Minha entrevista a Alexandra Figueira publicada no JN de 20 de Agosto passado:
Entrevista Carlos Fiolhais Terapêuticas não convencionais têm graus diferentes de eficácia, mas a ciência deve ser o filtro. “Não se deixem enganar”, insiste o catedrático em Física
Texto de Alexandra Figueira | Foto Fernando Fontes /Global Imagens
Divulgar a ciência, incentivar o ceticismo e desmentir pseudoverdades, manipuladas para enganar os crentes, são constantes nas iniciativas de Carlos Fiolhais, catedrático no departamento
de Física na Universidade de Coimbra e um dos mais reconhecidos cientistas portugueses. Há anos que desmonta histórias de falsa ciência a circular na Internet e, há dois meses, o cientista – nascido em Lisboa de pais emigrados da Régua e de Vidago, como ele próprio se descreve – prefaciou uma outra obra. “Não se deixe enganar” explica, passo a passo, como qualquer pessoa pode distinguir o verdadeiro do falso e, até, criar uma mentira na Babel que é a Internet.
JN- Na era da pós-verdade e notícias falsas, como podemos destrinçar o verdadeiro do falso, nas notícias, na publicidade, no Facebook?
CF- Vivemos num mundo construído pela ciência e tecnologia: com a Internet, as comunicações são quase instantâneas, cada um pode emitir para o mundo todo. Até aqui, as mensagens eram mediadas,
por jornalistas ou editores, mas hoje qualquer pessoa pode pôr uma “notícia” no Facebook ou publicar um livro na Internet. Vivemos numa Babel, num oceano imenso em que nos podemos
afogar. É um paradoxo: a ciência constrói o mundo que se torna, em muitos casos, anticientífico.
A criatura volta-se contra o criador? É normal, nunca podemos imaginar o que uma coisa nova vai fazer. Não me queixo, há coisas ótimas neste mundo global. Agora, paradoxalmente, a ciência
está sob suspeição.
JN- É a democratização da opinião?
CF- Vou ser bruto: qualquer idiota pode dizer qualquer idiotice e sabemos que há muitos idiotas no Mundo. Mas a escolha é nossa. Estamos dispostos a ouvir? A resposta parece ser: sim.
JN- Mas volto à pergunta inicial. Como navegar neste mar de informação?
CF- É preciso usar espírito crítico, o ceticismo que a ciência ensina. Não aceitar a primeira coisa que alguém diz. Perguntar: “quem diz?” ,“que conhecimentos ou experiência tem para o dizer?”. “onde o diz?”, “com que intuito?”. Esse discernimento está a faltar desesperadamente na sociedade da pós-verdade – nome engraçadíssimo que significa “mentira”. Vivemos num mundo em que qualquer cidadão está permanentemente confrontado com escolhas.
JN- Estamos preparados para isso?
CF- Tudo indica que não. A informação é tanta e tão variada que temos nós de escolher. É crucial para as nossas vidas. E metade do Mundo quer enganar a outra metade, muitos porque têm
vantagens económicas. Há quem venda uma pulseira magnética, diz que é quântica e leva-se 29,99 euros. Por muito que as pessoas mais bem informadas digam [que não as devem comprar],
vende-se, as pessoas acreditam. E ganha-se dinheiro ou fama. Veja as eleições norte-americanas. Na Macedónia, jovens ganharam dinheiro a fazer títulos falsos e bombásticos. Se um
título disser “Hillary Clinton teve um filho de um extraterrestre” é evidente que se carrega logo [na notícia]. Eu próprio já fui enganado! E 99% dos títulos engraçados são idiotices, invenções. Como dar a volta a isto? Peço-vos ajuda, à Comunicação Social.
JN- Os jornalistas devem transmitir informação rigorosa, mas também ilustrar a diversidade de opiniões...
CF- Os jornalistas têm de refletir a variedade, mas com o peso que essa variedade tem. Às vezes, dá ideia que vale tudo o mesmo e é ainda mais difícil, para o cidadão, distinguir. A intermediação
não está a ser feita. Se a questão são os organismos geneticamente modificados, porque é que não se pergunta aos peritos? Na campanha eleitoral, Donald Trump falou [com dúvidas] sobre vacinas. Do ponto de vista científico, é tão óbvio que as vacinas protegem contra doenças!
JN- Portugal tem uma taxa altíssima de vacinação. É sinal do valor dado à ciência?
CF- Comparando com outros países, estamos bem, mas já há pais a evitar vacinar os filhos. É gravíssimo, não está em jogo apenas a saúde dos filhos. A vacinação só funciona se mais do que determinada percentagem da comunidade estiver vacinada.
JN- A esmagadora maioria cumpre o Plano Nacional de Vacinação. Mas compram pulseiras do equilíbrio e assistem a programas de tarot. Como explica atitudes tão diferentes?
CF- Pela mesma razão que, numa livraria, a secção de astrologia é maior do que a de astronomia. É um paradoxo dos tempos modernos, se calhar não tem solução. É precisa uma maior atenção da Comunicação Social ao que os próprios cientistas dizem. A escola deve ensinar o espírito crítico, a ser cético, a não acreditar à primeira, procurar a plausibilidade, a contraprova. É preciso duvidar e procurar desfazer as dúvidas, usando a lógica, perguntando a quem sabe, usando o bom senso.
JN- Usando um método científico?
CF- Está ao dispor dos cidadãos. Um medicamento demora muitos anos a ser desenvolvido até chegar ao mercado. Se vejo um a chegar logo, desconfio. Ou de uma droga mágica para curar o cancro. Gostava que os cidadãos distinguissem a verdade da mentira. É precisa cultura científica, que o livro “Não se deixe enganar” ajuda a fazer, tal como esta entrevista. É uma gota de água no meio dos programas do tarot, alguns na televisão pública, paga por nós! Não tenho nada contra quem faz
tarot, mas só paga quem quer.
JN- A ciência evolui, descobre erros e corrige o caminho. Aceita o argumento de que ainda não conseguiu demonstrar a eficácia das terapias não convencionais?
CF- Percebo a pergunta: “a ciência está sempre a mudar e hoje não se sabe, mas um dia vai-se saber”. Vou desmontar o argumento: a ciência muda, mas é uma mudança cumulativa. Nunca muda a ponto de se desmentir a si própria, no essencial, não se nega a si mesma. A Terra anda à volta do Sol, não vai um dia provar-se que é o Sol a andar à volta da Terra! Há uma margem em que a ciência muda e há um método para isso: experimentar, testar, verificar. O que sei amanhã é diferente e maior do que o que sabia ontem. É preciso partilhar esse método. Tornar as pessoas cientificamente mais cultas significa habilitá-las para a vida, não se deixarem enganar. Metaforicamente, devemos ter a cabeça aberta ao novo e ao desconhecido, mas não tão aberta que nos caiam os miolos. É um erro que os cientistas estão sempre a contradizer- se.
JN- As terapias não convencionais são reconhecidas por lei e até usadas em hospitais públicos. Têm sido analisadas pela ciência de forma isenta?
CF- A resposta curta é: sim. A ciência tem honestidade intelectual, valores e ética. Existe revisão pelos pares, um esquema montado para as patetices não saírem. Nas medicinas alternativas, há
uma variedade muito grande, o grau de funcionamento é diferente. A acupuntura não é o mesmo que a homeopatia. A acupuntura falha em muitos casos, mas noutros, estatisticamente, está dentro da margem de erro, de não falhar. Não desminto que, no caso da acupuntura, possa haver vantagens
para algumas doenças. Na homeopatia, que dissolve um princípio ativo uma vez e outra e outra, cem vezes, a certa altura a probabilidade de encontrar um átomo sequer do princípio ativo é semelhante a ganhar o Euromilhões. Não há evidência estatística – comprovada, com testes controlados e
sérios – que diga que a homeopatia funciona.
JN- Mesmo sem provas, há o efeito placebo. O importante não é que a qualidade de vida da pessoa melhore?
CF- Esse é um assunto de análise séria. Só pelo facto de sermos alvo de atenção, sentimo-nos melhor. Mas todos os medicamentos só são válidos se ultrapassarem o efeito placebo. Não sou especialista
no assunto, mas o organismo pode reagir a questões que são apenas mentais, tem capacidades extraordinárias, muitas das quais não são sequer conhecidas.
JN- E dizer: não sabe, pode ser verdade?
CF- O ónus da prova é de quem faz a afirmação. Dizer “pode ser assim” não significa nada. E é um grande negócio. As farmácias vendem tudo, a medicina convencional (que é a única), cremes…
Há quem diga que o prémio que se paga por cremes muito caros é um imposto à estupidez. Está mais do que provado que os cremes mais caros não têm vantagens proporcionais ao preço. Há muitos produtos cosméticos que são a banha da cobra e há muita banha da cobra no preço.
JN- É sinal que os sistemas de saúde e de proteção social estão a falhar?
CF- As pessoas vão aos médicos porque acreditam na sua eficácia. Eu tive uma pneumonia grave e, se me tratasse homeopaticamente, de certeza que já estava morto. Tratei-me com antibióticos,
de eficácia comprovada, mas não garantida. Mas preocupa-me que Portugal tenha criado legislação que, de algum modo, legitima procedimentos simplistas e valida os títulos de quem os faz: quiropráticos, acupuntores, pessoas que acreditam que a vista, a orelha ou a planta do pé indicam o que se passa no organismo. E não! Diz-me quem estudou anatomia que não há ligação
alguma. Se houvesse, os médicos usariam esse conhecimento! Há uma legitimação legal, instituições de ensino superior que fornecem esses títulos. Há uma legitimação dada pelo facto de estarem em farmácias, serem ministrados por “médicos”, terem autorização legal. Mas é evidente que uma lei não transforma alguém que não sabe curar num curador.
JN- A legislação legitima uma fraude?
CF- Sim. Há fraudes em Portugal que estão a ser legitimadas. É a mesma coisa que legislar a profissão de amestradores de unicórnios, de domadores de pokemóns ou de domesticadores de gambozinos. Não existem! Embora nem tudo seja igual: a escala de fraude é muito diferente. Há fraudes totais e há fraudes parciais. Nas terapias não convencionais, há fraudes muito diferentes e há fraudes que, neste momento, têm suporte legal.
JN- Legislar sobre terapias não convencionais legitima fraudes, embora em graus diferentes?
CF- É isso mesmo.
JN- Se pudesse, o que faria para reforçar o ceticismo e credibilizar a ciência?
CF- Ajudava os professores (que fazem um trabalho heroico nas escolas) a ensinar o espírito crítico, ensinar a não acreditar em tudo o que se lê na Internet, não acreditar na primeira coisa que se vê
num ecrã, mas com casos práticos. Pôr as crianças a experimentar escrever uma mentira na internet, para perceberem como é fácil e que há pessoas a fazê-lo. Ensinar o ceticismo em pequeno.
É preciso espalhar a cultura científica. Sei que não é fácil no Mundo de hoje, mas não se deixem enganar.
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2 comentários:
O que falha na ciência é a perspectiva de determinadas questões, a fragilidade com que se viciam as questões colocadas, e finalmente, a ciência tem limitações claras sobre até onde pode conhecer. Há muito mais verdade para lá do método científico, e o que temos hoje é a tentativa clara de tentar limitar e determinar a realidade aquilo que o método científico nos ode oferecer. A produção de ciência e a normalização de consensos está contaminada. PONTO!
O que não devia preocupar-me é a "realidade construída" porque ela é tudo o que formos capazes de imaginar e representar.
Mas preocupa-me que a realidade seja construída e que não tenhamos acesso a outra.
Preocupa-me, sobretudo, que o virtual seja uma espécie de expoente de um real que já de si é virtual.
Vou tentar exemplificar, para tentar ser mais claro.
Quando um indivíduo está com uma mulher nua e fecha os olhos para imaginar a mulher nua ou, tendo diante de si um corpo, prefere ver as imagens desse corpo, ou se delicia mais com o que pensa sobre o café ou o presunto, ou o vinho, ou a broa, do que com saborear o café, ou o presunto...
A escola luta, hoje mais do que nunca, contra um inimigo que é importante que seja seu/nosso amigo: é o virtual.
Sugiro uma reflexão: a humanidade tem sido dominada e conduzida pelo virtual, desde os mais antigos pagãos até aos da à atualidade e não apenas pagãos.
O virtual é o que, verdadeiramente, conta. É o que é.
Esta é "a natureza" da comunicação/representação. Até o hambúrguer e a batata frita.
Se alguém achar que temos outra, faça o favor de contradizer.
E para ter espírito crítico não basta acreditar/não acreditar, é preciso saber explicar porquê.
Tudo isto é das realidades mais virtuais que existem.
A partir de um certo nível de virtualidade, rebenta-se com a escala da realidade/virtual.
A que escala se poderá dimensionar, representar a realidade?
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