terça-feira, 4 de outubro de 2016

Nobel da Física pela descoberta de novas fases da matéria


O Nobel da Física de 2016 foi atribuído a três físicos teóricos britânicos, que se mudaram para os Estados Unidos.  David Thouless (metade do prémio) e Michael Kosterlitz e Duncan Haldane (que dividem entre si irmãmente a outra metade). O prémio foi atribuído pela descoberta de novas fases da matéria e mudanças entre elas. Essas fases dizem-se topológicas por serem descritos com o auxílio de um ramo da matemática chamado topologia, que estuda o comportamento de objectos perante o alongamento ou a deformação. A matemática é a linguagem da Física e está longe de ser a primeira vez que novas descobertas dos físicos requerem o uso de matemática que os matemáticos já conheciam. As novas fases descobertas pelos recentes Nobel nos anos 70 e 80 do século passado ocorrem a temperaturas muito baixas em sistemas de baixa dimensões (duas dimensões - um filme - , ou uma dimensão-  um fio) nos quais não se esperava que houvesse transições de fase. A questão a que os físicos responderam foi: como se comporta a matéria a temperaturas muitíssimo baixas (perto do zero absoluto, ou zero kelvin, 0 K = - 273,15 ºC) a duas e a três dimensões? Era investigação teórica, guiada por mera curiosidade. Mas as suas previsões da ocorrência de novas e estranhas fases foram logo confirmadas em laboratório.

O que são fases da matéria? Toda a matéria que existe no Universo é feita de átomos ou de grupos de átomos (moléculas), que obedecem às leis da mecânica quântica. Um dos grandes desafios da física consiste em conhecer as propriedades de um pedaço de matéria em certas condições de temperatura e pressão: chamamos fases de matéria às formas de organização da matéria que conduzem a propriedades semelhantes. Por exemplo,  a água à pressão atmosférica é líquida entre 0 ºC e 100 ºC, mas já é sólida (gelo) abaixo de 0 ºC e gás (vapor de água) acima de 100 ºC. Falamos de fases líquida, sólida e gasosa da água. Às passagens de uma fase para outra chamamos mudanças ou transições de fase: neste caso, fusão do gelo e vaporização da água líquida. Numa mudança de fase as propriedades da matéria alteram-se devido à mudança de organização: no gelo, as moléculas de água ocupam posições regulares de um cristal, ao passo que na água líquida as moléculas movem-se mais livremente, batendo umas nas outras. Os físicos  conseguem prever as fases e as mudanças de fase da água a partir das interacções entre as moléculas. Um outro exemplo muito conhecido de mudanças de fase ocorre num íman: um material magnético, como uma barra de ferro, perde essa propriedade a altas temperaturas (os ímanes quentes não atraem). À escala microscópica um íman é feito de minúsculos ímanes (os próprios átomos de ferro têm magnetismo: falamos de "spins" atómicos) que  dão origem a magnetização macroscópica, se apontarem para o mesmo lado, ou não, se apontarem para todos os lados. Transições de fase de sistemas muito diferentes podem ter parecenças: Os físicos falam de universalidade das transições de fase. Mudanças de fase da água e do ferro são conhecidas há muito, mas, no início do século XX, foram descobertos a temperaturas muito baixas novas fases da matéria, quando esta só pode ser sólida ou líquida: certos materiais eram supercondutores - não ofereciam resistência à passagem da corrente eléctrica - ou superfluidos - perdiam a viscosidade, escorrendo com facilidade. Demorou algum, mas percebeu-se que essas novas fases, com propriedade estranhas, podiam ser explicadas pela mecânica quântica. As temperaturas baixas proporcionavam  o ambiente adequado para mostrar a mecânica quântica em acção e esta teoria revelou-se certa.

Thouless, Kosterlitz e Haldane interrogaram-se se existiria magnetismo, ou superfluidez ou supercondutividade, em sistemas de baixa dimensão a uma temperatura muito baixa, numa época em que esses sistemas eram difíceis de criar em laboratório. Dizia o senso comum que só a três dimensões é que seria possível o magnetismo. Porquê? Porque são precisas interacções entre vizinhos para originar o comportamento colectivo e, a uma ou duas dimensões, cada átomo não tem vizinhos suficientes.  E o que são temperaturas muito baixas? Temperaturas muito baixas são temperaturas mais baixas do que 4 K que é a temperatura média do Universo (4 K = - 269,15 ºC). Abaixo de  2,17 K o hélio-4 (a forma mais comum de hélio), que é líquido a essa temperatura à pressão normal, torna-se superfluido. Em todo o Universo é na Terra que foram registadas as temperaturas mais baixas: o homem desenvolveu máquinas que conseguem arrefecer até ao recorde de 0,000 000 0001 K).

Ora os trabalhos desses físicos, na altura ainda a trabalhar na Europa, deram origem a descobertas surpreendentes. A baixas temperaturas afinal podiam existir fases ordenadas a duas e a uma dimensões, fases essas que podiam ser descritas coma ajuda da tal topologia. Por exemplo, num sistema magnético (é parecido num sistema superfluido ou supercondutor), podiam-se formar localmente vórtices (turbilhões) de spins, que se multiplicavam com o aumento de temperatura, de tal modo que, a uma certa temperatura, desaparecia qualquer ordem. Ou formavam-se pares de vórtices a baixas temperaturas que se desfaziam com o aumento de temperatura, indo cada vórtice "à sua vida". No fundo ocorriam mudanças de estrutura ordenada, que podiam ser associadas a mudanças  matemáticas conhecidas na topologia.

As leis quânticas eram conhecidas, mas o comportamento colectivo era não só novo como inesperado. Sistemas com grande número de constituintes podem mostrar padrões muito complexos, que aparecem mudando um parâmetro como a temperatura. Sistemas aparentemente simples podem ter um comportamento complexo mesmo a dimensões baixas!

Um exemplo espectacular de mudanças de fase topológicas é a condução de electricidade em sistemas de electrões a duas dimensões. Foi observado que a condutividade dava saltos precisos com a variação de temperatura (efeito de Hall quântico, cuja identificação experimental deu o Nobel da Física ao alemão Klaus von Klitzing em 1985 - um prémio não dividido, ao contrário do que tem sido habitual nos últimos anos). Ora os saltos correspondiam a mudanças de topologia, isto é, a mudanças estruturais. O efeito permite hoje aos físicos medir constantes fundamentais da Física com uma grande precisão. A baixas temperaturas a teoria quântica revela os seus segredos!

O Nobel da Física de 2016 mostra, mais uma vez, o enorme poder da Física. De posse das leis fundamentais, os físicos conseguiram, com a ajuda da matemática, prever a existência de certas estruturas ordenadas a baixas temperaturas e a perda da ordem com o aumento da temperatura. Na base de tudo está o conhecimento desinteressado. Depois veio a verificação em laboratório das previsões efectuadas. E, por último, ainda que tenha demorado,  vieram as aplicações.  Décadas volvidas, as fases de Thouless e colegas começam a ser usadas em artefactos tecnológicos. Já começaram a aparecer computadores quânticos e pode ser  que eles venham a usar essas fases da matéria a baixa temperatura. Mas, na altura, os físicos teóricos não faziam ideia nenhuma da possibilidade de aplicações. A Física é uma caixinha permanente de surpresas, que é como quem diz, o nosso mundo não pára de nos surpreender.

Na imagem: três vórtices num modelo de magnetismo a  duas dimensões.



  

1 comentário:

Carlos Ricardo Soares disse...

Quanto tempo mais vai ser preciso até que, em geral, se perceba o fascínio da ciência e se aposte fortemente na divulgação científica junto das crianças e jovens?! Voltamos a estar, de novo, e de um modo avançado, na Era dos Descobrimentos, do que nos rodeia e, ainda mais "mágico", do que somos capazes. O "comportamento" da matéria é do mais fascinante e surpreendente que há. Tudo em redor parece refletir-nos um estatuto de observadores cujo privilégio consiste, justamente, em observar; e tanto maior será o privilégio quanto melhor o fizermos.

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