São muitas e variadas as conexões entre o famoso personagem
criado pelo desenhador belga Hergé (pseudónimo de
Georges Remi) e o mundo da ciência. Mas são apenas algumas
as referências que Tintim faz a Portugal e aos portugueses.
Num só caso, os dois conjuntos de referências se intersetam:
no álbum A Estrela Misteriosa, uma das personagens é Pedro João
dos Santos, professor de Física da Universidade de Coimbra
(UC). É bem conhecido o cuidado com que Hergé preparava
os seus álbuns, muitas vezes baseados em cenários, personagens
e eventos reais. Faz, portanto, todo o sentido perguntar:
quem era o físico português da banda desenhada? Que personagem
poderia ter servido de inspiração ao artista?
O álbum A Estrela Misteriosa, publicado em 1942, na Bélgica
ocupada pela Alemanha nazi, descreve a queda de um meteorito
na Terra, no qual tinha sido detectado, durante a
queda, um elemento químico novo. Para o estudar, foi constituída
uma comissão internacional de sábios, que apenas
incluía cientistas da Alemanha e de países neutros, como
Portugal e Suécia. A expedição, que viaja sob a bandeira de
um Fundo Europeu de Pesquisas Científicas, anterior ao
aparecimento das instituições científicas pan-europeias que
emergiram no pós-guerra, inclui o investigador português
Pedro João dos Santos, que Hergé designa por baixo do respe tivo
retrato, de “célebre físico da Universidade de Coimbra”.
Curiosamente, embora o Professor Santos nunca fale, é-lhe reconhecida
alguma proeminência entre os sábios, uma vez
que aparece por duas vezes em reuniões à direita de Tintim,
o principal herói do álbum.
Na época, ensinava em Coimbra um professor com um
nome que também era “João” e “Santos”, João de Almeida
Santos (1906-1975), que se tinha doutorado em 1935, na
Universidade de Manchester, na área de raios X, trabalhando
com o mais jovem prémio Nobel de sempre, William
Bragg. Em 1942, Almeida Santos ainda não era catedrático
(viria a sê-lo em 1948) e não se pode dizer que fosse célebre.
Torna-se relevante na ciência da UC quando é nomeado,
em 1948, diretor do Laboratório de Física, sucedendo
a Mário Silva, o discípulo de Madame Curie afastado pelo
Estado Novo por motivos políticos. Almeida Santos viria a
dirigir o referido Laboratório até à Revolução de 1974.
A ele se deve o desenvolvimento da investigação em
Coimbra, não apenas na área dos raios X, mas também
noutras áreas que cresceram nos anos 1960: a física nuclear
experimental e a física teórica. Replicando o que se tinha
passado consigo, enviou bolseiros para algumas das melhores
instituições científicas do Reino Unido. Não admira,
por isso, que o Departamento de Física o tenha homenageado
em 1997. Antigos discípulos dele louvaram as suas
capacidade pedagógicas e de gestão, baseadas numa sólida
formação científica. Se o nome favorece a identificação de
Almeida Santos com o físico português de Hergé, outros
factores não vão no sentido de tal associação. O retrato da
banda desenhada não se parece com o do personagem real
(aparenta ser mais velho do que Almeida Santos, que em
1942 tinha 36 anos) e, principalmente, a sua área de trabalho
não seria a mais adequada para integrar uma expedição às águas do Árctico, em busca de um meteorito. A verosimilhança
do retrato não é uma questão de somenos, pois o
membro sueco da expedição, de seu nome Erik Björgenskjöld,
apresentado como “autor de notáveis trabalhos sobre as protuberâncias
solares”, parece inspirado em Auguste Piccard
(1884-1982), um cientista suíço que trabalhou em Bruxelas
e que, conforme o próprio Hergé admitiu, foi também o modelo
para a criação do Professor Girassol, personagem que só
surgiu em O Tesouro de Rackham o Terrível, de 1944, a sequela
de O Segredo de Licorne, de 1943, o álbum seguinte à A Estrela
Misteriosa. Piccard protagonizou descidas submarinas a grande
profundidade, a bordo de um batiscafo de sua autoria, e
também ascensões à estratosfera, a bordo de balões especiais.
Um batiscafo em forma de tubarão, pilotado por Tintim,
surge n’O Tesouro de Rackham o Terrível.
Que outras hipóteses se podem colocar sobre a eventual
personagem que teria inspirado Hergé? Havia, embora já
jubilado, um outro professor da UC, que, sendo matemático
em vez de físico, trabalhava na área da Astrofísica Solar
(portanto, tal como Björgenskjöld, sabia de protuberâncias
solares): Francisco da Costa Lobo (1854-1945) doutorou-se em 1885 e foi director do Observatório Astronómico de
Coimbra, de 1922 a 1934, quando se jubilou. Participou em
numerosos congressos por todo o mundo, representando
a UC e a ciência portuguesa, tendo com isso alcançado
um certo reconhecimento internacional (recebeu, por
exemplo, a Ordem de Leopoldo da Bélgica). No entanto,
se a sua área de trabalho e a sua celebridade se ajustam
mais à sua integração numa equipa científica internacional,
contra a sua identificação está o facto de ele, em 1942, com
88 anos, estar há muito retirado da vida ativa.
Há ainda uma terceira hipótese: o físico António Gião
(1906-1969), que começou a estudar na UC em 1924 e que
se mudou para a Universidade de Estrasburgo, onde se formou
em Geofísica, tendo então começado uma carreira
internacional em meteorologia. Esteve em várias cidades
europeias e há uma curiosa associação a uma expedição a
águas do Árctico: em 1928, foi convidado a integrar a expedição
ao Polo Norte chefiada pelo capitão italiano Umberto
Nobile, tendo, no entanto, declinado o convite. Foi a sua
sorte, pois a expedição acabou em tragédia: o dirigível caiu
nos gelos, tendo morrido sete dos seus tripulantes. Para cúmulo do infortúnio, também faleceu numa operação de socorro
o famoso explorador norueguês Roald Amundsen,
que tinha sido o primeiro a chegar ao Polo Sul em 1911.
Gião haveria, devido à guerra, de voltar a Portugal, tendo
-se estabelecido na sua terra natal, Reguengos de Monsaraz.
Em 1946, dá início a uma correspondência com o então já
famoso Albert Einstein, a residir em Princeton, nos Estados
Unidos. Haveria de ingressar na Faculdade de Ciências da
Universidade de Lisboa, nos anos 1960, como professor
convidado. Foi também o primeiro director do Centro de
Cálculo do Instituto Gulbenkian de Ciência.
Não há, portanto, uma atribuição óbvia a um personagem
real do personagem fictício da história de Tintim. Almeida
Santos, Costa Lobo ou Gião. Os três tiveram ligações à UC,
os três tiveram carreiras internacionais e os três, cada um
a seu modo, foram figuras do século XX português, decerto
marcado pela governação de Salazar. O facto mais interessante
é Hergé ter-se lembrado de incluir um cientista de
Coimbra numa expedição, chefiada por um belga, que reunia
cientistas da Suécia, Espanha, Suíça e Alemanha. Tem
sido muito discutida a inclinação germanófila de Hergé
nos tempos da Segunda Guerra Mundial. De facto, o jornal
Le Soir, onde ele primeiro publicou as tiras de A Estrela
Misteriosa, era colaboracionista com o invasor. Um pormenor
deste álbum dá a entender o antissemitismo do desenhador
belga. Com efeito, há uma expedição ao meteorito
rival da do Fundo de Pesquisas Europeu: ela aparece no
Le Soir como uma expedição norte-americana financiada
por um judeu, de seu nome Blumenstein. Hergé mais tarde
teve o cuidado de ter mudado a bandeira dessa expedição
para a bandeira de uma inexistente República de São Rico e de ter
substituído o nome do patrocinador por um outro sem
qualquer conotação judaica. As Aventuras de Tintim são um
retrato do tempo em que foram desenhadas e, como não
podia deixar de ser, também um retrato do autor. Hergé
pode ter sido controverso, mas é incontroverso que a sua
obra inaugurou uma época na banda desenhada.
2 comentários:
A legenda não faz sentido porque não há nem nunca houve um físico célebre na Universidade de Coimbra.
É uma história imaginativa, mas considerar António Gião como podendo ser esse tal físico célebre ligado à Universidade de Coimbra parece ser um pouco ousado.
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