Meu texto mais recente no jornal I:
Nos meus tempos mais juvenis fui
espeleólogo. Aos fins-de-semana –e também durante os dias de semana nas férias
– gostava de descer ao interior da Terra, para descobrir paisagens inusitadas,
com labirintos de galerias e câmaras, com tectos e chãos pejados de
estalactites e estalagmites, e com morcegos e insectos adaptados à vida na
obscuridade. Não conheço melhor sensação do que a de voltar à superfície depois
de horas a fio com a visão limitada às lanternas eléctricas ou aos candeeiros
de acetileno e reencontrar a luz solar, de dia, ou a luz das outras estrelas,
de noite. Ninguém conhece bem a luz se não tiver experimentado as trevas. A
espeleologia é um misto de desporto de aventura – exploram-se sítios onde nunca
ninguém foi – e de actividade científica – há que cartografar, investigar e
descrever as novas paisagens visitadas. Ao contrário do montanhismo, as vertigens
não são um problema: desce-se num escuro de breu. Mas a modalidade não é
recomendável para quem sofra de claustrofobia: dentro da Terra estamos no
“útero da Terra”, como que num regresso à nossa pré-história pessoal.
Vivi aventuras cuja lembrança me
toca. Desde remover pedras que escondiam espaços perfeitamente ignotos na serra
de Sicó até ser resgatado depois de muitas horas de aflição numa passagem
esconsa das grutas de Mira de Aire, mais abaixo que o percurso turístico. Desde
explorar a gruta do nascente do Almonda, em Torres Novas, até navegar com um
colega físico num rio subterrâneo esloveno, onde de vez em quando se abriam
vistas para o céu, na região chamada “karst” que deu origem à palavra
portuguesa “carso”, que designa paisagens calcárias como as das serras de Sicó
ou de Santo António. Nessas regiões abre-se, pela força química das águas, todo
um mundo maravilhoso debaixo dos nossos pés.
Foram lembranças desses tempos
que me vieram à memória quando agora li o livro Mundo Subterrâneo. Uma
Viagem pelas Profundezas do Tempo, com a chancela da Elsinore e da autoria
do escritor e montanhista inglês Robert Macfarlane, nascido em 1976. John
Banville, escritor irlandês que muito aprecio, não tem papas na língua a falar do
seu compatriota: “Mais ninguém escreve sobre o mundo natural com esta exactidão
lírica”. Macfarlane consegue combinar a precisão científica, resultado do seu
conhecimento do terreno, com uma atmosfera literária. O seu primeiro livro, sobre
as montanhas, Mountains of the Mind. (Granta e Pantheion, 2003) foi um
enorme êxito, dando-lhe vários prémios. Seguiram-se, entre outros, The Wild
Places (Granta e Penguin, 2007), The Old Ways (Penguin, 2012) e, para os mais jovens,
The Lost Words (Hamish Hamilton, 2017). Não há edições portuguesas
dessas obras.
As capas têm a estética de um artista
amigo do autor, Stanley Donwood, capista dos icónicos discos da banda rock Radiohead.
A capa do presente livro mostra um brilho ofuscante que irradia de um orifício circular
à volta do qual crescem árvores. Podemos pensar num poço de uma caverna visto
de baixo para cima. Mas, de facto, a gravura original “Nether” (Inferior), pretende
representar um vale com uma explosão nuclear ao fundo. Numa situação de catástrofe
nuclear, é debaixo da Terra que se estará melhor.
Adorei ler este livro, feito a partir
de viagens aos quatro cantos do mundo subterrâneo, entremeado de nomes de
cientistas - o autor cita Paul Crutzen, o Nobel da Química falecido em Janeiro
passado, que cunhou o termo “Antropoceno”; Stephen Jay Gould, o prolixo naturalista;
e Lynn Margulis, a bioquímica que casou com Carl Sagan) - e de nomes de grandes
escritores – entre vários outros, Walter Benjamin (As Passagens de Paris),
Italo Calvino (As Cidades Invisíveis), Lewis Carrol (Alice no País
das Maravilhas), Don DeLillo (Submundo), Edgar Allan Poe (A Queda
da Casa de Usher), Rainer Maria Rilke (Sonetos a Orfeu), W. G. Sebald
(Anéis de Saturno) e Júlio Verne (Viagem ao Centro da Terra). E
há inevitáveis clássicos como Platão (República, com o mito da caverna,
séc. IV a.C.) e Sigmund Freud (A Interpretação dos Sonhos, 1900). Faltam,
porém, outros nomes: por exemplo, Dante Alighieri (A Divina Comédia,
séc. XIV, com a descrição do Inferno) e Gaston Bachelard (A Terra e os
Sonhos do Repouso, 1946).
Contribuiu sobremaneira para a
minha boa leitura a tradução de Eugénia Antunes, tradutora, entre outros autores,
de Virgínia Woolf. Não será sua, mas do editor, a responsabilidade pela omissão
de uma fotografia do autor na Gronelândia referida nos agradecimentos. Mas
talvez já seja a de não indicar as edições portuguesas de muitas das obras referidas:
será esquisito para um português ler Verne em inglês e é sempre bom saber o que
existe na nossa língua.
O livro está dividido em três “câmaras”.
A primeira trata o “ver” (passa-se na Grã-Bretanha, incluindo sítios arqueológicos
no Somerset, uma profunda mina de sal no Yorkshire onde físicos procuram matéria
escura, e uma floresta nos arredores de Londres com uma “wood wide web” no
subsolo). A segunda trata o “esconder” (passa-se na Europa, incluindo os
subterrâneos de Paris e carsos na Itália e na Eslovénia). E a terceira trata o “assombro”
(passa-se no gélido Norte, incluindo arte pré-histórica na Noruega, glaciares
da Gronelândia e um depósito de resíduos radioactivos na Finlândia).
O convite à “descida” vem do
poeta modernista norte-americano William Carlos Williams: “A descida chama-nos/
tal como a subida nos chamava.” E esse convite é irresistível para conhecer as
várias funções do mundo subterrâneo: serve, segundo Macfarlane, para “abrigar
(memórias, substâncias preciosas, mensagens, vidas frágeis)”; para “dar
(informação, riqueza, metáfora, minerais, visões)”; e para “descartar
(resíduos, traumas, venenos, segredos)”.
Gosto de deixar excertos dos
livros, para que os leitores decidam se vale a pena mergulhar na leitura. Escreve
o autor de Mundo Subterrâneo, no seu sedutor estilo poético: “Se olharmos
para baixo, os nossos olhos não passam do húmus, do alcatrão ou da ponta dos pés.
Raras vezes me senti mais afastado do reino humano como quando me vi a meros
dez metros abaixo dele, nas mandíbulas cintilantes de um plano calcário de estratificação
que se formou no leito de um mar antigo.”
Mais à frente: “A escuridão pode
ser um meio de visão e a descida pode ser um movimento em direcção à revelação,
mais do que à privação e à perda. O verbo inglês ‘to understand”’ (entender,
compreender) possui em si um sentido antigo de passar por baixo (under)
de qualquer coisa para a compreender totalmente. (…) Mundo Subterrâneo é
uma crónica de viagens à escuridão, e de descidas encetadas em busca de
conhecimento. O seu itinerário vai desde a matéria negra formada aquando do
nascimento do Universo até ao futuro nuclear de um Antropoceno vindouro.” E, continuando
à volta das palavras: “A palavra humanitas em latim tem origem, em
primeiro lugar e acertadamente, em humando, que significa ‘inumar, inumação’,
que por sua vez vem de humus, ‘terra’ ou ‘solo’. (…) Ao ser sepultado, o
corpo humano torna-se um componente da terra, é devolvido ao pó de que nasceu: inumado,
é restituído à humildade.”
Quando o autor sai da mina onde físicos
tentam detectar matéria escura, sente o forte poder da luz: “Saio pela porta
para o dia abrasador e branco, para o céu azul com algumas nuvens, para o sol
reflectido em pára-brisas e correntes de metal, no alcatrão e nas folhas de
erva; a matéria negra não está e está à minha volta, para todo o lado, e vir ao
de cimo nesta luz ofuscante é como o penetrar na ignorância.” Não sabemos o que
é a matéria escura, mas é curioso que a procuremos no escuro.
E há a morte, que é também uma
entrada no escuro. Emocionou-me recordar a história de um dos mais famosos
acidentes da espeleologia: a queda mortal do francês Marcel Loubens na Pierre
de Saint Martin nos Pirenéus, uma das grutas mais fundas do mundo (atinge 1410
metros abaixo da superfície). Não foi na altura possível trazer o corpo para a
superfície, mas, passados dois anos, organizou-se uma expedição para dar a
Loubens uma sepultura normal, bem mais acima. Um jovem padre belga desceu ao
abismo e, com uma caixa de primeiros socorros a fazer de altar, rezou uma missa
por alma do espeleólogo. Foi a missa mais profunda celebrada até hoje. As páginas
que ele escreveu sobre essa sua experiência ligam teologia e geologia: “Jamais
voltarei a celebrar uma missa num lugar tão intimamente ligado ao Divino Sacramento
(…) Nesta vasta caverna teremos parecido mais insectos do que seres humanos.
Porém, as nossas almas incandesciam.” Macfarlane recorda também a reclusão de
um grupo de rapazes tailandeses numa gruta inundada. O primeiro mergulhador que
os encontrou prometeu: “Virá muita gente”. E veio, salvando-os. Mas morreu um
dos salvadores.
Mundo Subterrâneo acaba
com o regresso à superfície. O autor reencontra então o filho: “Corro para o
alcançar, chamo por ele, e ele vira-se para mim na orla do bosque. Ajoelho-me
no chão ao mesmo tempo que ele levanta a mão no ar, com os dedos bem afastados
uns dos outros. Imito-lhe o gesto e encosto a mão à dele, palma contra palma,
dedo contra dedo, e a sua pele, na minha, parece-me estranha como se fosse pedra.”
Esta cena remete para a primeira figura do livro: uma impressão palmar na gruta
de El Castillo, na Cantábria, Espanha, um dos maiores complexos de arte
rupestre, remontando a 40 000 anos. Na palma da mão está a marca da
humanidade, ontem do artista para a pedra e hoje do pai para o filho.
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