segunda-feira, 7 de agosto de 2017

A FALTA DE AFECTO DA ADSE



“Para isto é que eu vivi? Malditos anos! Maldita velhice” 
(Arnaldo Gama, 1928-1869). 

O actual crescimento económico português parece-me assentar, de certo modo, em medidas governamentais em que os direitos adquiridos ora são interpretados como válidos, ora valem tanto como acções de bancos falidos por gestão danosa, a contrario sensu do princípio defendido por Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros do Partido Socialista: “A não rectroactividade das leis é o que distingue a civilização da barbárie”.

Este statu quo, encontra exemplo no facto do erário público pretender poupar num sistema público assistencial (ADSE), em declarado superavid, a quem o Estado recorre, por vezes, para acudir a outros sistemas públicos deficitários à custa do sacrifício de velhos, doentes e deficientes “que não têm voz, não têm “lobbies”, não têm advogados, não têm banqueiros” (António Bagão Félix, “Jornal de Negócios”, 30/11/2012).

Destarte, um indivíduo que desde a criação da ADSE (1963) tenha usufruído da situação de cônjuge de beneficiário titular perde essa situação se, entretanto, lhe for atribuída uma “principesca” reforma dos Serviços Sociais que em pouco exceda metade do salário mínimo nacional, após 12 anos contributivos, sendo tratado de forma igual a quem nunca tenha descontado um cêntimo para o efeito, quer seja são e escorreito, quer possua um atestado de invalidez por doença altamente incapacitante.

Ou seja, situações de quem tenha contribuído ou não para essa magérrima reforma são tratadas de forma igual ao arrepio do defendido por Aristóteles: “Devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida da sua desigualdade”.

Assim, “conforme dispõe o artigo 7.º do Decreto-Lei 118/83, de 25 de Fevereiro (publicado durante a vigência governativa do Partido Social Democrático), na redação do Decreto-Lei n.º 234/2005, de 30 de Dezembro (que conheceu a luz do dia num governo do Partido Socialista), legislação em banho-maria até ao ano passado (2016), a inscrição na ADSE de cônjuge como beneficiário familiar, só é viável, desde que se prove não estar abrangido, em resultado do exercício de actividade remunerada ou tributável, por Regime de Segurança Social de inscrição obrigatória e enquanto se mantiver nessa situação”.

É aqui, inevitável, a pergunta: Os cônjuges inscritos anteriormente passam a estar abrangidos pela imposição paradoxal de inscrever quem já está inscrito?

Pese embora o facto de aos excluídos da ADSE todos os serviços de urgência poderem ser prestados dificilmente no Serviço Nacional de Saúde (um serviço universal que abrange toda a população portuguesa, daí eu ter dificuldade em o considerar um subsistema de saúde) com “mais de 200 mil utentes do que em 2015” (PÚBLICO, 24/10/2016), a deslocação, por outro lado, destes doentes, alguns deles em cadeiras de rodas, às especialidades dos serviços hospitalares que rebentam pelas costuras em que, por exemplo, “as consultas em Dermatologia podem levar anos no SNS”, (semanário “Sol“, 29/10/2015) poderá conduzir a um desenlace fatal sem necessidade de os lançar ao mar ou atirá-los a precipícios, a exemplo de Esparta.

E porque, para Pio Baroja, escritor espanhol, “a diferença entre a moral e a política está no facto de que, para a moral, o homem é um fim, enquanto que para a política é um meio”, haja a esperança que a Saúde não seja perspectivada em termos de simples contas de merceeiro por ser um assunto demasiado sério reconhecido pelo actual ministro da Saúde ao nomear, meses atrás, uma comissão de destacados especialistas de diversas áreas para estudar a reforma da ADSE, presidida por Pedro Pita Barros, catedrático de Economia da Universidade Nova de Lisboa.

Num país de afectos (representado com muita dignidade pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, em acompanhamento permanente, in loco, dos acontecimentos e lenitivo para a dor indescritível dos familiares das dezenas de cidadãos queimados em vida pelo incêndio de Pedrógão Grande) espera-se que os velhos septuagenários, ou mais idosos, há várias dezenas de anos acolhidos no seio da ADSE, não continuem dela excluídos como cônjuges de beneficiários titulares enquanto, em contrapartida, foram anunciadas, tempos atrás, pelo director da ADSE possíveis novas inscrições desde que paguem uma contribuição e não tenham mais de 65 anos.

Só falta exigir-lhes um atestado que comprove uma saúde de ferro e preveja a sua continuação por muitos e bons anos. E se, segundo François Chateubriand, “outrora a velhice era uma dignidade”, não se assuma ela hoje como uma maneira de poupar umas migalhas ao Orçamento de Estado em que, conforme reza o provérbio, se poupa no farelo para gastar na farinha de gastos duvidosos ou mesmo imorais. E, sobretudo, que os seus velhos, doentes e deficientes sejam tratados com dignidade, humanidade e afecto.

P.S.: Com ligeiras alterações, meu artigo de opinião saído hoje no Público online.

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