"Uma escola descentrada da sala de aula, em que os alunos se espalham por espaços informais, com os seus computadores portáteis, cruzando-se com os professores na biblioteca e discutindo projectos – é esta a visão que a [empresa] tem para o ensino em Portugal (...). "O ensino está a mudar" [diz a arquitecta da empresa] 'hoje não se centra apenas no ministrar de conhecimento e competências básicas de professor para aluno. Vai mais longe. Há princípios que a escola tenta divulgar que têm a ver com um melhor acesso à informação, uma capacidade para gerir essa informação' (depoimento prestado à jornalista Alexandra Prado Coelho, in Público - aqui).
A frase acima reproduzida, entre muitas que poderia usar, remetem para um tempo, ainda recente, em que, em Portugal, as empresas tendiam a actuar de modo isolado junto do sistema educativo e das escolas. Estávamos, como quase todos os países da Europa, muito "atrasados" por comparação à América do Norte e do Sul, onde os consórcios de empresas se têm tornado regra. É preciso dar o salto, evoluir...
E foi o que fizeram quarenta e dois empresários portugueses ao formalizarem, há pouco, uma associação comprometida com a "mudança profunda no ensino". Em nome da inovação usam, como é costume, velhos argumentos (ver aqui e aqui):
1) ESTADO DE NECESSIDADE - a Europa, com destaque para Portugal, não está a conseguir assegurar, através da escola as competências para se assegurar o futuro;2) COMPETÊNCIAS EXIGIDAS - sobretudo as que se prendem com o uso das novas tecnologias de informação e comunicação;3) URGÊNCIA - é preciso romper imediatamente com o passado. A escola precisa de se adaptar à lógica da/s empresa/s;4) BENEFICÊNCIA - as empresas oferecem ajuda aos sistemas educativos e às escolas para que os países e o mundo possam superar os complexos desafios com que se vêem confrontados, com destaque para a sustentabilidade e o apoio aos mais frágeis.
Face a esta mudança de mãos da educação pública, do Estado para as empresas, nada de crítica ou debate, nada de indignação ou reivindicação. A tranquilidade, a concordância e, até, o entusiasmo, são as marcas que ficarão na História a este respeito.
Quando, século adiante, se estudar a extinção da Escola, poucas décadas depois de a termos conseguido alargar a todos, por certo, quem o fizer terá dificuldade em compreender... Ou, talvez não, poderá ser que a sua visão já se tenha desvinculado do direito universal à educação. À educação, já se vê, no sentido de educar, não de preparar capital humano.
6 comentários:
Após a anarquia republicana do princípio do século XX, a Igreja Católica, com Salazar e Nossa Senhora de Fátima, retoma o poder em Portugal, no fim dos loucos anos vinte, poder que voltará a perder no dia 25 de abril de 1974. Os resquícios de autonomia política que a Inglaterra, principalmente, então nos tolerava, foram-se com a revolução dos cravos. Agora, até assuntos comezinhos, em tempo de Covid, como a marcação da final da Champions para o Dragão, ou a invasão do nosso Algarve por turistas estrangeiros, já não dependem das decisões dos portugueses.
O desenvolvimento da educação, que deveria ser um dos grandes desígnios nacionais, continua a fazer-se com Humanidades e Ciências.
Infelizmente, para Portugal, um país essencialmente turístico, onde se ama o futebol, os especialistas estrangeiros acham que, para quem é, bacalhau e coaching educativo bastam!
À partida, embora as iniciativas privadas motivadas pelo lucro mereçam grande desconfiança, porque se trata de um objectivo sem critério, susceptível de conduzir às maiores aberrações e de ter um efeito de distorção geral no modo como as pessoas tendem a encarar os negócios, tanto patrimoniais como pessoais e familiares, e a própria vida, com reflexos na erosão dos valores e na própria interiorização e compreensão dos mesmos, porque artificializa tudo e tudo faz crer ser convertível nessa moeda que é o único critério seguro dos valores, concedendo ao Estado o benefício da dúvida sobre ser ele garante e depositário idóneo de valores mais alevantados, veria como uma oportunidade, para o Estado, esta apetência dos mercadores e dos especuladores capitalistas para tirarem vantagem de uma área social cujo potencial económico, até aos olhos de quem não é investidor experimentado, ou aventureiro, é enorme.
Independentemente de esses empreendedores, ou outros, terem o direito de criar escolas e de defender um ensino diferente do que é proposto pela Escola Pública, se o Estado garantir que as escolas deles e as do Estado, serão igualmente acessíveis a qualquer cidadão que o pretenda e se essas escolas estiverem subordinadas às mesmas regras de avaliação geral e final das escolas públicas, onde está o mal?
Entre os problemas de que o ensino privado poderá ser acusado de causar está o de funcionar em regime diferenciado e diferenciador, por exemplo, quanto à admissão de alunos e quanto à oferta educativa.
O Estado não tem de, nem pode, concorrer com os privados, mas estes não têm direito nem podem legitimamente esperar ficar com a parte mais interessante da vaca, sem arcarem com os custos e a responsabilidade da parte que não lhes interessa.
Um autêntico retrocesso civilizacional.
À Alexandra Prado Coelho perguntar-lhe-ia: que escola frequentou que a tornou tão assertiva?
Prezado Rui Ferreira,
Agradeço o seu comentário. Fez-me perceber que não me tinha explicado bem: Alexandra Prado Coelho é a jornalista que assina o artigo que refiro, centrado na entrevista a uma arquitecta que, à altura, falava por uma empresa com protagonismo na renovação dos edifícios escolares. Já emendei.
Cordialmente,
MHDamião
«A maior riqueza de um país, são as imensas reservas de inteligência existentes nas amplas camadas populares que só podem revelar-se numa atmosfera de progresso.» [António Aniceto Monteiro]
Entendendo as reservas de inteligência como a maior riqueza de um país, aos "empreenderores" não lhes pode ser concedido nenhum direito de usar, como entenderem, aquilo que não lhes pertence.
A atmosfera de progresso, deve ser o que resultar da vontade da maioria.
Todos os dias temos provas de que a vontade do poder financeiro se impõe ao politico. A um poder politico, que não cuida dos interesses da maioria que o elegeu... É por isso evidente o motivo pelo qual a atmosfera de progresso não se verifica "eles comem tudo".
A atmosfera que temos é de grandes desigualdades entre pessoas, e não se diga que os grandes grupos económicos não são responsavéis por isso, pois não pagam na mesma moeda, e de acordo com o lucro que retiram do trabalho daqueles que exploram.
Dirão alguns que se o Estado não cumpre as suas obrigações, então que avancem os privados... pura ignorância, num mundo em que os paises mais previligiados do mundo se irá medir pelo grau de desenvolvimento da Inteligência Artificial (IA), e em que muitos já se encontram a anos-luz daquilo que somos... vamos então entregar a maior riqueza a "merceeiros" empreendedores, não é já sintomático que perto de 40% dos alunos opte já pelo ensino profissional!!!
Eu estou em crer que este país já se encontra irremediavélmente perdido e colocado num estado de menoridade intelectual, tal como alertava, algures, no século passado o professor Sebastião e Silva, numa tentativa de evitar que isso viesse a acontecer.
Neste país inho à beira-mar
.plantado.
E é isto.
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