quinta-feira, 31 de agosto de 2017

O PILHA-GALINHAS

Os tempos eram de fome nos campos do Alentejo e o instinto natural de sobrevivência levava a que uns se encorajassem a vir em grupos de três ou quatro, pedir algo com que dar de comer aos filhos. Um ou outro, menos bem formado e em desespero, deitava a mão a um frango ou a uma galinha que, depois, ia vender na cidade.

O “pilha-galinhas”, como lhe chamávamos, era um infeliz trabalhador do campo, quase sempre desempregado por falta de trabalho. Fornecia, a quem lhos comprava, escondidos, quase sufocados, dentro de sacos, no fundo do alforge que transportava ao ombro.

Chegava sempre ao cair da noite, vindo dos campos. O trajecto na cidade fazia-o pelos sítios mais esconsos e escuros, em passadas rápidas e furtivas. Nunca ninguém lhe perguntava a origem da mercadoria, nem nunca ele se lhe referia.
O negócio, porém, era feito portas adentro, rápido e com o mínimo de palavras. O homem sacava o frango, algumas vezes, uma galinha, pegando-lhe pelo pescoço para que não “gritasse” e, em conjunto com a cliente, avaliavam-lhe o peso e o preço. Seguia-se uma breve discussão sobre a quantia a pagar, que ela acabava sempre por ganhar.

Um dia foi apanhado já dentro da cidade, com o saco cheio, antes de fazer qualquer negócio.

– Tinha seis franganitos no alforge, quando me deitaram a mão. – Desabafou, mais tarde, junto de um companheiro de infortúnio. - Levaram-me para a esquadra e fiquei lá no calabouço toda a noite. No outro dia, logo de manhã e sem comer, veio um zarolho, de bigodes, grande como um touro. Mandou-me pôr de joelhos no chão de pedra onde tinha espalhado sal grosso. Mas primeiro fez-me arregaçar as calças.
– Filho da puta! – Exclamou, indignado, o amigo.
– Eu já não aguentava mais. – Continuava o “pilha-galinhas”. –  Se fazia menção de me levantar, ferrava-me chibatadas na cara, nas costas, onde calhasse. E era com cada uma! Fiquei cheio de vergões. Os joelhos ardiam-me do sal espetado na pele. Não aguentava mais! Filho dum comboio de putas. Tenho filhos pequenos com fome e não arranjava trabalho já havia três meses. É sempre isto todos os anos, lá no monte.
– E depois, o que é que te aconteceu? – Quis saber o outro, cada vez mais interessado.
–  Deram-me mais pancada e depois mandaram-me embora.
– E os frangos? – Perguntou o companheiro, de imediato.
– Ficou o malvado com eles. E ficou também com a minha navalha que bem falta me faz. – Acrescentou desolado. – Mas olha, ainda prefiro a Polícia à Guarda. Tenho mais medo daqueles gajos das patrulhas. Deus me livre de ser apanhado por eles. Esses ainda são piores. Diz-se que têm pelos até no coração. Estão feitos com os patrões.
– Não sabem fazer mais nada. - Comentou o outro. –  Se não estivessem na Guarda, eram uns desgraçados como nós.
– Para mim, – continuava o “pilha-galinhas”, - são uns madrações que se deram bem na tropa, lambendo as botas aos sargentos. –  Rematou.
– Toda a gente lhes dá qualquer coisa, como aos padres. Quando passa a patrulha há sempre quem lhes leve uma atenção. São os ovos, é uma galinha aqui, um coelho ali, são as azeitonas, os queijos e o feijão, é uma lebre ou umas perdizes no tempo da caça, ou mesmo fora dele, no defeso, que eles aí nem olham. Na Páscoa, lá apanham, às vezes, um borreguinho dado por um mais afortunado. Os mais pobres dão aos praças das patrulhas aquele pouco que podem. Eu já nem sei se eles passam lá pelo pessoal para cumprirem o giro se para receberem a colecta.
– Toda a gente sabe que é assim. Filhos da puta!
– Aos chefes e comandantes, aos mais graúdos, quem lhes dá são os lavradores. A esses, quem dá são os patrões. Apanham do bom e do melhor. É a lenha às carradas, para o Inverno, é o azeite para o ano todo, fora o porco, no Natal.
– É assim a vida! – Comentou, resignado. – Gostam do rancho a horas e de se verem dentro da farda. Disseram adeus à vida do campo. Gostam do rancho a horas e de se verem dentro da farda. Disseram adeus à vida do campo. – Concluiu o amigo.
A. Galopim de Carvalho

2 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

Um belo exemplo do poder da "ficção" para criticar e denunciar o que, de outro jeito, não é viável, mesmo nas ditas democracias em que é reconhecida a liberdade de expressão.
Estamos precisados de escritores vocacionados para a crítica e a denúncia, tanto ou mais que Dante(s) e podem ser também um pouco sonhadores e apaixonados...

Miguel disse...

essa é uma realidade por mim vivenciada.

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