A actividade de pensar é aquela que nos identifica como seres humanos, capazes de discernir, de fazer escolhas, de decidir entre o bem e o mal. Derivado do latim “pensare” que significa “suspender” (da mesma raiz de outro verbo, pendere, com o sentido de “suspender”, “pesar na balança”), pensar é aquela actividade que nos leva a examinar e pesar os factos, que nos faz avaliar as acções, que nos obriga a “suspender”, a parar para avaliar, para apreciar e depois decidir.
É à importância do PENSAR que a professora de filosofia Pascale Seys, dedica mais uma das suas breves reflexões na rubrica “Um p’ tit shoot de Philo”, do dia 24 de Junho, e que pode ser ouvida aqui.
“Encontramos o nosso lugar no tempo e no mundo quando pensamos” declarava Hannah Arendt.
Nascida em 1906 em Hanover e falecida em Nova Iorque em 1975, a filósofa escreveu uma obra grandiosa que se impôs como uma referência essencial para compreender os regimes totalitários do século XX.
Arendt tinha 27 anos quando teve lugar em Berlim o incêndio criminoso que destruiu o Palácio de Reichstag, na noite de 26 para 27 de Fevereiro de 1933. Arendt exilou-se em Paris com o seu primeiro marido, com o qual tinha casado em 1929, o filósofo e jornalista Günther Anders, futuro autor de “ A Obsolescência do Homem”. Trabalha para a liga internacional contra o antissemitismo e para a agência judaica de Paris. Frequenta na época Raymond Aron, Sartre e Walter Benjamin. Divorcia-se em 1937 e casa-se com o filósofo Heinrich Blücher. Depois vêm os anos negros: Arendt é deportada em 1940 para o campo de Gurs de onde é libertada e obtém um visto para os Estados Unidos, onde ensina filosofia política, até ao fim dos seus dias, em diversas universidades americanas. A pedido da New Yorker, assiste, em 1961, ao processo de Adolphe Eichmann em Jerusalém, ao qual consagra um ensaio onde aparece o conceito controverso e tantas vezes comentado da “banalidade do mal”.
Marcada pelo naufrágio moral e político da Europa, a vida de Arendt é a verdadeira âncora do seu pensamento. Em 1943, a filósofa perguntava a si própria se o que se tinha passado na Europa, a conjugação de dois tipos de totalitarismo, o nazismo e o estalinismo, não podia ser considerado como o fundamento da arquitectura do mundo contemporâneo. Assim, ela procurou analisar o mecanismo do ódio de que se alimentam os sistemas totalitários, a máquina da morte planeada que foi o nazismo, as noções de autoridade, de dominação, de democracia, de espaço público que são outros tantos conceitos que ela repensou, revisitou a fim de compreender a essência das nossas sociedades modernas.
Podemos resumir o seu pensamento deste modo: será que o mal em política, ou dito de outra forma, será que as escolhas colectivas justificadas por um sistema e por uma ideologia do medo têm alguma coisa a ver com a ausência de pensamento? Ou, pondo a questão positivamente: será que a actividade de pensar, a actividade que nos impele a examinar tudo o que acontece, não é o que nos impede, ultimamente, de abraçar causas destrutivas?
O último volume inacabado de Hannah Arendt publicado a título póstumo, “Julgar”, assenta sobre a questão do julgamento compreendido a partir da sua raiz grega “krisis”, que remete para a capacidade de decidir e de fazer escolhas, que nos torna responsáveis pelo futuro face ao desmoronamento do mundo comum.
Se era a urgência do seu tempo, ela é de todos os tempos, sempre que se trata de dar sentido aos fundamentos democráticos e esclarecer os seus efeitos civilizacionais.
1 comentário:
É impossível exagerar a importância do pensar, ou, como diz António Damásio, a importância da consciência. Mas pensar e consciência só por si não são garantia de nada de bom. Os estalinistas pensavam e eram conscientes, assim como os nazis e muitos outros que perpetraram os maiores horrores, ao longo dos tempos. Ainda hoje, as máquinas de guerra e de destruição massiva continuam a ser do mais "pensado" e consciente que se pode imaginar e os indivíduos e grupos que dominam e controlam os poderes e as riquezas são dos mais "pensadores" e conscientes e inteligentes. Se quisermos encontrar inteligência é nos núcleos de interesses que são mais disputados. O sector financeiro é certamente um deles. Eles fazem a melhor escolha. A melhor escolha, do ponto de vista evolutivo e da economia dos sistemas vivos, é aquela que melhor serve os interesses do proprietário da racionalidade, que é um indivíduo. Até que ele processe, por efeito da cultura, que a melhor escolha do ponto de vista individual é a que recair sobre um interesse colectivo que não seja conflituante com interesses de indivíduos ou grupos mais fortes, pode decorrer uma eternidade, ou não, mas constatar que os problemas de composição de conflitos (e as relações humanas assentam em interesses que, por definição, são susceptíveis de gerar conflitos) são problemas de relação de forças e de poder, que se sobrepõem à neutralidade da matemática e da ciência, que serve todos igualmente, quer sejam estalinistas, nazis ou outros igualmente autoritários.
O paradoxo, ou a ilusão da melhor escolha é que ela é determinada em função de um indivíduo, do indivíduo que a faz, mas relativamente a um interesse, ou seja, a algo que é disputado pelos outros indivíduos e, se a solução procurada for mobilizar um grupo, a disputa agrega-se e amplifica-se. Nesta fase, já o conflito está institucionalizado e o pensamento e os valores mobilizados para "a melhor" escolha que é a que se impõe, numa inevitável identificação do melhor com o menor dos males possíveis.
Acredito na via institucional, nomeadamente jurídica e política, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem à cabeça, em permanente actualização, de modo a abranger a defesa e protecção da natureza e do ambiente saudável, iluminada pela ideia de Direito, sem conceder nos direitos naturais do indivíduo humano, como único e insubstituível dador, intérprete e destinatário de significado, de valor e de sentido, que o coloca no topo da hierarquia do que deve ser respeitado e defendido.
Mesmo que isto seja uma moeda de duas faces com implicações severas para o humano que ofender o humano.
Desde a consagração constitucional dos direitos fundamentais do indivíduo que a civilização deu sinais de ter realizado um salto evolutivo. Mas os sistemas totalitários reagiram de um modo brutal e desesperadamente demagógico e apocalíptico à necessidade de empoderamento real e físico do indivíduo, dos indivíduos, face a qualquer tipo de poder que não os respeite.
Lembremos que os Direitos Humanos não são meras advertências, ou proclamações de princípios solenes, para conforto psicológico ou ideológico dos indivíduos, uns perante os outros, mas baluartes de defesa contra os poderes, mormente estaduais, militares e policiais, de tal modo eles têm sido ameaça e ofensa efectiva desse valor máximo que a nenhum outro deve ser sacrificado.
Actualmente, uma ameaça notória e muito consentida pelos padrões de tolerância liberal do jogo capitalista ganha terreno, à custa da valorização do indivíduo e da protecção que lhe é devida. Os Direitos Humanos vão ter que se focar, não apenas na ameaça do Estado, militar e policial, mas também na ameaça dos poderes económicos e financeiros.
Que a actual pandemia nos inspire para concepções de prevenção e defesa do organismo humano, individual, que sirvam de modelo para defesa e prevenção de outras pandemias não menos perigosas e devastadoras.
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