O branco na pintura, o
silêncio na música, o
não dito na poesia e na
literatura são o acme
da expressividade na
estética clássica chinesa.
Ideia e recurso que seria
posteriormente teorizada e
praticado no Ocidente.
O meu amigo Gary
Negai é um “letrado” chinês a quem a
cultura portuguesa em Macau deve estar
grata. Para além da estatura intelectual
(domina muitas línguas), Gary entra na
categoria de seres humanos que designo
por santos laicos. Encarna o ideal ético
do espírito chinês, para o qual o saber
não é um saber que se tem, mas um saber
que se é. Sofreu a Revolução Cultural.
Mas não se vislumbra nele o mais leve
vestígio de humano ressentimento,
rancor. Apenas uma lúcida inteligência
daquela realidade medonha.
Num jantar com a mulher na nossa
casa em Macau, disse-lhe: “Gary, nunca
me falou desses dois anos terríveis...”
Vi-lhe a face corar e senti o pé da senhora
Ngai tocar-me no sapato. O assunto
nem podia ser aflorado. Uma violência
e sofrimento inexprimíveis, indizíveis.
O que é verdadeiramente importante é
indizível, escreveu um letrado chinês no
século III a.C.
Se o leitor quiser ver um filme, a
muitos títulos admirável — metáfora
sobre a impossibilidade da vivência
partilhada do amor absoluto —, que
transmite, sem gritos nem retórica,
a dimensão de horror indizível da
Revolução Cultural, veja O Regresso a
Casa. Horror e sofrimento que só o “não
dito” pode comunicar. Um filme sobre
um monstro, Mao, que nunca é nomeado
no filme.
O Concerto é um filme que se vê
com divertido interesse. No tempo
de Brejnev, uma grande orquestra do
Bolshoi é desmantelada, os músicos
proibidos de o serem, o maestro, por ter
contratado músicos judeus, reduzido a
faxina do teatro. E a solista, uma grande
violinista, enviada com o marido para o
gulag na Sibéria. Quando preparavam
obsessivamente a grande interpretação,
muito aguardada, do Concerto n.º 1 para
Violino de Tchaikovsky.
O filme, como referi, é divertido, com
um happy end e um grand finale que
faz estremecer: o Concerto tocado pela
orquestra reconstituída no exílio em
Paris. Sem a solista, mas por ela...
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Guilherme Valente (editor da Gradiva)
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Sempre que ouço esta peça de
Tchaikovsky, o que acontece com
frequência porque a tenho gravada no
automóvel, não consigo deixar de “ver”
a cena que vale, afinal, o filme todo: a
violinista judia, no campo de trabalho na
Sibéria, a tocar o Concerto num violino
imaginário, sem cordas, sem som. Sem
som? Nunca ouvi interpretação mais
sublime da peça de Tchaikovsky, que
uma centelha de divino inspirou. Louca?
Um filme sobre outro monstro. Mais uma
vez, o indizível dito pelo “não dito”.
O filme sobre Churchill ainda nos
cinemas, A Hora Mais Negra, é outro filme
sobre outro monstro. Uma dimensão
de bestialidade e loucura que todavia
não é referida, não é descrita. Hitler,
Churchill refere-o apenas como o louco,
o monstro. O que o filme transmite, com
a história verdadeira e as excelentes
interpretações, é a intuição espantosa
do primeiro político que percebeu a
natureza nova, singular, da besta, a
novidade dessa aberração, desse sumo
mal que era
imperativo parar.
Mesmo que o
combate estivesse
antecipadamente
perdido, disse
Churchill,
dizendo tudo o
que apenas sem
ser dito poderia
ser comunicado,
devia morrer-se
a enfrentá-lo.
Contra tudo e
todos, contra
a posição até
aparentemente
mais sensata
de negociar,
Churchill levou
o parlamento,
a Inglaterra, a
Europa, os EUA,
o Mundo às costas para esse combate...
moral. E salvou a humanidade de um
futuro inimaginável. Mais uma vez, no
não dito, o horror e outro monstro.
Três monstros, todos filhos do mesmo
pai.
Numa das últimas cenas do filme,
à saída do debate triunfante no
parlamento, o assessor refere a mudança
(que vibra...) do rei e Churchill faz um
comentário que só por si valeria o filme:
“Os que nunca mudaram de ideias nunca
mudaram nada no mundo.” Confúcio
disse o mesmo no século IV a.C. “Só não
mudam o homem mais inteligente do
mundo e os burros.”
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