Meu artigo no último As Artes entre as Letras:
No próximo ano irão-se completar 200
anos desde que o Brasil é um país independente, assim como vai fazer 100 anos
que Gago Coutinho e Sacadura Cabral realizaram o primeiro voo entre Portugal e
Brasil. Mas, para isso, houve que descobrir o Brasil. No passado dia 22 de
Abril fez 521 anos que a armada capitaneada por Pedro Álvares Cabral
chegou a Porto Seguro, revelando um território, a que chamaram “ilha de Vera
Cruz”, até então desconhecido dos europeus. Muito provavelmente houve outros, como
o espanhol Vicente Yañéz Pinzón, que pisaram um pouco antes o solo brasileiro,
mas foi a viagem de Cabral que ficou na história, pelas consequências que teve.
Sabemos o essencial dessa
descoberta ou “achamento” do Brasil por um extraordinário documento da pena de
Pêro Vaz de Caminha, escrivão da armada.
Esse documento, que hoje, por determinação da UNESCO, é Património da
Humanidade, permaneceu ignoto até ser descoberto na Torre do Tombo em 1773,
tendo a sua primeira publicação ocorrido apenas em 1817, no Rio de Janeiro.
Depois disso tem havido numerosas edições. Uma das mais recentes deu-se no volume 4, Primeiros Relatos de Viagens
e Descobrimento, das Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa, direcção
de José Eduardo Franco e minha, no Círculo de Leitores. Foram autores da
introdução Alexandra Pelúcia e João Paulo Oliveira Costa, ambos historiadores
da Universidade Nova de Lisboa.
Mas a mais recente edição do
texto de Caminha acaba de sair na editora Guerra & Paz: Carta de Achamento
do Brasil, um volume da colecção “Não ficção. História”, apoiado pela
Câmara Municipal de Santarém, a cidade onde jaz Pedro Álvares Cabral. Tem a enormíssima
mais valia de uma apresentação de 26 páginas de Onésimo Teotónio Almeida, o
professor de Estudos Portugueses e Brasileiros na Universidade de Brown, Providence,
nos Estados Unidos, que tem o significativo título (o autor é exímio em
títulos) de “A Carta do Deslumbramento com o Brasil”. Em comparação com a
edição atrás referida, a linguagem desta nova edição está num português mais
moderno, ainda que fiel ao original. “Deslumbramento” é a palavra certa para
descrever o tom com que Caminha fala dos habitantes de Vera Cruz, os índios tupinambás
e tupiniquins, que ainda não tinham chegado ao Neolítico. Deu-se um curto-circuito
no tempo! Caminha e seus companheiros tinham chegado a uma terra diferente,
povoado por criaturas que, até por andarem nuas, faziam lembrar Adão e Eva. O
olhar europeu não é agressivo nem sequer crítico, mas sim maravilhado e cândido.
Escreve Onésimo de um modo muito
claro: “A carta de Caminha é algo inteiramente novo e, repita-se, um documento único
na história da humanidade. Estou consciente de que me restrinjo à “humanidade europeia”
(e especificamente ocidental), mas na minha vasta ignorância não tenho notícia
de nada que se lhe assemelhe. Nem Marco Polo revela tal candura perante o inesperado,
o maravilhoso descoberto.” E mais adiante: ”Não houve apreensão de naturais
para levar para o reino; pelo contrário, optou-se por deixar ali dois degredados
que, em castigo dos seus crimes, ficaram incumbidos da missão de viver com os índios,
aprender sobre os seus costumes e colher informações sobre o que pudesse
existir naquelas paragens. (…) Temos um Pedro Álvares Cabral politicamente correcto
com quinhentos e tantos anos de avanço sobre nós. Conhecem um documento mais
moderno? Terei todo o gosto em descobri-lo.”
Vale a pena cotejar a
apresentação com o original: vejamos como o escrivão vê os índios em três
passagens: “Quando o batel chegou à boca do rio estavam ali 18 ou 20 homens pardos,
todos nus, sem nenhuma coisa que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam
arcos e setas.”(…) “Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e
bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas
vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós
as olharmos bem, não tínhamos nenhuma vergonha.” (…) “Entre todos estes que
hoje vieram, não veio mais que uma mulher moça, a qual esteve sempre na missa e
a quem deram um pano com que se cobrisse, pondo-lho em redor de si. Mas ao
sentar-se não fazia memória de o estender bem para se cobrir. Assim, Senhor, a
inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior quanto à vergonha.”
Há outros dois textos escritos em
terras de Vera Cruz por altura do seu “achamento”. Um em italiano, traduzido decerto
de um original português entretanto perdido, concorda bastante com o de
Caminha. E uma carta de Mestre João para D. Manuel, contendo informação técnica
e não referindo os indígenas. Mestre João é o espanhol João Farras, “físico e cirurgião”
do rei de Portugal: a sua carta certifica que ele foi o autor das primeiras observações
astronómicas na América do Sul.
Tem havido alguma discussão sobre
o termo “descoberta”. Onésimo lembra uma
coisa óbvia: descobrir não é criar. Se é
certo que a descoberta foi recíproca, não é menos certo que os navegadores é
que se deslocaram ao Brasil. Como os índios estavam numa fase anterior à escrita,
os relatos escritos foram apenas os dos descobridores europeus. O historiador inglês
David Wootton no seu livro A Invenção da Ciência (Temas e Debates) diz
que a palavra “descoberta” surgiu na língua lusa, a partir do étimo latino. O termo começou a ser usado em português em 1484, tendo aparecido
em 1551 no título de um livro, a História do
Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses, de Fernão Lopes de Castanheda. Em
francês só apareceria em título de livro em 1553, em inglês em 1563 e em alemão
em 1613. Os portugueses descobriram novas terras, novas espécies, novas
culturas e até… novo céu: Mestre João o fez e Pedro Nunes o disse. E descobriram
a palavra “descoberta”!
Vale a pena ler ou reler a carta
de Pêro Vaz de Caminha, muito bem apresentada por Onésimo Teotónio Almeida. A
leitura evidencia o que o apresentador diz: foi um encontro pacífico, com os
descobridores europeus espantados com indígenas que pareciam vindos do Génesis,
antes do pecado original. Repare-se na influência dos índios sobre os navegadores:
Como os primeiros não tinham vergonha, os segundos perderam a sua…
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