sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

A POLÉMICA E A LIBERDADE DE IMPRENSA


 “Chama-se liberdade de imprensa o direito exclusivo que têm certos potentados ou certos malfeitores, graças à sua fortuna ou às suas chantagens, de influir na opinião do país. O problema não está, evidentemente, em impedir a liberdade desses homens, mas em pôr a imprensa ao alcance de todos, de maneira que os argentários não continuem a possuir o monopólio da opinião” (Raul Proença, “Seara Nova”, 1928).

A polémica com uma forte componente agonística tem raízes profundas na tradição portuguesa e no contexto europeu. Mas, para que se afirme em toda a pujança, plenitude e riqueza argumentativa é condição, “sine qua non, não haver despotismo que combata ferozmente a liberdade de expressão.

Uma polémica de grande projecção científica teve lugar na Inglaterra, no decurso do século XVIII, quando o bispo e filósofo George Berkeley (1685-1753) escreveu e fez publicar, no jornal “Guardian”, uma série de artigos contra os livres pensadores que eram tidos como “supremos senhores da razão”!

Passado mais de um século, neste rectângulo peninsular assistiu-se a uma polémica de grande escândalo literário com o encerramento das chamadas “Conferências do Casino”, por ordem do tristemente célebre ministro Ávila e Bolama. Este “acto tolo” (Antero) suscitou o protesto veemente dos seus organizadores: “Em nome da liberdade de pensamento, da liberdade da palavra, da liberdade de reunião, bases de todo o direito público, únicas garantias da justiça social, protestamos, ainda mais contristados que indignados, contra a portaria que manda arbitrariamente encerrar as salas das Conferências Democráticas”.

Uma das finalidades consignadas no programa dessas conferências por sete dos seus mentores, propugnava: “Abrir uma tribuna onde tenham voz as ideias e os trabalhos que caracterizam este movimento do século, preocupando-nos sobretudo com a transformação social, moral e política dos povos”. Sem desprimor para todos os outros subscritores, nesta tribuna de ideias e críticas sociais destacaram-se personalidades da vida cultural e política nacional como Eça, Antero, Teófilo Braga e Manuel de Arriaga que viria a ser o primeiro presidente da República Portuguesa sendo sucedido por Teófilo Braga.

Vivia-se então em plena época de ouro da polémica em Portugal em que pontuava a verrina de Camilo - segundo Jacinto Prado Coelho “o demónio da polémica violenta estava-lhe na massa do sangue” arrogando-se ao direito “em não respeitar os tolos”.

Entretanto, com a pujança da sua figura atlética, retratada por ele próprio quando diz ter nascido para “hércules de feira”, destaca-se a Ramalhal figura que “retesa o arco com toda a musculosa força da sua prosa” (João Maia) para escrever, de parceria com Eça, "As Farpas"

.Esta obra literária de grande fôlego, com a finalidade, segundo os seus autores, de “farpear a velha Tolice Humana que tem cabeça de touro”, está repleta de páginas de sátiras mordazes às letras, às ciências, à política e aos costumes de uma época em que “o sapateiro é secretário do centro reformista da sua rua, e alia o labor do botim ao da eloquência política, o que dá algumas vezes em resultado empregar a metáfora no calçado e a sola e vira no discurso”.

Eça de Queiroz (1845-1900), pairando no domínio doutrinário, pugnou para que a polémica se desenrolasse num clima de plena igualdade entre os contendores: “Estabeleçam-se forças lisas e desatravanque-se a arena. Não se admitem cá tiaras que resguardem as frontes, nem degraus a que não seja lícito subir, nem púrpuras roçagantes em que seja fácil tropeçar. Os atletas querem-se nus como os típicos lutadores da estatuária grega”.

Este notável romancista, apesar de declarar o firme propósito de “acutilar instituições, costumes, tipos humanos e aplicar-lhes a moralizadora ‘bengalada do homem de bem’”, não deixou de alertar para a incomodidade em se cruzarem ferros: “Eu digo – é útil balar como os carneiros; ganha-se a estima dos néscios, as cortesias do chapéu do Roxo [conceituado chapeleiro com loja no Rossio], palmadinhas doces no ombro, de manhã à noite uma pingadeira de glória. Mas ir sacudir, incomodar o repouso da velha tolice humana traz desconfortos, vêm as caluniazinhas, os odiozinhos, a cicuta de Sócrates às colheres”.

Em 2008, José Saramago denunciou o estado actual de um país sem fibra nem raça para discutir os graves problemas nacionais: “Falta em Portugal espírito crítico: estamos um pouco aborregados”. Desta forma, em censuras que se entrecruzam, estão irmanados, em um mesmo propósito de coragem, Eça e Saramago, dois dos grandes vultos da literatura nacional, ainda que com datas de nascimento separadas entre si de 77 anos.

Mesmo sem os sinos dobrarem a anunciar o fim da polémica, é de temer que resquícios de longos anos do lápis azul dos coronéis do Estado Novo tenham reflexo numa possível falta de coragem das gerações dos nossos dias em participarem activamente na discussão pública dos momentosos problemas sociais da vida nacional pelo atentado de certa imprensa ao direito de resposta que obriga, para ser cumprido, ao recurso dos tribunais.

Para além da crença de Vitorino Nemésio de que “o português gosta de ver um bravo, ou mesmo um louco, ao parapeito”, o direito de resposta trata-se de um dever de cidadania dos povos do mundo livre. Mas para que haja cidadania é imperativo que a direcção dos órgãos de informação sejam tutelados por cidadãos cônscios das implicações morais e cívicas que esse “statu quo” implica, ou melhor impõe! Mas que é letra morta de argentários com o monopólio da opinião publicada nos órgãos de informação! Valha-nos, contudo, a Net. por estar ao alcance das vítimas dessa prepotência sendo, felizmente, uma espécie de espinha atravessada em gargantas de ditadores de trazer por casa!

2 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

O saber, a filosofia, a ciência, as artes, ao longo dos tempos, foram mais ou menos instrumentalizados pelos poderes e, em muitos casos, menosprezados e considerados indignos da realeza e da aristocracia que cairia na lama se se desse ao trabalho de aprender a ler e a escrever. Do mesmo modo que um argentário não frequenta cursos de computadores, porque paga a um especialista, um rei não precisava de aprender a ler e a escrever, porque podia contratar o Aristóteles. Os nobres de espada arrogavam-se e detinham um estatuto que fazia empalidecer os escribas, ainda que na óptica de outros, um cronista, mesmo sem ser do reino, tivesse mais hipóteses de ser considerado um pensador. No mercado dos valores (não confundir com Bolsas de valores) a espada, ou o argentum, não eram os mais preciosos só no tempo do Afonso Henriques. E, se até para educar e ensinar as letras e o pensamento crítico, é necessário recorrer a esses valores, está visto por que ocupam eles o topo da hierarquia. Isto é o que me ocorre também quando alguém, impotente na sua ira, grita por el-rei.
Os nobres de espada, e os argentários, ainda deslumbram mais pelo facto de terem quem faça o seu trabalho.

Rui Baptista disse...

A "coisa" passou-se assim: num determinado jornal um seu colaborador colocou um comentário a meu respeito. Obrigado, por índole, a não levar desaforo para casa, enviei uma resposta em termos polémicos mas correctos. Passado pouco tempo, recebi um telefonema do respectivo director do jornal, de quem era eu colaborador "pro bono", a dizer-me não desejar alimentar a polémica. Respondi: se não queria alimentar a polémica não deveria ter publicado o texto inicial que publicou. Por a Net ser uma forma de esclarecimento de casos destes, aí publiquei a minha resposta "por impotente na minha ira gritar a el-rei" que do alto da sua cabeça coroada se julgava capacitado para amordaçar quem clamava pela justiça de se utilizar do direito repor a verdade "em ondas do mar levando o meu grito de protesto e de revolta e de verdade aos horizontes mais longínquos", a exemplo de João de Barros!

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