Meu artigo no As Artes entre as Letras:
O termo inglês Moonshot significa literalmente o envio de uma nave à
Lua, mas em sentido figurado é um plano ou projecto, em geral de base
tecnológica, para fazer algo quase impossível. A palavra teve origem no
discurso que o presidente norte-americano John Kennedy proferiu a 12 de
Setembro de 1962 no estádio da Universidade Rice em Houston, no Texas: «Nós
escolhemos ir para a Lua nesta década e fazer as outras coisas, não porque elas
são fáceis, mas porque elas são difíceis; porque esse objectivo servirá para
organizar e medir o melhor das nossas energias e habilidades, porque estamos
dispostos a aceitar o desafio, estamos
dispostos a não o adiar e temos a intenção de o vencer, tal como aos outros». O
certo é que o objectivo de viajar à Lua ainda nessa década se cumpriu: em 21 de
Julho de 1969 Neil Armstrong punha pela primeira vez os pés em solo lunar, coroando
uma excitante corrida espacial.
Moonshot é o título de um
livro que acaba de ser publicado em tradução portuguesa com o título Como Fazer
o Impossível. O subtítulo A corrida contra o tempo para criar a vacina
contra a Covid-19 elucida que, em vez da corrida espacial, se trata da
corrida às vacinas revolucionárias, baseadas no genoma, que ajudaram na
resolução da pandemia de COVID19, que parece aproximar-se do fim. É seu autor Albert
Bourla, presidente e CEO da Pfizer, a grande companhia farmacêutica norte-americana
que fez uma aliança ganhadora com uma start-up alemã, a BioNTech. A vacina
conjunta – a mais rápida de sempre –
mostrou ter uma eficácia de mais de 90%.
Bourla nasceu um ano antes do discurso de Kennedy (tem hoje 60 anos), em Tessalónica,
na Grécia, sendo descendente de judeus sefarditas. Foi em Tessalónica (ou
Salonica) que morreu no século XVI o médico judeu português Amato Lusitano. No
livro, o autor diz que os seus antepassados foram expulsos de Espanha no tempo
dos Reis Católicos. Os pais de Bourla sobreviveram ao Holocausto (foram 2000
dos 50 000 judeus tessalonicenses que o conseguiram), ao contrário de
outros membros da família. A sua mãe escapou a um pelotão de fuzilamento alemão,
por poucos minutos, porque um cunhado não-judeu subornou um oficial nazi. Os
pais conheceram-se e casaram anos depois da Segunda Guerra Mundial
O CEO da Pfizer - a empresa que faz o Centrum e do Viagra - concluiu um
doutoramento em Medicina Veterinária na Universidade Aristóteles, em Tessalónica,
em 1985. Ingressou no ramo grego da empresa em 1993 e emigrou para os Estados
Unidos em 1991. Tornou-se chefe de operações
em 2018, assegurando a supervisão de todos os processos de desenvolvimento, fabrico e venda de medicamentos e vacinas. No
ano seguinte foi designado CEO. Ocupado como estava na reorganização da empresa,
não fazia na altura ideia de que lhe viria a cair em cima a pandemia de Covid-19,
cujos primeiros casos ocorreram na China em finais de 2019 e que foi declarada pandemia
pela OMS em 11 de Março de 2020.
O livro, escrito no Verão de 2021, conta a corrida à vacina desde as primeiras
notícias, que o apanharam no Fórum de Davos. No avião de regresso anotou as suas
prioridades: assegurar a segurança e o bem estar dos funcionários, fornecer aos
hospitais os medicamentos críticos e procurar uma solução. Colocou em primeiro
lugar (com três exclamações) vacinas e em segundo lugar medicamentos. Numa
avaliação rápida, as soluções mais promissoras eram as vacinas baseadas em ARN modificado,
em que não se introduzia o vírus ou partes dele no organismo, mas antes se comunicava
uma mensagem para a nossa maquinaria molecular fabricar uma proteína do vírus.
A Pfizer já tinha, antes da Covid-19, um acordo de colaboração com a BioNTech,
sedeada em Mainz, na Alemanha, uma empresa criada por um casal turco-alemão, Özlem
Türeci e Ugur Sahin, que trabalhava em soluções para o cancro. Bourla não os conhecia pessoalmente, mas a primeira conversa
telefónica com Sahin correu muito bem: houve confiança mútua, o que poderá
parecer estranho por estar de um lado um judeu grego, extrovertido, e do outro lado um muçulmano turcos,
introvertido. O acordo foi de 50-50 nas
despesas e lucros, mas só se houvesse êxito. A Pfizer adiantava o financiamento
e incorporava um eventual prejuízo. A
solução inovadora vinha do casal turco, com base numa ideia de uma cientista
húngara emigrada para os Estados Unidos (há um livro da autoria de Joe Miller
em colaboração com os cientistas turcos: A Vacina. A inovação de uma era no
combate à Covid-19, Actual, 2021).
Moonshot lê-se bastante bem.
Como anuncia a capa é a «história contada por quem tomou as decisões». E houve
decisões difíceis, por exemplo logo no inicio entre duas técnicas, das quais
uma prometia mais, mas sobre a qual havia menos dados. Bourla arriscou ao escolhê-la.
Há momentos do livro que parecem de um filme de suspense como a cena da reunião
de topo da Pfizer em que foram revelados
os resultados da fase 3 dos testes. A eficácia da vacina era de 95,6%, um resultado
absolutamente inesperado (o objectivo era apenas 60%). A emoção instalou-se.
Até dois seguranças que estavam a assistir à reunião começaram a chorar sem
perceberem bem o que se passava. O comunicado da Pfizer no dia seguinte correu
o mundo, alimentando a esperança. Passados nove meses desde o início da
pandemia era vacinada a primeira pessoa, no Reino Unido. E, passados nove dias,
a FDA americana concedia autorização de uso da vacina.
Bourla faz-nos entrar nos meandros não só da ciência e da tecnologia, como
da economia e da política: narra o telefonema de parabéns do vice-presidente
Mike Spence (o presidente Donald Trump nunca lhe telefonou, por julgar que ele
tinha atrasado o anúncio da vacina para depois da eleição) e a visita a uma fábrica
da Pfizer do novo presidente, Joe Biden. E conta os seus encontros com Ursula von
der Leyen e outros líderes.
O autor defende a propriedade intelectual, pelo que o livro é polémico para
os defensores da quebra da protecção dessa propriedade. Mas é um documento
muito interessante sobre o mundo das saúde, dos negócios e da política mundial,
em que, naturalmente, um executivo valoriza o seu papel na corrida que ganhou.
Li-o a correr de uma ponta a outra.
Sem comentários:
Enviar um comentário