Meu texto na revista "Artes entre as Letras", que assinala o dia 25 de Abril:
Em Portugal assistiu-se, após a Revolução
de 25 de Abril de 1974, a uma revolução na ciência. A abertura de Portugal à
Europa em 1974 ajudou a um notável florescimento da ciência com a sua abertura
internacional. Momentos decisivos no percurso até à actualidade foram a entrada
na União Europeia em 1986, que permitiu a entrada de fundos europeus (só em
parte canalisados para a ciência) e o surgimento do Ministério da Ciência e
Tecnologia em 1995, com a fundação no ano seguinte de uma nova agência de
financiamento, a Fundação para a Ciência e Tecnologia, e de uma agência para a
cultura científica e tecnológica, a Ciência Viva, que permitiram uma dinâmica
na utilização das verbas disponíveis. Portugal tinha até 1974 uma ciência muito
incipiente, confinada a meia dúzia de universidades, com débil ligação ao
exterior. Hoje a ciência em Portugal está espalhada por muito mais instituições
e encontra-se fortemente internacionalizada. Um símbolo, ainda que caricatural,
da entrada da ciência em Portugal em 1974 é o cartoon de João Abel Manta, que mostra um oficial ao MFA a
apresentar Albert Einstein ao Zé Povinho.
Dois indicadores inequívocos do
enorme salto que a ciência deu em Portugal podem ser encontradas na PORDATA: o número
de doutoramentos e o número de publicações científicas. O primeiro reflecte o
crescimento de recursos humanos qualificados e o segundo o acréscimo de
conhecimentos segundo padrões internacionais. Vejamos, em primeiro lugar, o
número de doutoramentos: em 1974 houve apenas 87 doutoramentos, dos quais 36
realizados em Portugal (do total de 87 só 11 foram de mulheres). Em 2015,
último ano para o qual existem estatísticas nessa base de dados, o número de
novos doutores foi de 2969, dos quais 2351 foram completados em Portugal (a
maioria, 1587, eram mulheres, um número que reflecte o enorme avanço da
presença feminina no ensino superior português!). O crescimento foi, portanto,
impressionante: 34 vezes. Olhando agora para o número de publicações, a PORDATA
não mostra o número de publicações científicas em revistas de circulação
internacional de anos anteriores a 1981. Nesse ano, regista 308 artigos, dos
quais 87 realizados em colaboração com autores de outros países. Contudo, em
2015 as publicações científicas de autores em Portugal já totalizaram 21.333,
dos quais 10.582 realizadas no quadro de colaborações internacionais. O
crescimento é ainda maior do que no caso anterior: 69 vezes. Poucos indicadores
cresceram tanto em Portugal desde o 25 de Abril. É claro que não se teriam
conseguido estes notáveis resultados sem maior investimento: em 1982 investiu-se
em ciência e tecnologia 0,27% do PIB, ao passo que, em 2015, já se investiu
1,24% do PIB, cerca de cinco vezes mais (tendo o PIB aumentado de 1982 para 2015).
Assisti a todo este processo de
crescimento. O escritor Baptista Bastos poder-me-ia ter perguntado: onde estava
eu no dia 25 de Abril de 1974? Pois estava no 1.º ano do curso de Física da
Universidade de Coimbra, para o qual tinha entrado em Outubro de 1973 após ter
concluído o 7.º ano dos liceus, correspondente ao actual 11.º ano (não havia numerus clausus e a média das notas do
liceu chegou para entrar, sem prova de admissão, na universidade que quis e no curso
que quis). O 25 de Abril de 1974 foi uma quinta-feira, tendo eu e os meus
colegas percebido que havia uma revolução logo de manhã, a meio de uma aula de Análise
Matemática. É da história que os dias seguintes foram de grande alvoroço, tanto
em Coimbra como noutros sítios do país. Era a liberdade a chegar e, na
Universidade, não chegou sem confusão. A liberdade é essencial á ciência. Mas não
devemos ser injustos com o passado: a verdade é que, apesar dos escassíssimos
meios e das restrições à circulação, já havia um Departamento de Física da Universidade
de Coimbra, alguma investigação científica em várias áreas com colaborações
internacionais, em particular na área da Física Teórica, pela qual me passei
progressivamente a interessar. Lembro-me de, em 1972-1973, o director do Laboratório
de Física, João de Almeida Santos, que foi demitido após o 25 de Abril, ter
dito na visita que a minha turma fez ao “seu” laboratório, que a ciência não
conhecia fronteiras. Ele próprio tinha estudado décadas antes na Universidade
de Manchester, no Reino Unido, sob a supervisão de um dos mais jovens prémio
Nobel de sempre, o físico britânico William Lawrence Bragg. A verdade é que a
produção científica dele se limitou ao seu período de doutoramento. Chegado ao
país viu-se confrontado com enormes cargas lectivas e com difíceis actividades
de gestão. Em particular, foi ele que ajudou a construir um novo edifício de Física
e Química, muito maior do que as instalações antigas no Colégio de Jesus, que
tinha sido desde o século XVI ao século XVIII uma casa dos Jesuítas. As novas
instalações nunca foram oficialmente inauguradas pois o poder político se
encontrava ocupada com as peripécias do PREC e a universidade estava em tumulto.
Na minha área universitária a Revolução de Abril significou uma casa nova
quando estava no segundo ano da Faculdade.
Em 1985, quando Mário Soares
assinou o documento de entrada de Portugal na União Europeia (então Comunidade
Económica Europeia), no Mosteiro dos Jerónimos (lembro-me com facilidade da
data, 12 de Junho, por ser o dia dos meus anos), já eu tinha, dois anos e meio antes,
obtido o doutoramento em Física Teórica na Universidade Goethe em Frankfurt am Main,
na República Federal da Alemanha. Em 1995, quando eu já era professor associado
na Universidade de Coimbra, não me esqueci de felicitar o meu colega físico José
Mariano Gago por ter sido recém-empossado como ministro da Ciência e
Tecnologia: é justo reconhecer que ele foi um dos maiores responsáveis pelo Big Bang da ciência em Portugal no pós
25 de Abril. Pouco tempo depois, em 1997, obtive o grau de agregado em Física na
Universidade de Coimbra, e não demorou a ficar catedrático. Portanto, assisti
e, na medida das minhas possibilidades, colaborei na revolução da Ciência em
Portugal que houve em Portugal depois de 1974. Como professor e investigador, a
par com muitos outros colegas, formei novos doutores, publiquei artigos
científicos e transferi conhecimento para a sociedade, contribuindo para que
houvesse mais ciência em Portugal. Sendo parte activa desse processo, não me é
possível analisar de fora, com total isenção. Mas, mesmo assim, arrisco-me a afirmar
que 25 de Abril de 1974 foi uma data decisiva para a história da ciência em
Portugal. A ciência em Portugal tem decerto uma história anterior. Contudo, o
25 de Abril foi o início, entre nós. de uma nova fase, um período de luz após
um longo período de sombra.
3 comentários:
As ditaduras travam, entravam, impedem as revoluções de que é feita a vida e a sociedade, revoluções silenciosas e persistentes, ou nem tanto, que cada um de nós faz ou pode fazer. As ditaduras são horríveis, são máquinas de autoridade, de pensamento único, que empoderam apenas aqueles que alinham e se conformam, normalmente por conveniência e interesse particular. Elas produzam os seus mitos e propagam-nos sem constrangimentos. Mas acabam por ser vítimas de si próprias, do seu próprio veneno, das suas próprias sombras e dos seus próprios algozes.
Em democracia, muitos desses problemas endémicos às estruturas de poder e à rigidez hierárquica das organizações, com os seus sistemas de controlo, de competição e de soberbias por benesses, favores, vantagens e acréscimos pecuniários/estatutários, não podemos deixar de valorizar sobretudo a liberdade de expressão e de reconhecer a importância de poder escrutinar os poderes e de os sentar nos bancos dos réus.
Nem a esperança de que a revolução, as revoluções, prossigam o seu curso, nem a confiança de que a revolução pode estar em cada um de nós, em vez de a esperarmos, em vez de as esperarmos, as revoluções, que estão a acontecer, mais rapidamente do que nos apercebemos. Infelizmente, muitos dos que, oportunisticamente, apanharam o comboio do 25 de abril de 1974, viram na liberdade uma oportunidade de conquistarem o poder e tantos privilégios criminosos.
Os resultados estão à vista, mas não estariam à vista numa ditadura.
A eclosão do golpe militar de 25 de abril de 1974, tem sobretudo a ver com uma enorme pressão internacional - exercida por muitos estados capitalistas e comunistas, que não tolerando a ideia de um pequeno e pobre país europeu, como é Portugal, ter construído ao longo dos séculos, sob a bênção da Igreja Una Santa Católica e Apostólica, uma comunidade multi-racial e multi-continental que vivia em paz e aspirava ao progresso -, que culminou numa longa guerra imposta ao Povo Português que, após muitas mortes,
assistiu derrotado à divisão dos despojos entre os vencedores. Não era o atraso científico português que perturbava os estrangeiros. Eles estavam, e estão, muito mais interessados em petróleo, diamantes, cacau para fazer chocolate, café, ferro para fazer aço, ouro, ferro, manganês, titânio, crómio, cobre, chumbo, zinco, volfrâmio, estanho, níquel, cobalto, lítio, nióbio, tântalo, ouro, prata, platina, terras raras, etc.
Muitos dos doutorados após o 25 de abril foram-no em universidades privadas onde se obtinham licenciaturas em Relações Internacionais, e noutros cursos pouco científicos, com imensas equivalências a artesanato e folclore. O desenvolvimento de um país não se pode medir apenas pelo número de doutorados, pois qualitativamente muitos deles podem ser maus!
Valia mais uma quarta classe bem feita no tempo de Salazar, do que muitas licenciaturas obtidas por equivalência após o 25 de Abril.
É verdade que o grande Egas Moniz nasceu no tempo dos reis, mas recebeu o Prémio Nobel da Medicina em 1949, era Presidente do Conselho o sombrio Professor Doutor António de Oliveira Salazar.
No ensino básico e secundário, em 1974 a carga horária das ciências experimentais era maior do que a atual, permitindo estudos mais aprofundados e sujeitos a exames nacionais com um peso de 100 % na classificação do aluno.
É verdade que este crescimento é extradordinário, mas convinha ter colocado como termo de comparação as respectivas evoluções na União Europeia, por exemplo, ou na Europa em geral, para se poder ver quanto deste crescimento é uma "inflacção" normal e quanto é crescimento genuíno.
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