Meu texto no livro sobre fotografias de Bernardino Pires que a In-Libris acaba de publicar:
O homo sapiens é o único
animal capaz de construir pontes, contrariando os obstáculos que a Natureza
criou. E é também o único animal a fazer arte, designadamente a arte
fotográfica que permite arquivar fisicamente o tempo passado. Tanto as pontes
como as fotografias são artefactos tecnológicos, mas as duas são também obras
de arte, isto é, há nelas a capacidade de deslumbramento dos nossos sentidos e
do nosso intelecto. Na engenharia civil as pontes chamam-se mesmo «obras de
arte».
Gosto de pontes, como a Ponte D.
Luís, no Porto, porque elas permitem ligações entre as pessoas de diferentes
sítios. Foi por gostar de pontes que escolhi esta imagem do fotógrafo portuense Bernardino Pires. Ela dá-nos
a ver uma grande obra de engenharia – precisamente a ponte D. Luís – através da
fotografia. Vejo neste belo instantâneo, captado no tabuleiro inferior, uma
estrutura metálica, de dimensões sobrehumanas, mas que serve o humano propósito
de travessia do rio, permitindo que pessoas e bens passem facilmente de uma
margem para outra. E vejo, no chão, a luz recortada pela sombra que tanto a
estrutura como as pessoas projectam (não se sabe o ano, mas pelas sombras, pode-se
saber a hora, porque os astros nunca falham). Vejo ainda a atmosfera enevoada
tão característica do Porto, com o inconfundível Mosteiro da Serra do Pilar em
fundo.
Quando os meus olhos se fixaram
pela primeira vez nesta imagem saltou à minha memória uma canção que em 1981 uma
banda rock do Porto, os Jáfumega, celebrizou. Está no lado B do single Dá-me
Lume, intitula-se Ribeira e o refrão diz: «A ponte é uma passagem/
p´rá outra margem». A letra dessa canção evoca a Ribeira portuense, dominada
pela referida ponte: «Desafio pairando sobre o rio/ a ponte é uma miragem.../ Nas
tasquinhas decoradas/ curte-se o chique burguês/ comem-se boas dobradas/
ostenta-se a embriaguez». O Porto é a «cidade das seis pontes»: de montante a
juzante: Freixo, São João, D. Maria Pia, Infante, D. Luís e Arrábida. Mas a
ponte mais emblemática, a ponte mais antiga de todas as que estão ao serviço, é
a Ponte D. Luís (até diria que é o ex-libris
da cidade, não fora o caso de a Torre dos Clérigos poder ficar zangada). Diz-se
que há cidades com menos de seis pontes e outras com mais de seis, mas com exactamente
seis só existe a Invicta. Considerando só as cidades portuguesas, não estou, de
facto, a ver outra com meia dúzia de pontes: Lisboa só tem duas, ao passo
que Coimbra tem quatro. Ou melhor,
estou: Vila Nova de Gaia é outra cidade com seis pontes, precisamente as mesmas
que o Porto. As pontes são tanto de uma como da outra margem. Mas é curioso que
as duas margens alberguem cidades distintas a começar logo pelo nome, como
acontece em Lisboa, mas ao contrário do que acontece em Coimbra, que é a mesma
urbe dos dois lados do rio Mondego (não obstante o Código da Praxe estudantil
chamar à margem esquerda o «Japão», enfatizando a distância). A geografia
sempre foi delimitadora de identidades embora, com a ajuda das pontes, o São
João se celebre tanto de um lado como de outro. Quando for concluída a sétima
ponte, por ora apenas em projecto, a Ponte D. António Francisco dos Santos,
tanto o Porto como Vila Nova de Gaia ficarão com sete pontes, tantas quantas,
segundo um histórico problema matemático, a cidade de Königsberg, onde nasceu
e morreu
o filósofo alemão Immanuel Kant.
Já não me lembro quando fui ao
Porto pela primeira vez. Deve ter sido quando, em criança, passei de comboio
pela, então já velhinha, ponte D. Maria Pia, obra do engenheiro francês Gustave
Eiffel, suporte da linha de Lisboa para o Porto, para mudar de comboio na
estação de Campanhã. Ia passar férias estivais nas terras dos meus pais: na do
meu pai, em Peso da Régua, com estação na deslumbrante linha do Douro, ou na da
minha mãe, em Vidago, servida pela serpenteante linha do Corgo. A recordação precisa
dessa primeira vista do Douro esconde-se nos abismos da memória, mas permaneceu
o calafrio que senti quando me vi, com a composição, suspenso sobre as águas, uma
sensação que haveria de repetir.
Sempre que venho ao Porto, o meu
olhar demora-se sempre no imponente Douro e nas pontes, que ligam as suas duas
encostas. Ainda há pouco, feito turista no Cais de Gaia, não pude deixar de
fotografar de vários ângulos e alturas a ponte D. Luís, que pacientemente se
oferece como um modelo inesgotável para os fotógrafos. Lembro-me de a ver na
capa do disco dos GNR Psicopátria, que comprei na Baixa do Porto no Natal
do ano em que saiu, 1986: uma rapariga mergulha da margem da Ribeira, com
impecável estilo, nas águas do Douro, em frente à referida ponte (a fotografia
é de Beatriz Ferreira, uma das primeiras fotojornalistas portuguesas). Esse LP
abre com a canção «Pós modernos»: «Ah! Os pós modernos agarram na angústia/ E fazem dela uma
outra indústria». Foi o ano da entrada na União Europeia e o país punha o pé na
pós-modernidade quando ainda nem moderno era. Ficou alguma angústia, com pouco
acréscimo de indústria. No mesmo ano de 1986 saiu o LP de Rui Veloso com o
título homónimo, que inclui a canção Porto Sentido, com letra de Carlos
Tê, que fala da Ponte D. Luís: «Quem vem e atravessa o rio/ Junto à serra do
Pilar/ Vê um velho casario/ Que se estende até ao mar.» O Porto, que sempre
inspirou os músicos, foi o berço do rock português.
A fotografia a preto e branco da
Ponte D. Luís feita por Bernardino Pires é do tempo do Estado Novo, dos anos 50
ou 60, quando a vida era mais a preto do que a branco e quando a música quase
não passava do fado. A democracia ainda estava longe no horizonte. Só um grande
fotógrafo, muito atento ao seu olhar, pode captar um instantâneo como aquele, fazendo
um retrato social do Estado Novo: as duas mulheres, uma para lá e outra para
cá, transportam um grande peso à cabeça. E, para cá, vem um agente da
autoridade, pois nesse tempo havia sempre, onde quer que se estivesse, um
agente da autoridade. Não se percebe se é um GNR, dos autênticos (os do grupo
de Rui Reininho ainda não existiam). Era uma sociedade claramente sexista, pois
apesar de haver transporte automóvel (descortina-se um camião ao fundo da ponte),
os carregos estavam por conta das mulheres. O homem enchapelado, à direita e em
primeiro plano, vai sem carga, tal como sem carga vem o «GNR».
A Ponte D. Luís (ou «Ponte Luiz
I», sem o «dom» e com o «I», como está inscrito numa pedra de mármore identificativa,
coeva da inauguração) foi construída entre 1881 e 1886. A inauguração foi em 31
de Outubro de 1886, cem anos antes do referido disco dos GNR. Concebida para substituir
a Ponte Pênsil anterior, a obra foi desenhada pelo engenheiro belga Théophile
Seyrig, que tinha sido assistente de Gustave Eiffel na construção da Ponte D.
Maria Pia, inaugurada em 1877 e encerrada em 1991, quando começou a funcionar a
vizinha Ponte São João, do engenheiro Edgar Cardoso. D. Maria Pia era a esposa italiana
do rei D. Luís e, na nobreza, ao invés do que acontecia no povo, primeiro
estavam as senhoras, pelo menos na nomeação das pontes… Quase no mesmo sítio da
Ponte D. Luís (ainda lá estão os pilares e a casa do guarda) existiu a Ponte Pênsil, também chamada Ponte
D. Maria II, inaugurada em 1843, da qual há fotografias. Esta, por sua vez, substituiu a Ponte das Barcas, onde se
deu o famoso desastre de 1817, durante a Segunda Revolução Francesa. A uma
ponte sucede-se sempre outra, porque precisamos e precisaremos sempre de ir de
uma margem para a outra. E «a ponte é uma passagem/ p’rá outra margem».
1 comentário:
Errata:onde se lia "Segunda Revolução Francesa", devia ler-se " Segunda Invasão Francesa".
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