sábado, 12 de agosto de 2017

Um "eterno retorno" na educação escolar

No último século, as nações e estados do Ocidente foram tomando a seu cargo a educação formal, tornando-a obrigatória, regulamentando-a, abrindo escolas, impondo programas, proporcionado directrizes e orientações, etc. Na sua substância, isso está certo, pois os desígnios da "educação para todos" requerem um contexto que seja de todos.

O problema é (sempre foi) a influência político-partidária, cada vez mais ligada à económico-financeira, num campo em que a ideia de "perfectibilidade da pessoa" deveria guiar toda e qualquer acção. Elevar, de modo altruísta, cada aluno a esse estado, com repercussões no funcionamento da sociedade e na marcha da humanidade constitui a grande finalidade apontada pela Filosofia da Educação. E, ainda que o significado dessa expressão seja diverso, isso não nos deve levar a abandoná-la.

Quem esteve ou está ligado aos sistemas de ensino, sejam eles ditaduras ou democracias, mais à esquerda ou mais à direita, e tenha uma formação que não se reduza a uma pedagogia soft com laivos técnicos sabe bem que a realidade se distancia de tal finalidade, mas sabe também que o seu dever é educar quem está na condição de educando, em vez de o doutrinar ou manipular em função de interesses marginais.

Perseguir esse dever implica, à partida, tomar consciência dos discursos de apresentação e justificação das reformas/ reorganizações/ revisões/ reformulações/ redefinições /mudanças ou o que se queira chamar às alterações curriculares que as nações e os estados (e agora, em sua substituição, mas sempre com a sua chancela, grandes entidades internacionais) fazem valer.

São discursos-tipo, repetidos há muitas décadas nas mesmas palavras. Quem estudou alguns deles é capaz de adivinhar os termos da última reforma, seja ela qual for, mesmo antes de ser publicado qualquer documento que se lhe refira.

Parece ter-se encontrado uma fórmula-que-resulta e cujos ingredientes de base são dois: condenação de tudo o que foi feito no passado e promessa de salvação do futuro. O resto compõe-se com palavras que deixaram de ter qualquer significado, como "interesses do alunos", "trabalho de projecto", "autonomia na aprendizagem", "aprendizagem activa", etc.

No nosso país, estão a ser divulgadas, em diversos documentos, as últimas alterações curriculares (cf. textos anteriores neste blogue). Compare o leitor os seus termos com os referidos por Michal Lobrot, num livro de 1966 no qual dava conta dos discursos das reformas educativas desde o início do século XX.

Este século em que estamos, tal como o passado, vê-se marcado pela afirmação da necessidade de mudança nos sistemas de ensino, ainda que pouco ou nada seja mudado neles. O que acontece é o que tem acontecido: um triste e deprimente retorno que se afigura "eterno".
"Foram sobretudo os métodos que foram renovados (...) Na óptica da educação «pela vida e para a vida» realidades do meio exterior foram introduzidas nas escola. O «estudo do meio» deu nova vida à História e à Geografia. Os pedagogos passaram a preocupar-se com a criação de motivações: o jogo recebeu direito de cidade na pedagogia e as actividades começaram a transforma-se frequentemente em jogos (...). Procurou-se a individualização do ensino, graças à qual o ensino se adapta a cada aluno e às suas dificuldades.
O movimento que acaba de ser descrito produziu-se no princípio do século [XX]. Após a primeira guerra mundial, outros movimentos, oriundos dos mesmos princípios que o precedente, vão mais longe. Propõem-se introduzir «de facto» uma certa não-directividade no ensino, limitada contudo, e a que chamaremos «técnica», pois que se apresenta como um esforço para repensar inteiramente a relação professor-aluno e o próprio ensino, mas de modo a introduzir melhorias e aumentar a eficácia da aprendizagem (...).
O «método do projecto» introduziu pela primeira vez em pedagogia a iniciativa e a escolha pela criança - não se contentando com a mera solicitação do seu interesse. Aceita (...) que a criança passa ter a iniciativa das suas actividades, tomar decisões, exprimir as suas vontades (...).
A pedagogia que nos é apresentada poderia ser definida como uma pedagogia em que o professor é quase totalmente eliminado, pelo menos na sua função tradicional (...). O livro, máquina de ensinar, etc. é mais eficaz que qualquer intervenção directa do professor [o aluno] aprende melhor quando é ele próprio a regular a sua acção e a controlar-se. Estes dois princípios permitem que o aluno se veja colocado numa relação não de passividade face ao docente, mas, pelo contrário, de actividade (...)."
Lobrot, M. (1966). A pedagogia institucional. Lisboa: Iniciativas pedagógicas, pp. 255 e seguintes.

1 comentário:

Carlos Ricardo Soares disse...

Ainda vivemos num mundo dominado por mitologias antigas e são elas que ditam as reformas "impossíveis", porque nada se reforma si mesmo. Abstrações como "aluno" "professor" "perfectibilidade" "progresso" "crescimento económico"... impedem uma autêntica desmontagem e reconsideração dos problemas que precisamos de resolver e dos que queremos resolver.
Por ex., nem toda a gente está interessada na perfectibilidade da pessoa, o que que quer que isso signifique. Ou no progresso, o que quer que isso signifique. Ou no crescimento económico...
Mas toda a gente sabe que pensar custa muito, escrever não menos, ler talvez mais e que não basta pensar, escrever ou ler para resolver problemas triviais de sobrevivência.
A escola não pode ser um laboratório fora da sociedade e dos problemas reais.
Se os alunos, desde bebés, só conhecerem o espaço da escola, ou coisa parecida, não temos modo de ensinar-lhes quase nada do mundo, nem sobre os vegetais que comem, peixes ou carnes, e se sairem em passeio, não olham para lado nenhum senão para o telemóvel.
Mas se calhar é isto que interessa, preparar a humanidade do futuro, que viva em satélites, sem necessidade do contacto com a natureza (como em parte são já as grandes cidades).
Esta tendência parece estar a ser procurada e reforçada, deliberada ou por força das condições, por estruturas/dinâmicas/processos/mercados de massificação (aliás, muito realistas), que apostam no consumo mínimo, digno(?) e sustentável(?), retirando da mente aquele fantasma devastador de há muitos anos, do "american dream".
Neste aspeto, a tão criticada concentração de riqueza, ao afastar/excluir um grande número de consumidores, ironicamente, contribui para a preservação de recursos do planeta (um dos pontos críticos do nosso tempo).
Uma escola com a pretensão, por ex., de criar génios, seria uma aberração. Com a pretensão de fazer 80% dos alunos doutores em matemáticas, ou medicina, ou física, ou desporto...seria outra aberração. Todos temos a noção disto.
Mas ninguém tem a noção do que a escola pretende.
Em abstracto, sabemos que a escola pretende o ótimo, e o ótimo é tudo o que há de melhor.
E, para cada aluno, em concreto? O que o aluno pretende? Uma utopia?
Ou o ótimo é mesmo deixar que nos processos de ensino-aprendizagem professores e alunos tirem o melhor proveito do que há para aproveitar, de acordo com os seus objetivos, apostas, interesses, motivações, capacidades...?
A escola tem de estar preparada e atualizada para as solicitações do nosso tempo.
Não teria sentido que continuasse a ensinar e a preparar para funções que deixaram de existir (a não ser em cursos de conhecimento pelo conhecimento, ou de arte pela arte, que podem ter imenso interesse).

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