quarta-feira, 28 de setembro de 2016

UM MUNDO ESTRANHO E PERIGOSO



Minha crónica no Público de hoje:

A presidência dos Estados Unidos aparece nas listas de empregos mais difíceis do mundo, juntamente com trabalhador em minas de carvão ou pescador de caranguejo no Alasca. É bem pago, embora com contenção: o casal Obama declarou que teve no ano passado um rendimento conjunto bruto de 436.065 dólares (389.170 euros), sujeito a um imposto de 18,7% (dividido por 14 meses, fica um rendimento líquido de 22.600 euros).  Considerado o lugar com maior poder do mundo, não admira que seja um dos mais difíceis de obter. O processo de selecção é longo, complicado, cansativo e, para os próprios e seus adeptos, extremamente dispendioso.

Escrevo quando faltam menos de seis semanas para a eleição que determinará o próximo morador na Casa Branca. A televisão está a transmitir o primeiro dos três debates entre os candidatos que chegaram à final, escolhidos pelos dois maiores partidos: Hillary Clinton e Donald Trump. As sondagens indicam neste momento um empate técnico, estando Trump numa trajectória ascendente. Os analistas prevêem a vitória de Clinton, por uma pequena margem. Um percalço num debate pode custar a qualquer um deles o pretendido lugar.

Esta eleição tem sido particularmente dura. Por um lado, os cargos de primeira dama, senadora e  secretária de Estado na presidência de Barack Obama trouxeram à Senhora Clinton um registo político e pessoal controverso. É uma pessoa endinheirada, como transparece do facto de o casal Clinton ter declarado, em 2015, 11 milhões de dólares de rendimentos, sujeitos a 31% de impostos, conseguidos acima de tudo com discursos pagos por empresas. Entre muitos eleitores, entre os quais uma boa fatia de democratas, é vista como refém de interesses instalados, que não mudará o establishment. O  facto de poder vir a ser a primeira mulher presidente, após 44 homens, não é sentido como uma mudança profunda. Por outro lado,  Trump é um fenómeno nunca visto em eleições americanas. É um multimilionário (a sua fortuna foi avaliada pela Forbes em 4,5 mil milhões de dólares, muito maior que a dos Clinton e, claro, dos Obama), mas recusa-se a revelar o seu rendimento anual e a taxa de impostos. Acima de tudo, é um personagem com um ego do tamanho da Trump Tower e totalmente desbocado,  conseguindo amiúde irritar altos dirigentes do Partido Republicano. Alguns dos extremos da sua retórica de “America First” (leia-se “Trump first”) foram atingidos quando prometeu construir um muro ao longo da fronteira com o México, pago pelos mexicanos, quando anunciou ir expulsar cerca de 11 milhões de emigrantes sem papéis e impedir a entrada na América de quaisquer muçulmanos, e ainda quando declarou a sua intenção de intensificar a luta antiterrorista com o uso de formas de tortura mais violentas que o waterboarding (propôs mesmo matar as famílias dos terroristas). Por muito bruto que seja o seu estilo, o certo é que uma boa parte da América profunda se reconhece nele.

Eu, não sendo americano, não voto nas eleições americanas. Mas, se o fosse, não hesitaria em votar contra Trump. Os pecadilhos ou pecados de Hillary nada são comparados com as desmesuras do seu opositor troglodita.  O racismo e a misoginia de Trump deveriam bastar para impedir a sua chegada ao poder: declarou recentemente que uma jornalista que o entrevistou tinha “sangue a sair dos olhos e sangue a sair do seu... seja lá o que for”, insinuando que estava menstruada; e um dos seus colaboradores mais próximos da campanha tem espalhado a pergunta: “Preferia  que a sua filha tivesse cancro ou feminismo?”, percebendo-se ser adepto da primeira opção. Mas acresce a sua completa ignorância em assuntos tão importantes como a economia, a política internacional e a ciência e tecnologia. Na economia não chega a ter um plano, mas apenas as ideias de diminuir os impostos aos ricos e de rasgar os tratados internacionais. Na política internacional, defende a ideia perigosíssima para o equilíbrio mundial de que os até agora aliados dos Estados Unidos terão de assegurar a sua própria defesa, o que implica a proliferação de armas nucleares, por exemplo com a corrida ao armamento por parte do Japão e da Coreia do Sul  (o físico Jeremy Bernstein explicou isto bem num artigo na The New York Review of Books de 12 de Maio, intitulado “The Trump bomb”) e a NATO a ficar à míngua. Por último, na ciência e tecnologia, declarou-se contrário às medidas ambientais exigidas pelo aquecimento global, algo em que não acredita. Chegou a afirmar que o “aquecimento global é uma fraude inventada pelos chineses para destruir a indústria americana.”

Olho para a televisão à espera da próxima atoarda de Trump. Contudo, considerando todas aquelas que já disse impunemente, fico com dúvidas se elas funcionam contra ou a favor dele. Vivemos, de facto, num mundo estranho e perigoso.

PS) Respiro: a CNN diz que Hillary derrotou Donald no debate.



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