suas prioridades: assegurar a segurança e o bem estar dos funcionários, fornecer aos hospitais os medicamentos críticos e procurar uma solução. Colocou em primeiro lugar (com três exclamações) vacinas e em segundo lugar medicamentos. Numa avaliação rápida, as soluções mais promissoras eram as vacinas baseadas em ARN modificado, em que não se introduzia o vírus ou partes dele no organismo, mas antes se comunicava uma mensagem para a nossa maquinaria molecular fabricar uma proteína do vírus. A Pfizer já tinha, antes da Covid-19, um acordo de colaboração com a BioNTech, sedeada em Mainz, na Alemanha, uma empresa criada por um casal turco-alemão, Özlem Türeci e Ugur Sahin, que trabalhava em soluções para o cancro. Bourla  não os conhecia pessoalmente, mas a primeira conversa telefónica com Sahin correu muito bem: houve confiança mútua, o que poderá parecer estranho por estar de um lado um judeu grego, extrovertido, e  do outro lado um muçulmano turcos, introvertido. O acordo foi de  50-50 nas despesas e lucros, mas só se houvesse êxito. A Pfizer adiantava o financiamento e incorporava um eventual prejuízo.  A solução inovadora vinha do casal turco, com base numa ideia de uma cientista húngara emigrada para os Estados Unidos (há um livro da autoria de Joe Miller em colaboração com os cientistas turcos: A Vacina. A inovação de uma era no combate à Covid-19, Actual, 2021).

Moonshot lê-se bastante bem. Como anuncia a capa é a «história contada por quem tomou as decisões». E houve decisões difíceis, por exemplo logo no inicio entre duas técnicas, das quais uma prometia mais, mas sobre a qual havia menos dados. Bourla arriscou ao escolhê-la. Há momentos do livro que parecem de um filme de suspense como a cena da reunião de topo da  Pfizer em que foram revelados os resultados da fase 3 dos testes. A eficácia da vacina era de 95,6%, um resultado absolutamente inesperado (o objectivo era apenas 60%). A emoção instalou-se. Até dois seguranças que estavam a assistir à reunião começaram a chorar sem perceberem bem o que se passava. O comunicado da Pfizer no dia seguinte correu o mundo, alimentando a esperança. Passados nove meses desde o início da pandemia era vacinada a primeira pessoa, no Reino Unido. E, passados nove dias, a FDA americana concedia autorização de uso da vacina.

Bourla faz-nos entrar nos meandros não só da ciência e da tecnologia, como da economia e da política: narra o telefonema de parabéns do vice-presidente Mike Spence (o presidente Donald Trump nunca lhe telefonou, por julgar que ele tinha atrasado o anúncio da vacina para depois da eleição) e a visita a uma fábrica da Pfizer do novo presidente, Joe Biden. E conta os seus encontros com Ursula von der Leyen e outros líderes.

O autor defende a propriedade intelectual, pelo que o livro é polémico para os defensores da quebra da protecção dessa propriedade. Mas é um documento muito interessante sobre o mundo das saúde, dos negócios e da política mundial, em que, naturalmente, um executivo valoriza o seu papel na corrida que ganhou. Li-o a correr de uma ponta a outra.

 

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