segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Eça de Queirós Cronista — Do Distrito de Évora (1867) às Farpas (1871-72)




Prefácio de Miguel Real ao livro de Annabela Rita, que acaba de sair na Gradiva, com o título de cima:

Entre a crónica e o romance

"Primeiro ensaio de Annabela Rita, Eça de Queirós Cronista — Do Distrito de Évora (1867) às Farpas (1871-72), publicado em 1998, conhece agora uma justa segunda edição.

Num primeiro momento, do ponto de vista da análise, Annabela Rita opera a desconstrução histórica dos dois conjuntos de crónicas, o primeiro evidenciando um Eça entretecido no Rotativismo, fazendo
do Distrito de Évora um jornal tanto representativo do liberalismo do Estado como oposicionista ao «Governo da Fusão» (Regeneradores e Progressistas) de Joaquim António de Aguiar; o segundo,  esclarecendo Eça d’As Farpas, da colaboração com Ramalho Ortigão, precursor do Eça da década de 1880, experimentando na crónica o futuro estilo literário presente nos seus romances, sobretudo a singularidade estilística que o identificará como autor de crítica e denúncia social por via do humor e da ironia.

Porventura, o elemento de maior interesse do ensaio de Annabela Rita residirá na integração do pensamento do jovem Eça (entre os 22 e os 27 anos) no ideário crítico da Geração de 70, sobretudo na vertente que conduzirá todos os autores desta Geração na acentuação da categoria de Decadência como perfil histórico de Portugal desde o século XVII. N’As Farpas, Eça de Queirós brilhará na revelação dos costumes sociais tradicionais portugueses, efeito daquela decadência  histórica, evidenciando a necessidade da passagem do português do estatuto de súbdito para o estatuto de cidadão, dotado de uma consciência lúcida, «europeia», por assim dizer. Assim, Annabela Rita evidencia o «nosso» Eça literário a nascer, o Eça estabelecido pelo cânone interpretativo do século XX.

Por via de protocolos retóricos e efabulativos, Annabela Rita demonstra a ligação entre a crónica da juventude e o romance do autor adulto, não distinguindo assim, como o faziam os intérpretes clássicos, o Eça cronista do Eça romancista, integrando ambas as vertentes literárias do autor na categoria histórica do Realismo. Não o realismo seco centrado nos dados científicos como retrato de uma sociedade, um realismo limitado, como o de Pinheiro Chagas, com continuidade em Júlio Dantas, mas, como especifica a autora, um realismo «carnavalizado»: a exploração lúdica do signo, partilhando tanto de uma teoria do referente semântico concreto (o Realismo), como de uma aproximação ao símbolo cultural — o Ludismo literário como singularidade estética.

É justamente esta vertente da obra de Eça — a de, com o dedo literário, apontar para a realidade, tomando-a como ponto de partida do texto, sem, porém, reduzir este a uma mera representação directa da realidade imediata, carnavalizando-o — que o identifica com a modernidade e que nos permite lê-lo como se tivesse ontem escrito para nós, leitores do presente.

Neste sentido, o ensaio de Annabela Rita integra-se no que designámos, em O Último Eça (2006), por «Período Crítico» da historiografia queirosiana, iniciado em 1954 com a publicação de Lengua y Estilo de Eça de Queiroz, de Ernesto Guerra Da Cal, que intenta não tanto problematizar a relação vida-obra do autor (característica saliente do período anterior), mas sublinhar, como afirma Carlos Reis, sintetizando o espírito deste período, que «o escritor está na sua obra». Deste modo, tal como Annabela Rita o pratica, a heurística do texto queirosiano, independentemente da subjectividade de Eça no momento da criação da crónica, torna-se estimulante em soluções literárias, duas das quais a autora evidencia através de um conjunto de argumentos incontestáveis: por um lado, a autonomia da crónica como género literário e, por outro, a sua continuidade estética em forma de romance."

MIGUEL REAL

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