(a propósito do Despacho 5908/2017, que autoriza, em
regime de experiência pedagógica, a implementação do projeto de autonomia e
flexibilidade curricular dos ensinos básico e secundário)
Saiu
despacho. Este não saiu muito bom: do tipo 5908, só é divisível por três primos,
2, 7 e 211. Isto parece uma suspeita de nepotismo e não é; estamos assim
entendidos que não se suspeita de coisas feias.
Na
verdade, não se suspeita de coisa alguma: o 5908 é completamente insuspeito.
Lido, afirma chachadas ténues; recitado, é indistinto; declamado, permanece
nho-nhó — mesmo imaginando a voz do Villaret a esforçar-se.
Se
o 5908 fosse um comboio, estaria ferrugento, parado, numa linha desativada.
Se
fosse uma referência de cor de carrinho de linhas, viria com o fio velho, quebradiço
e desbotado, a romper-se todo na máquina de costura, a estragar a paciência e o
trabalho.
O
5908/2017 não é despacho que se veja; não despacha: empata mais um bocadinho. É
o despacho duma época medíocre, com ensino esforçado mas confuso, com políticas
corretas no sentido de politicamente corretas, mas incorretas no sentido de que
ninguém sabe bem o que anda a fazer. Depois da desilusão Crato, o regresso do
mundo Disney: o Mickey de varinha de condão, a Sininho, as fadas da Bela
Adormecida, os passarinhos diligentes da Gata Borralheira, o desgraçado do
Capitão Gancho sempre a tramar-se com o crocodilo, o professor Pardal — e o
Pateta!
Comparemos
com a TV: a televisão passa futebol. Não os jogos, isso é o menos: passa
sobretudo comentários. Dizem-se disparates semelhantes em todos os canais,
finge-se o debate de coisas que, quando chegam aos comentadores, já vão mortas
(o debate já era… e foi no campo). Os comentadores também não estão lá muito
vivos, mas barafustam para ganhar uns dinheirinhos, sempre dá jeito. Nós, em
casa, mudamos de canal e vemos qualquer outra coisa, ou mudamos de vida e
desligamos o televisor.
Os
despachos sobre ensino são semelhantes: quando chegam ao comentário público o
jogo já foi.
Temos
de aprender a desligar os despachos.
Querem
ver um rol? Eu cito:
«[…] o cidadão de sucesso é
conhecedor» — o que quer que isto seja —, «mas» (adversativa, porquê?!) «é
também capaz de integrar conhecimento, resolver problemas, dominar diferentes
linguagens científicas e técnicas, coopera, é» —espanto! — «autónomo […]»? Com
aqueles handicaps todos, consegue ser
autónomo? É, pá, temos cidadão!
«[…]
os princípios que enformam a sua política […]»
«[…]
conhecimentos consolidados, que são mobilizados em situações concretas que
potenciam o desenvolvimento de competências de nível elevado, que, por sua vez,
contribuem para uma cidadania de sucesso no contexto dos desafios colocados
pela sociedade contemporânea […]»
«[…]
competências transversais, transdisciplinares numa teia que interrelaciona e
mobiliza um conjunto sólido de conhecimentos, capacidades, atitudes e valores […]»
Etc., etc.: quando o pensamento larga o
texto, caem os dois, exangues. (Os redatores não leram os clássicos… o que é,
em si, clássico.)
O despacho quer-se técnica e
cientificamente correto (além de politicamente). Então, há uma equipa de
coordenação nacional com consultores. Tem gente das Ciências, das Tecnologias?
Das Artes? Das Letras? Da Filosofia? Músicos? Atletas? Historiadores?
Tem gente com licenciaturas, sim
senhores… encalhada nas «Ciências» da Educação. Bom: faça o Leitor o que quiser
às aspas, também não quero ser desmancha-prazeres.
Os consultores são cientistas… da
educação. Para efeitos práticos, antes fossem cientistas normais que dizem «muito
obrigado» quando lhes passam a manteiga ao pequeno almoço.
Segue-se o enunciar do modelo curricular
que por aí há, que mete «Currículo dos
ensinos básico e secundário», «Aprendizagens essenciais», «Perfil dos alunos à
saída da escolaridade obrigatória», «Documentos curriculares» (programas,
metas, orientações, perfis profissionais e referenciais do Catálogo Nacional de Qualificações), «Matrizes curriculares-base», e estou farto, e basta!
Tudo, e tudo, é missão de natureza «eminentemente lúdica, formativa e
cultural». Toma, e vai buscar.
Há uma coisa que o diploma ignora no seu
afã de permitir e enquadrar a proposta autónoma de escola: as escolas estão
atrapalhadas com espaço.
Assente isto, nada mais é preciso
inventar para ver avolumarem-se as objeções: não é em escolas com dois turnos
letivos (três se há noturno) que será possível ser inventivo, e flexível, e
participativo, e criar currículos novos e autonomias enquanto se faz horários e
cumprem os programas nacionais.
Independentemente de todas as boas
intenções, e apesar da linguagem de desperdício de oficina de reparação de
automóveis, há um facto que o bom diploma ignora: não são criadas condições
para que algo novo caiba na escola portuguesa.
Portanto, como nada é feito para
garantir o sucesso, tudo é feito para garantir o fracasso.
Q.E.D.
António Mouzinho
P.S.: Reparei nisto: é
preciso enveredar por um curso de educação e formação ou um curso profissional
para ter ensino — de facto — laico, já que só aqui não surge Educação Moral e
Religiosa como hipótese no currículo. Significa, então, que não poderá dizer-se
«graças a Deus vim para um curso profissional» com conhecimento de causa?
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