quarta-feira, 2 de junho de 2021

PRONOME NO LUGAR CERTO É ELITISMO

Eugénio Lisboa recupera um texto antigo com uma accolade ao Nuno Pacheco:

A minha opinião sobre o Acordo Ortográfico é simples e transparente: trata-se de um exercício tão monumentalmente fútil quanto dispendioso. Um formidável desperdício que nunca resolverá o problema que ostensivamente visa resolver: a “defesa da unidade essencial da língua portuguesa” (cito João Malaca Casteleiro e faço notar que ele não fala em “unidade ortográfica” mas sim em “unidade essencial da língua portuguesa”). 

 A minha questão é só uma: como é que a unificação, aliás relativa, da ortografia – que não passa de uma simples convenção de escrita (mas com implicações etimológicas graves!) – pode ambiciosamente significar “a unidade essencial da língua portuguesa”, quando a gramática e uma parte substancial do glossário não farão outra coisa que não seja divergirem alegre e abundantemente, entre os sete países da CPLP? Divergência aliás salutar, por significar maior diversidade e riqueza... Divergência que já existe e não fará senão crescer à medida que os anos passem

. É realmente extraordinário analisar, mesmo superficialmente, a futilidade dos argumentos que são apresentados com toda a pompa e circunstância normalmente ligadas a “assuntos de Estado” que implicam o futuro da “pátria” e da sua “imagem” em “areópagos internacionais”. Citemos ainda Malaca Casteleiro: “O segundo motivo”, pondera o ilustre campeador do Acordo, “relaciona-se com a política externa do idioma. Do ponto de vista internacional, a escolha entre duas ortografias oficiais pode levantar problemas diplomáticos delicados e mesmo insolúveis.” É curioso que possam surgir mas que até hoje não tenham surgido. Porém, todas estas aflições “diplomáticas” ficariam, segundo os apologistas do Acordo (entre os quais se inclui, enfaticamente, o actual Ministro da Cultura), resolvidas com a (relativa) unificação da ortografia. Internacionalmente (e diplomaticamente), desde que se escrevesse “fato” por “facto” e “afeto” por “afecto”, não teria qualquer importância que, em documentos ou relatórios ou livros, encontrássemos coisas como estas, que recolho, sem dificuldade, de apenas dois livros, de dois grandes nomes da literatura brasileira do nosso tempo: 

- “Não vou aqui me gabar – mas vi Luzes da Cidade mais de vinte vezes”; 
-“... King Vidor queria dizer tudo para nós, os intransigentes em cinema...”;
- “Imagino a inveja em que não se terão”; 
- “Quem sabe não sou tão ingénuo assim”; 
“...uma atriz apenas passável (...) que sente, na madureza, o impulso de rever e reviver os seus admiradores...”; 
- “Não faz mal ser convencional assim”
- “Impuseram-lhe a predominância ao científico...”; 
- “põe-se a imitá-la, jogando folhas secas na água”; 
- “Esses «anjos da cara suja» tornaram-se um tratado de caceteações ambulante”; 
- “para mostrar ao público como se o engana claramente”; 
- “Ela com aquele arzinho levemente preocupado, tão buscadamente preocupado, e ele com aquela mesma simpatia quarentona. Uma pinóia”; 
- “no muro de um cineminha de subúrbio”; 
- “Ficou com os calungas da Lanterna Mágica”; 
- “Bobagem querer convencer o filho de tal pai...”; 
- “Mudaram os truques mas a bossa é a mesma”; 
- “Romance de Circo é uma joça”; 
- “Não é à toa que tanto literato agora deu para pintar”;
-  “Cinema, por exemplo, custa um dinheiro surdo”
- “Em lhe faltando o cujus, nada feito”; 
- “Só tenho vontade de pegá-lo e levá-lo a ir comer um tutu com linguiça na casa da gente”; 
- “Domingo mesmo, quando andei amolando Deus”
- “O público te paga para escrever, e você, em vez, fica a andar de bicicleta”; 
- “Eu também gosto de fita que tem índio e de fita que tem piratas”
- “Aí a moça dá um lenço dela para o mocinho que eu acho que estava resfriado”; 
- “Puxa, tem um duelo desgraçado no final de Robin com um outro cara, e o cara dá com a espada na cara do Robin”;
- "... mas tu não só podes pensar que eu estou mentindo, como há um sem número de gente que fica dizendo que eu estou é querendo me mostrar, fazer o farol, essa coisa”; 
- “Fui reto ao maître. Passei-lhe uma gaita gorda e ele me providenciou uma mesinha reservada bem perto dela”;
 - “Eu estou absolutamente disposta a esnobar ele. Eu acho que a gente deveria simplesmente começar a ignorar ele”; 
- “Qual você prefere? – perguntou o outro...”; 
- “O que fosse sugerido ele aceitaria em seguida”
- “Resolveu blefar”
-etc. etc. 

Destes dois livros de Vinicius de Morais e de Luis Fernando Veríssimo, seleccionei apenas alguns exemplos a esmo, os quais constituem menos do que a vigésima parte da colheita que poderia ter feito. Mas são exemplos mais do que significativos da profunda divergência, em termos gramaticais e de léxico, entre o português do Brasil e o português de Portugal. Divergências que aparecerão, gritantes, nos tais papéis dos areópagos internacionais e nas trocas de papelada entre chancelarias: e de modo tão evidente, que o pífio penteado ortográfico, em que tanto investimento se tem feito e se quer continuar a fazer, desaparecerá, pálido e insignificante, confrontado com a pujança divergente daquilo que constitui o cerne da língua – o glossário rebelde e a gramática impertinente. Pensar que um acordo ortográfico irá apagar as diferenças vitais e fundamentais – aquelas que realmente dão nas vistas – é não querer aceitar o óbvio. 

Dizia o célebre dicionarista americano Noah Webster (1750 – 1811) que a sua gramática era baseada neste princípio sagrado: “grammar is formed on language, and not language on grammar”. Webster aceitava perfeitamente a distinção (que incluía a ortografia) entre o “American English”, a que chamava com orgulho, “Federal English”, e o inglês de Londres (que considerava afectado e com o qual não queria confusões). Quem já andou por embaixadas, sabe perfeitamente que muitos brasileiros só quando não podem é que não troçam do português europeu, que consideram antiquado e um pouco ridículo (dizer “casa de banho” em vez de “banheiro” suscita-lhes a vis trocista ao mais alto grau...) Talvez, por isto mesmo, um personagem de uma crónica deliciosa de Luis Fernando Veríssimo observe, jogando à defesa e olhando de viés para a construção gramatical portuguesa: “Pronome no lugar certo é elitismo”. Como se vai resolver esta atitude bastante generalizada entre brasileiros? Unificando (só em parte) a ortografia? Passando a dizer, como eles, “planejando”, “equipe”, “estrogonofe” e outras coisas assim? Tenhamos a coragem de admitir, de uma vez por todas, que há um português ortónimo – o que se fala e escreve em Portugal – e vários portugueses heterónimos (os que se falam no Brasil, em Moçambique, em Angola, etc.) Que se falam e que se escrevem. Apagar esta heteronímia, tentar fingir que o português é só um, por via de uma tímida e ridícula unificação ortográfica é querer tapar o sol com uma peneira. Acham, a sério, que se pode confundir uma uniformização ortográfica com a “unidade essencial da língua”? Que “E embolaram” é da mesma língua que diz: “E pegaram-se à zaragata”? A sério que acham? Num tá bom da bola! 

Eugénio Lisboa

 P.S. Quando me encontrava em Londres, como conselheiro cultural da nossa embaixada, fui convidado pela rádio da BBC, para um “mano a mano” com a minha homóloga brasileira, para que cada um de nós dissesse as suas impressões sobre o português falado no país do outro. Eu disse, do português do Brasil, todo o bem que achava – e sentia-o, e pensava-o! - : que era uma língua fresca, viva, permanentemente inventiva e acolhedora dos bons neologismos, em suma, sedutora. E por aí fora. Quando chegou a vez da minha colega, gastou ela o seu tempo todo a achar ridículo, arcaico e mesmo grotesco o português falado e escrito em Portugal. Como exemplo, entre outros, deu, rindo estrepitosamente, o dizermos “casa de banho” em vez de “banheiro”. Isto, perante um moderador inglês que dizia, na sua língua, “bathroom”, tal como nós, em português de Portugal... À snobeira (esnobeira em “brasileiro”) parola, a minha colega achou maneira de acrescentar, com desenvoltura, uma total e distraída falta de cortesia.

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