Meu texto no último JL, que é a primeira parte do prefácio do livro "O Cérebro em Acção", de David Eagleman, que acaba de sair na Lua de Papel:
No
pátio do Templo de Apolo em Delfos lia-se a inscrição “Conhece-te a ti mesmo” –
gnóthi seauton, transliterado do grego. De certo modo toda a ciência – e,
indo mais além, toda a filosofia – procura responder a este imperativo da
Grécia Antiga.
A
ciência é, em geral, o conhecimento do mundo, do qual o ser humano faz parte.
Tanto quanto sabemos, nós, Homo Sapiens, somos a única parte do mundo que
o pode conhecer nas suas várias escalas de espaço e de tempo, do muito pequeno
ao muito grande, do muito antigo ao tempo de hoje. E somos a única parte do
mundo que se autoconhece. O ser humano tem esta possibilidade de conhecer e de
se conhecer, uma possibilidade que a vontade pode materializar. São várias as
perguntas colocadas por nós e só em parte respondidas: Quem sou eu? Que relação
tenho com o mundo onde eu sou? Que mundo é este onde eu sou?
Perante
estas questões, o cérebro afigura-se como a última fronteira, o “santo dos
santos”, do nosso conhecimento, o instrumento de conhecer, mas também um
objecto, o mais complexo de todos, que importa conhecer. É a parte de nós próprios
que, ligada aos sentidos, nos permite fazer representações do mundo e, em
função das nossas experiências desde o início da vida até à actualidade, formar
a nossa própria consciência, o nosso autoconhecimento.
Com
o progresso da ciência, avançámos muito desde o tempo em que o médico belga
Andreas Vesalius, em 1543, no seu atlas de anatomia De Humani Corporis
Fabrica, mostrou o cérebro de um cadáver. Ou desde a altura em que, no
final do século XIX, o médico espanhol Santiago Ramón y Cajal, revelou, com a
ajuda do microscópio, as células do cérebro, os neurónios, e as suas ligações
arborescentes.
Por
muitos mistérios que ainda encerre, e eles são muito numerosos, sabemos que um
cérebro não passa, fisicamente, de uma rede de neurónios envolvida por outros
tipos de células, que lhes servem de “cola” e de apoio funcional. Hoje vivemos
no tempo das Neurociências, um tempo no qual poderosos meios das ciências
físicas, como as técnicas de Ressonância Magnética Funcional, permitem olhar
para o interior do cérebro e observá-lo em funcionamento. Começámos, por
estranho que isso pareça, a poder ler a mente de outra pessoa, sem falar com
ela, nem ler nada que ela tenha escrito.
O
astrofísico norte-americano Carl Sagan explicou, na sua obra-prima Cosmos (Gradiva,
edição ilustrada, 2001), o que é um cérebro: “Cada um de nós tem talvez cem mil
milhões de neurónios, comparável ao número de estrelas da Galáxia ou Via Láctea.
Muitos neurónios têm milhares de conexões com os seus vizinhos. Há
aproximadamente 1014 conexões semelhantes no cérebro humano.” Esta
comparação astronómica justifica o conhecido verso de Emily Dickinson: “O
Cérebro é mais amplo do que o Céu.”
E o
que faz um cérebro? Sagan responde: “O cérebro faz mais do que lembrar. Compara,
sintetiza, analisa, chega a abstracções. Somos capazes de imaginar, muito mais do
que o conseguem os nossos genes. É por isso que a biblioteca do cérebro é dez milhares
de vezes maior do que a biblioteca genética. A nossa paixão pelo saber, evidente
no comportamento de qualquer criança que aprende a caminhar, é o instrumento da
nossa sobrevivência.”
Como
é que o cérebro faz aquilo que faz? Uma explicação simples e abrangente – a
plasticidade do cérebro – é dada pelo neurocientista americano David Eagleman (nascido
em 1971), professor na Universidade de Stanford, na Califórnia, também CEO da empresa
Neosensory, que fundou para explorar a aplicação de órgãos de sentidos
artificiais, e ainda director do Centro de Ciência e Lei, que se ocupa das
implicações legais das Neurociências.
Ele
é uma espécie de Carl Sagan das Neurociências. Não contente por ser um
grande cientista, com trabalhos sobre a plasticidade do cérebro (o tema central
deste livro), investigou a consciência humana do tempo (fez experiências de bungee
jumping para perceber melhor a sensação de tempo numa queda livre) e a sinestesia
(fenómeno que consiste na percepção de um estímulo de um modo diferente da
habitual, por exemplo, a percepção dos números como cores). Na escrita de
divulgação científica, Eagleman pede meças não só a Sagan, mas também a outro
grande escritor já falecido: o neurologista anglo-americano Oliver Sacks, autor
de bestsellers como O Homem que Confundiu a Mulher com um Chapéu (Relógio
d’Água, 2004).
Eagleman
revelou os seus extraordinários dotes de comunicador de ciência no livro O Cérebro.
À Descoberta de Quem Somos (Lua de Papel, 2017), associado à série de televisão
The Brain with David Eagleman (2015), que passou na PBS e na BBC. Tal
como Sagan, Eagleman soube juntar a televisão e a edição impressa, mostrando
que esses meios não são inimigos. É autor de outros livros, dois traduzidos
para português entre os quais uma Cogito
Ergo Sum: Quarenta Histórias da Vida para Além da Morte, uma obra
desconcertante de ficção, com base científica, que merece reedição.
A ideia
de plasticidade é que o cérebro é moldável: adapta-se à experiência do mundo,
no sentido em que a passagem de sinais eléctricos nas conexões entre os
neurónios é continuamente reconfigurada. O título Cérebro em Ação procura
traduzir para português o título original Livewired, moldável em
directo, que contrasta com hardwired, ou fixo. A ideia é explicada por
Eagleman com um estilo que nos cativa:
“A
nossa espécie conquistou com êxito todos os recantos do planeta porque
representa a expressão mais elevada de um truque que a Mãe Natureza descobriu:
em vez de pré-programar completamente o cérebro, o melhor é dar-lhe as peças
básicas de construção e, depois, lançá-lo ao mundo. O bebé chorão acaba por
parar de chorar, olha em volta e absorve o mundo que o rodeia.”
Nós
fomos bebés chorões, que parámos a certa altura de chorar, uma actividade que
prejudica a percepção dos sentidos, para passar a absorver com o maior cuidado o
mundo que nos rodeia. Já que estávamos neste mundo, importava conhecê-lo… A
tese essencial de Eagleman exposta no presente livro já estava em O Cérebro.
À Descoberta de Quem Somos (o leitor faça o favor de o ler, se ainda o não fez!):
a nossa interacção do mundo muda constantemente o nosso cérebro, preparando-o melhor
para novas situações.
O
volume que o leitor tem nas suas mãos porá o seu cérebro a pensar sobre
situações reais que provavelmente nunca pensou serem possíveis, como, por
exemplo, logo no início, a história de um jovem que, apesar de ter ficado sem metade
do cérebro, conseguiu recuperar quase
totalmente a sua actividade normal.
No
final da introdução, uma espécie de trailer dá-nos, sob a forma de
perguntas, um rol de situações curiosas que nos vão intrigar: “Este livro
mostrará como é que o nosso cérebro está permanentemente a reconfigurar os seus
próprios circuitos e o que isso significa para as nossas vidas e para os nossos
futuros. Pelo caminho, a nossa história será iluminada por muitas perguntas:
porque é que as pessoas nos anos 1980 (e apenas nos anos 1980) viam as páginas
dos livros como ligeiramente vermelhas? Porque é que o melhor arqueiro do mundo
não tem um braço? Porque é que sonhamos todas as noites e o que é que isso tem
a ver com a rotação do planeta? O que é que a ressaca de drogas tem em comum
com um desgosto de amor? Porque é que o inimigo da memória não é o tempo, mas
sim outras memórias? Como é que um cego aprende a ver com a língua ou um surdo
aprende a ouvir com a pele? Seremos capazes, um dia, de conhecer os pormenores
essenciais da vida de alguém a partir da estrutura microscópica inscrita na sua
floresta de células cerebrais?”
(...)
1 comentário:
Dir-se-ia que nada está pré-programado, mas que existem condições para as coisas serem. Não existem condições para o que não acontece. E o que acontece, ainda que não saibamos as causas, ou condições, é o que é susceptível de conhecermos, a partir da memória. São factos. Memória. Passado.
A causalidade terá a ver com a nossa relação consciente, em diferido, descontínua, irregular, episódica, variável e nem sempre controlável, com tudo. A nossa consciência permite o nosso conhecimento, que é sempre “reportagem”, memória, desactualizada, daquilo que acontece. Digamos que o conhecimento está para a realidade assim como os factos estão para o devir. A consciência, ela própria, como facto, parece não existir. Mais lembra o comboio da realidade, ou fluxo, que não para em sítio nenhum e que estamos constantemente a perder. O passado não é senão memória, não tem lá nada que não seja registo de imagens, sons, etc.. Temos consciência muito esquiva do presente que logo se faz consciência de memória. Até o futuro, não existe senão na memória do que futuramos. Se não tivéssemos memória, teríamos alguma percepção do tempo? Ou, até, alguma representação da realidade?
A ciência inventou um teatro e uma linguagem para representar a realidade, num tempo em que não havia fotografia nem filmes e isso trouxe as vantagens que são conhecidas.
Assim como a literatura e o teatro e as artes, em geral, fixavam ou congelavam a realidade no presente e a filosofia procurava dar-se conta das realidades e suas razões, significando-as e explicando-as, as ciências criaram um método “intemporal” de observação e de consciência da realidade, enquanto fenómeno temporal.
No que respeita ao cérebro, os incríveis avanços revelam-nos o que acontece, em termos de física de partículas, por ex., quando percepcionamos um objecto, movemos os olhos, voluntaria ou involuntariamente, reconhecemos esse objecto, pensamos sobre ele, decidimos tocá-lo e fazemos o movimento e registamos a memória disso ou, simplesmente, ignoramos, etc..
Os neurocientistas e os cientistas da física de partículas, ou do que quer que constitua a vida, ao serem capazes de explicar como é que a matéria, ou o “plástico” que existia no momento do big-bang se foi reorganizando ao ponto de se tornar sensível (homeostático?) e de ganhar um critério de reorganização que já parece uma racionalidade diferenciadora entre dois ou mais termos, e como evoluiu, por selecção natural, para formas de reorganização, nomeadamente nervosa, capazes de memória e de sentimento e de consciência, etc., acabam por mostrar que a ideia de programa é ela própria a ideia das condições que existem para as coisas serem.
E, neste momento, creio estarem criadas as condições para a filosofia ultrapassar algumas das discussões clássicas e, partindo de novos pressupostos, se interrogar sobre a realidade dos problemas e das soluções que eles devem ter.
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