Minha recensão no jornal I de quinta-feira passada:
Se compreendemos o mundo através
do cérebro, é natural que o nosso cérebro, que evidentemente faz parte do
mundo, tente compreender-se a si próprio, procurando saber o que é e como
funciona. Por ser o objecto mais complexo do Universo – o número de neurónios é
comparável ao número de estrelas na Via Láctea, estando cada um dele ligado aos
outros por milhares de conexões –, o cérebro constitui a última fronteira da
ciência. Nas últimas décadas, as Neurociências têm-se desenvolvido
extraordinariamente, acumulando todo um manancial de dados sobre o nosso
sistema nervoso, onde o cérebro é central. Mas os seres humanos, alicerçados na
informação recolhida, precisam de metáforas para sustentar a sua compreensão. O
paradigma do nosso tempo para o funcionamento do cérebro é o computador, a máquina
multiusos que inventámos para que, através de algoritmos, um certo input
dê origem a um certo output. O cérebro é uma máquina desse tipo, porque
esse órgão associar certos outputs (pensamento e acção) a
inputs (dados sensoriais) que está constantemente a receber. Mas o nosso cérebro
– e de resto o dos outros animais, uma vez que todos eles têm uma origem comum na
história natural – faz mais do que fazem os actuais computadores (por outro
lado, também faz menos: por exemplo não joga xadrez tão bem). Uma diferença é
que os algoritmos cerebrais estão sempre a ser reescritos, à medida que entram
novos dados. Dados e algoritmos interpenetram-se. É isso que fazem, embora com
óbvias limitações, os modernos sistemas de inteligência artificial. Se podemos
dizer que o nosso cérebro é um computador, devemos acrescentar que é um
computador muito especial, capaz de aprender a partir da sua interacção com o
mundo. A evolução capacitou-o para triunfar.
No passado, já usámos outras
metáforas para descrever o cérebro. Por exemplo, o francês René Descartes
desenvolveu, no século XVII, uma analogia hidráulica na sua tentativa de
compreender o que se passa na nossa cabeça. Na viragem do século XIX para o
século XX, o espanhol Santiago Ramón y Cajal, laureado com o Nobel da Medicina em
1906 pela sua identificação dos neurónios como células do cérebro (há outras,
como as glias, que suportam os neurónios) recorreu à imagem de uma rede
telegráfica, para explicar que os neurónios eram os nós de uma rede onde se trocava
informação. Cada tempo desenvolve, portanto, as suas metáforas, baseado muitas
vezes em artefactos ou tecnologias comuns na época e são essas ideias ou visões
do cérebro que fornecem o quadro para o desenvolvimento de novas investigações.
Acaba de sair sobre este fascinante
tema o livro Uma História do Cérebro. O Passado e o Futuro da Neurociência,
do prelo da Temas e Debates – Círculo de Leitores, ao qual, de resto, devemos
tantos e tão bons ensaios de ciência (basta lembrar que é a editora de António Damásio,
o neurologista português estabelecido nos EUA). É seu autor Mathew Cobb
(nascido em 1957), professor de Zoologia na Universidade de Manchester, em
Inglaterra (a Universidade onde trabalhou Alan Turing, um dos génios da
computação do século passado). Doutorou-se em Psicologia e Genética na
Universidade de Sheffield, porque queria perceber o comportamento sexual das
moscas-da-fruta e tem investigado o olfacto, o comportamento dos insectos e a história
das ciências. Este é o seu primeiro livro traduzido em português, mas outros
seus livros de divulgação científica – destaco The Egg and Sperm Race: The 17th-Century
Scientists Who Unravelled the Secrets of Sex (2007) e Life's Greatest Secret: The Race to
Crack the Genetic Code (2020) – teriam decerto entre nós leitores interessados,
até porque foram premiados ou foram finalistas de prémios. O livro que acaba de
sair entre nós foi considerado por jornais britânicos de referência como um dos
melhores livros de 2020, tendo sido finalista do prestigiado prémio Baillie
Gifford de Não-Ficção. Curiosamente, Cobb é também autor de dois livros sobre a
resistência francesa na Segunda Guerra Mundial.
O título História do Cérebro não
é inteiramente revelador, pois a obra não trata da evolução do cérebro ao longo
da história natural, mas sim da evolução das nossas ideias sobre o cérebro. O
original é precisamente The Idea of the Brain. É uma história não do
cérebro, mas sim da ciência do cérebro. O livro segue uma ordem temporal, estando
estruturado em três capítulos: “Passado”, “Presente” e “Futuro”. O “Passado” vai
até 1950, encontrando-se nele secções sobre as primeiras noções do cérebro
desde que o médico flamengo Andreas Vesalius representou a sua anatomia na obra De Humani Corporis
Fabrica (organizei uma sessão sobre esse livro na Biblioteca Joanina na
qual Maria de Sousa falou sobre o cérebro: V. Meu Dito, Meu Escrito,
Gradiva, 2014). Alguns títulos dessas secções são “Forças: séculos XVII e XVIII”,
“Eletricidade: séculos XVIII e XIX”, “Evolução: século XIX”, “Neurónios:
séculos XIX e XX”, “Máquinas: 1900 a 1930” e “Controlo: 1930 a 1950”. Já no “Presente”,
convenhamos que um pouco alargado, o autor trata da moderna noção do cérebro
como um computador: algumas secções são ”Memória”, “Circuitos”, “Computadores”,
“Química” e “Consciência”, sempre de 1950 até hoje. No capítulo sobre o “Futuro”, o mais curto, o autor apresenta uma síntese das questões atuais.
Segundo ele, o estudo do cérebro encontra-se num impasse, apesar da profusão de
dados, designadamente as imagens do funcionamento interno do cérebro obtidas
por uma técnica designada pela sigla inglesa fMRI (em português, Imagem por
Ressonância Magnética Funcional). É preciso um novo enquadramento. São
numerosas as notas bibliográficas no final (mas só raramente são dadas as
edições disponíveis em português) e há, ao contrário do que infelizmente é costume
entre nós, um muito útil índice remissivo (foi por aí que fiquei rapidamente a
saber que nem Damásio nem Egas Moniz constam desta História do Cérebro.)
Para apresentar as sucessivas
ideias do cérebro, o autor parte de uma citação do médico dinamarquês
seiscentista Nicolaus Steno, que acumulava a sua actividade pastoral de bispo
católico (foi beatificado pelo papa João Paulo II em 1988) com a actividade
científica em anatomia e geologia. No seu Discours
sul l'Anatomie du Cerveau (Paris,
1669) escreve: “Sendo o cérebro na verdade uma máquina, não devemos esperar
descobrir o seu artifício através de outras vias diferentes daquelas usadas
para descobrir o artifício de outras máquinas. Resta pois fazermos aquilo que faríamos
com qualquer outra máquina: quer dizer, desmantelá-la peça a peça e considerar o
que estas podem fazer separadamente e em conjunto.”
Ora reside aqui o busílis da questão.
Os neurónios podem fazer coisas em conjunto que não podem fazer separadamente.
Fomos percebendo ao longo do tempo que as capacidades do cérebro, das quais a
mais relevante é a consciência, são “propriedades emergentes”: o todo é maior
do que a soma das partes. Por outras palavras, a atitude reducionista preconizada
pelo bispo não funciona. Esse é também
um erro comum de alguns caminhos da ciência: se na mecânica de Newton se partia
do simples para explicar o complexo, nas modernas ciências da complexidade, que
só se tornaram possíveis com o advento do computador, a totalidade não pode ser
explicada pela redução aos seus elementos. Um cérebro é muito mais do que um conjunto
dos neurónios, que enviam sinais eléctricos de uns para os outros numa confusão
de disparos. O segredo do cérebro está na interacção entre as suas unidades. Recomendo
um livro actual que explica bem como
funciona o nosso cérebro: Cérebro em Acção. Nos bastidores do cérebro em
constante mudança, do neurologista norte-americano David Eagleman (Lua de
Papel, 2021, com prefácio meu).
Que tipo de computador é o cérebro?
Para Cobb mais do que novos dados precisamos de novas metáforas. Escreve ele: “Os
cientistas ficam muitas vezes entusiasmados quando percebem que as suas
opiniões foram moldadas pelo uso de metáforas e compreendem que novas analogias
poderão alterar a forma como entendem seu trabalho, ou até permitir-lhes imaginar
novas experiências.“ Pode ser, conclui, que “uma nova tecnologia por imaginar
venha a mudar todas as nossas perspectivas fornecendo uma nova metáfora radical
para o cérebro; ou que os nossos sistemas computacionais nos forneçam um alarmante
novo vislumbre, ao tornaram-se conscientes; ou que novo enquadramento venha a
emergir da cibernética, da teoria do controlo, da teoria da complexidade e dos
sistemas dinâmicos, da semântica e da semiótica; ou que venhamos a aceitar que
não há teoria a ser descoberta, porque os cérebros não têm uma lógica global.”
De que eu gostei mais neste impressionante
livro de 503 páginas? Do estilo envolvente do autor, que conta histórias e controvérsias
científicas. Quem não sabe fica a saber que a ciência é um confronto permanente
de ideias. E do que gostei menos? Da tradução, que, embora não prejudicando a fluência
da leitura, está demasiado colada ao inglês original. Encontrei até a palavra “compreensível”
quando devia ser “abrangente”. Este é um livro compreensível, pois se percebe muito
bem, e é também abrangente, pois trata de vários assuntos, integrando-os harmoniosamente
através da história das ciências, que é um excelente meio de apresentar as
ciências. Uma História do Cérebro é o melhor guia que conheço para quem
queira saber o que o nosso cérebro, ao longo dos tempos, tem vindo a aprender
sobre si próprio.
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