Na passagem de um ano que foi, a diversos títulos, sombrio para um outro que se deseja mais luminoso, deixo algumas preciosas palavras de Immanuel Kant (1724 -1804) sobre a educação.
Tal como outros filósofos que o antecederam, Kant percebeu bem que a educação é a única forma que temos de nos tornarmos e permanecermos humanos. Quando deixa de ser orientada por essa finalidade última que é o pensamento esclarecido, a barbárie rapidamente substitui a humanidade.
Talvez estejamos, mais uma vez, a falhar na resolução desse eterno problema que é a educação, "o maior e mais difícil que pode ser confiado ao homem"... Só assim se compreende o avanço das muitos nuvens cinzentas e algumas bem negras que pairam sobre todos nós.
"O homem é a única criatura que tem de ser educada (...)
Educar é uma arte cujo exercício tem de ser aperfeiçoado através de muitas gerações. Cumulada com os conhecimentos dos que já passaram, cada geração pode sempre levar a cabo, cada vez mais, uma educação que desenvolva proporcionadamente e de modo conforme ao seu fim todas as disposições naturais do homem, e assim conduzir todo o género humano à sua destinação.
O homem deve desenvolver primeiro as suas disposições para o bem; a Providência não as colocou já prontas nele; são meras disposições e sem a nota da moralidade. Tornar-se melhor, cultivar-se e, quando se é mau, produzir em si a moralidade, isso é tarefa do homem.
Mas quando se reflecte maduramente sobre isso, descobre-se que tal é muito difícil.
Daí que a educação seja o maior e mais difícil problema que pode ser confiado ao homem.
Pois o saber depende da educação, e a educação depende, por seu turno, do saber.
Daí que a educação também só possa avançar a pouco e pouco, e é apenas pelo facto de uma geração transmitir as suas experiências e conhecimentos à seguinte, e esta acrescentar algo por sua vez e passá-lo deste modo à seguinte, que pode emergir um conceito correcto de como educar (...).
O homem pode ser ou meramente adestrado, amestrado, instruído mecanicamente, ou ser realmente esclarecido. Adestra-se cães, cavalos, e também se podem adestrar homens."
___________
Referência bibliográfica: Kant, I. (1803/2012). Sobre a pedagogia. Lisboa: Edições 70.
sábado, 31 de dezembro de 2016
sexta-feira, 30 de dezembro de 2016
ANO NOVO, CONHECIMENTO NOVO
Texto primeiramente publicado na imprensa regional.
A investigação científica e tecnológica produz conhecimento novo todos os anos. Todas as áreas do conhecimento científico avançam, umas mais outras menos, mas todas progridem no sentido de nos apresentarem uma melhor compreensão do Universo. Alguns avanços são, contudo, mais mediáticos, pois colocam em causa, ou melhoram, as teorias até aí estabelecidas e aceites pela comunidade científica internacional.
A investigação científica e tecnológica produz conhecimento novo todos os anos. Todas as áreas do conhecimento científico avançam, umas mais outras menos, mas todas progridem no sentido de nos apresentarem uma melhor compreensão do Universo. Alguns avanços são, contudo, mais mediáticos, pois colocam em causa, ou melhoram, as teorias até aí estabelecidas e aceites pela comunidade científica internacional.
Neste contexto, no novo ano de 2017 poderemos testemunhar
algumas descobertas científicas que serão notícia nos órgãos de comunicação
social. E quais serão elas? As revistas Science e Nature todos os anos
exercitam previsões de quais serão. Apresento de seguida algumas delas.
Muito da evolução científica das últimas décadas deve-se ao
papel desempenhado pelo uso de computadores cada vez mais potentes, que
permitem cálculos e tratamentos de dados colossais antes impossíveis. Assim, as
investigações sobre o desenvolvimento de computadores quânticos, em que os
chips são “substituídos” por átomos, aumentado consideravelmente a capacidade
de cálculo, continuarão a ser notícia durante este ano que agora começa.
Em Abril próximo, astrónomos usarão nove telescópios
localizados em vários locais do globo terrestre para formar um grande
observatório planetário. Um dos objectivos será o de tentar conseguir obter a
primeira “fotografia” da região que limita exteriormente um buraco negro. O
escolhido é um buraco negro supermassivo situado no centro da Via Láctea.
A teoria da relatividade de Einstein continuará a ser
testada e confrontada com novos dados experimentais, aliás como todas as
teorias o são, eventualmente provenientes dos observatórios LIGO e VIGO,
situados respectivamente nos Estados Unidos e em Itália, centrados na detecção
de novas ondas gravitacionais.
A imunooncologia, uma nova estratégia na luta contra o
cancro, que tem vindo a ser desenvolvida nos últimos três anos, na qual as
células do nosso sistema imunitário são “instruídas” para detectar e destruir
as células cancerosas, é uma área da biomedicina que estará na mira do nosso
maior interesse.
O avanço nas técnicas de sequenciação de genomas, que as
torna cada vez mais rápidas e baratas, permitirá que em 2017 se publiquem
muitos estudos sobre os genomas de seres vivos ainda não sequenciados. Com
particular destaque estará a compreensão que daí advirá para a interacção entre
os microrganismos que vivem no nosso corpo (o nosso microbioma) e a sua
influência sobre o nosso estado de saúde. Entre outros, o Projecto do Microbioma
Humano, a decorrer nos Estados Unidos, trará muitas novidades nos próximos
meses.
Termino esta breve e obviamente incompleta lista (imposta
pela limitação de espaço para esta crónica) sublinhado as grandes expectativas
que existem com o desenvolvimento e aplicação de técnicas de edição do genoma, principalmente
com a designada genericamente por CRISPR. A possibilidade de corrigir “letra a
letra” genes que possam estar envolvidos em doenças, para além de levantar
várias questões éticas, potencia uma nova revolução na investigação biomédica e
tratamento de doenças.
Que 2017 nos traga o melhor da Humanidade!
António Piedade
EVENTO CIENTÍFICO DO ANO E MEU DESEJO PARA 2017 NO JORNAL I
Acontecimento
científico do ano
O evento
científico do ano teve a
sua origem há 1,3 mil milhões de anos com o choque de dois
enormes buracos negros.
Foi a descoberta das ondas gravitacionais, propagação de abalos
no espaço-tempo
que tinha sido prevista por Einstein há cem anos. Não é apenas
mais um sucesso
de Einstein, é um triunfo de tecnologia muito delicada e,
principalmente, a
abertura de uma nova janela para o cosmos. Até agora só víamos o
céu, agora passámos
também a “ouvi-lo”. Vamos saber mais sobre os buracos negros e
sobre o Big Bang.
Desejo para 2017
Que a geração
brilhante de
investigadores portugueses que formámos nas últimas duas décadas
encontre emprego
científico em Portugal, designadamente nas universidades e
politécnicos (que
precisam de urgente renovação), e nas empresas (que precisam de
visão e modernização).
Temos de dar futuro a essa geração do conhecimento porque o
futuro do país
passa em, grande medida, pelo futuro deles.
Carlos Fiolhais
quinta-feira, 29 de dezembro de 2016
Ciência entre Poesia e Metáforas
Texto que escrevi inicialmente para o projeto Ciência na Imprensa Regional.
Vivemos numa época em que a
atividade científica é realizada a uma escala global, com milhares de
cientistas em inúmeros grupos de investigação e nas mais diversas áreas. Os
resultados destas pesquisas são publicados em revistas científicas
internacionais, com linguagem quase hermética resultante do elevado grau de
especialização, e, portanto, praticamente inacessíveis aos restantes cidadãos.
É neste contexto que nos apercebemos da enorme importância que têm os
divulgadores de ciência ao selecionar, desmontar e explicar, de modo
compreensível a todos, os resultados da investigação internacional.
Vem esta reflexão a propósito
do mais recente livro, “Íris Científica 3”, do divulgador de ciência António
Piedade. Este é um livro dividido em duas partes, em que o autor, primeiro,
olha para fora, falando-nos das pesquisas mais recentes sobre o espaço, para
depois olhar para o que se passa no nosso planeta, abordando a investigação
laboratorial. As macro e micro escalas encontram espaço neste livro de cerca de
140 páginas. São pequenos textos que nos falam dos mais diversos temas
científicos, de um modo fascinado e literário, quase poético. Aliás, não
poderia começar de melhor maneira: “Olho o conhecimento com um deslumbramento
novo!”. Ou ainda, mais à frente, antes de falar da gama do espetro da luz solar
que os nossos olhos são incapazes de captar, escreve: “Abraço o arco-íris com o
olhar visível”. Um último exemplo, já no final do livro, após explicar a cor
das folhas das árvores nas várias estações, recorrendo à fisiologia das
plantas, conclui: “Disfrutemos a beleza da paleta outonal, pois não há outra
igual!”.
Este é ainda um livro de
desafios, quando, por exemplo, começando por falar da Terra incita-nos a
calcular a massa da via láctea. Ou qual a quantidade de cálcio ou sódio existe
no nosso corpo, ou ainda o que está a acontecer à mancha vermelha de Júpiter?
Ao mesmo tempo que o autor
divulga a investigação realizada, aproveita também para partilhar algumas
reflexões, como no caso em que, ao falar da cooperação entre as primeiras
células que foi necessária para o desenvolvimento da vida na Terra e ao falar
da cooperação entre astrónomos de vários países que permite observações de
campos recônditos do cosmos, constata quão importante é a cooperação para a
vida assim como para as nossas atividades quotidianas: cooperando alcançamos “aquilo
que sozinhos não conseguimos, ou levamos mais tempo a atingir”.
Outro aspeto relevante, e que
pode passar despercebido à maioria dos leitores, é como a situação social está
a afetar a nossa vida, o que se reflete na nossa maneira de pensar e por
conseguinte de comunicar. Como vários investigadores têm notado, o contexto
bélico do século XX influenciou a criação de metáforas em bacteriologia e
imunologia, com bactérias que atacam, um sistema imunológico que se defende dos
invasores e um interior do corpo humano que é um campo de batalha. No presente,
António Piedade fala da genética numa linguagem diferente, em que menciona
“diálogo” entre cromossomas, interação com um “governo bioquímico que estamos
longe de entender bem”, “confrontação democrática”, “tendências”, ou “economia
genética”. Sinais dos tempos em que a preocupação com a guerra deu lugar à
preocupação com a situação política e económica, criando uma linguagem de pensamento
nova.
Os textos de “Íris Científica
3” resultam de crónicas que tem escrito para o projeto Ciência na Imprensa
Regional – Ciência Viva. Este livro vem
juntar-se aos outros dois anteriores, formando uma coleção que vale a pena
acompanhar e, decerto, ser estudada do ponto de vista académico num futuro
próximo.
PROFESSORES DO SUPERIOR QUE DÃO AULAS SEM RECEBER
Foi ontem noticiado pelo JN que Reitores contratam professores para dar aulas sem receber. A polémica surgida ontem já conta com várias reacções:
- Do Presidente do Conselho de Reitores: Reitores dizem que docentes sem salário é "normal e pontual"
- Do Ministro da Ciência: Ministro do Ensino Superior diz que situação de docentes sem salário é “normal”
- Da Associação de Bolseiros de Investigação Científica: Regulamentos obrigam bolseiros a assegurar trabalho docente sem vencimento
Obviamente que é tudo uma questão de intensidade, como diria Pinto da Costa. Se um professor de uma universidade vai a outra dar uma aula de 2 horas pontualmente é natural que possa não ser pago. Ou se um qualquer profissional vai dar uma palestra esporadicamente a alunos de um mestrado ou de um programa doutoral. Mas é completamente inaceitável que bolseiros de investigação sejam forçados por regulamentos internos a darem aulas sem qualquer remuneração adicional, quiçá amaciados com a ideia de estarem fortalecer o CV. Certamente poderão incluir no CV que já têm experiência a trabalhar de graça, se se candidatarem a outro trabalho não remunerado.
Este é mais um sinal de que as instituições de ensino superior não só estão viciadas em bolsas e falsas bolsas, como no trabalho gratuito dos bolseiros.
terça-feira, 27 de dezembro de 2016
MEU POSTAL DE NATAL 2016
Venho enviar a já tradicional árvore natalícia do Rómulo, lembrando um excerto do livro "Cosmos" de Carl Sagan (1934-1996), que morreu fez agora 20 anos:
"O livro é feito de uma árvore. É um conjunto de partes lisas e flexíveis
(que ainda se chamam “folhas”) impressas em caracteres de pigmentação escura.
Dá-se uma vista de olhos e ouve-se a voz de outra pessoa -
talvez alguém que já tenha morrido há milhares de anos. Através dos milénios,
o autor está a falar, com clareza e em silêncio, dentro da nossa cabeça,
directamente para nós. A escrita foi talvez a maior das invenções humanas,
ligando das pessoas, cidadãos de épocas distantes que nunca se chegaram a conhecer.
Os livros quebram as cadeias do tempo, provam que os seres humanos são capazes
de exercer a magia." (Lisboa: Gradiva, 2001, p. 281).
Boas Festas e Feliz 2017 com
muitos e bons livros!
Carlos Fiolhais
Carlos Fiolhais
Recentes petições destinadas a influenciar a composição do currículo escolar
Na passada semana dei conta de duas (ou serão três?) petições relativas à educação escolar.
- Uma petição contra o referencial da educação para a saúde (aqui);
(mas se a educação para a saúde - e sexualidade - não estivesse prevista no currículo, haveria certamente uma petição a seu favor).
Este referencial também gerou uma reacção que já tardava a chegar a Portugal (aqui)
- Outra petição a favor de uma disciplina de relaxamento e meditação e, na mesma linha, outra a favor de uma diciplina de educação espiritual (aqui).
(presumo que o sentido seja o mesmo).
Acontece que estas duas vertentes (ou será apenas uma?) já estão nas escolas que as escolheram como opções, por exemplo, no quadro da "oferta de escola" ou as integraram simplesmente nas suas rotinas. E, ao que sei não são poucas.
O que é que tudo isto nos diz? Diz-nos pelo menos duas coisas igualmente preocupantes.
Uma é que enquanto o currículo especificamente escolar "encolhe" e se reduz a um núcleo fundamental/essencial, estas propostas amontoadas na designação de "educações para..." já não ficam aí contidas, espandem-se e multiplicam-se.
Outra é que todos os "grupos de pressão" que possamos imaginar e também pessoas individuais se acham no direito de influenciar e determinar o currículo escolar e, como a própria expressão indica, à força.
O currículo é remotamente visto em função daquilo que a escola deve ser, em benefício dos seus destinatários directos, os alunos; o que dele se pretende, na verdade, é que dê visibilidade a opções, a interesses particulares.
Nada disto é novo, na verdade, o que será novo são os meios.
- Uma petição contra o referencial da educação para a saúde (aqui);
(mas se a educação para a saúde - e sexualidade - não estivesse prevista no currículo, haveria certamente uma petição a seu favor).
Este referencial também gerou uma reacção que já tardava a chegar a Portugal (aqui)
- Outra petição a favor de uma disciplina de relaxamento e meditação e, na mesma linha, outra a favor de uma diciplina de educação espiritual (aqui).
(presumo que o sentido seja o mesmo).
Acontece que estas duas vertentes (ou será apenas uma?) já estão nas escolas que as escolheram como opções, por exemplo, no quadro da "oferta de escola" ou as integraram simplesmente nas suas rotinas. E, ao que sei não são poucas.
O que é que tudo isto nos diz? Diz-nos pelo menos duas coisas igualmente preocupantes.
Uma é que enquanto o currículo especificamente escolar "encolhe" e se reduz a um núcleo fundamental/essencial, estas propostas amontoadas na designação de "educações para..." já não ficam aí contidas, espandem-se e multiplicam-se.
Outra é que todos os "grupos de pressão" que possamos imaginar e também pessoas individuais se acham no direito de influenciar e determinar o currículo escolar e, como a própria expressão indica, à força.
O currículo é remotamente visto em função daquilo que a escola deve ser, em benefício dos seus destinatários directos, os alunos; o que dele se pretende, na verdade, é que dê visibilidade a opções, a interesses particulares.
Nada disto é novo, na verdade, o que será novo são os meios.
PREVISÕES PARA A CIÊNCIA
Meu artigo sobre previsões no Público de hoje:
Que o futuro é uma caixa de
surpresas estamos fartos de saber. Mesmo na ciência, que nos confere algum
poder de previsão, as surpresas surgem a toda a hora. Eis, apesar de tudo,
algumas previsões para a ciência em 2017.
O CERN, onde em 2012 se encontrou
a partícula de Higgs que completou o conjunto de partículas do “modelo padrão”,
continuará em busca de partículas novas previstas por teorias para além desse
modelo. Se nada surgir podem ficar em causa planos para a construção de um
acelerador maior no próprio ou no Japão ou na China, potência emergente na
ciência.
CERN
Do espaço vêm sempre novidades. Em
2016 a maior foi a descoberta das ondas gravitacionais. Espera-se a detecção de
mais eventos, fazendo luz sobre os objectos mais intrigantes do cosmos - os
buracos negros. Ainda do espaço, se em 2016 foi anunciado um planeta semelhante
à Terra à volta da estrela mais próxima do Sol, haverá previsivelmente uma
“chuva” de novos exoplanetas com os lançamentos pela NASA da sonda TESS e pela
ESA da Cheops. Não se sabe o que vai acontecer à NASA, mas há receios em geral
quanto ao modo como Trump vai tratar a ciência (para o clima global e para as
energias renováveis ninguém espera boas notícias). Pode, porém, haver surpresas:
um seu tweet pode ser o tiro de
partida para Marte.
Na biomedicina estão a ocorrer
desenvolvimentos não menos espectaculares. Se, em 2000, Clinton e Blair
anunciaram a primeira sequenciação completa do genoma humano, Obama lançou em
2015 lançou uma iniciativa de “medicina de precisão”, assente na genética,
depois de Cameron ter anunciado, em 2014, um programa de sequenciação de cem
mil genomas de pessoas com cancro e doenças raras. Estamos no limiar da
medicina personalizada: os tratamentos serão à medida de cada um, conforme o
seu perfil genético. Em 2013 com a invenção da técnica CRISPR abriram-se
possibilidades extraordinárias no controlo do ADN, que estão a levantar questões
éticas. Ainda na biomedicina, os estudos do cérebro avançarão para sabermos
mais sobre a inteligência, a memória e a consciência.
E a ciência em Portugal? Houve
uma mudança em 2015, mas esperava-se que fosse para mais e melhor. Oxalá seja
em 2017.
«Frederico Lourenço, a Bíblia, o elogio da poética e o regresso à cultura»
No último Jornal de Letras, Paulo Mendes Pinto, estudioso de Ciência das Religiões, escreve sobre «Frederico Lourenço, a Bíblia, o elogio da poética e o regresso à cultura»
Tal como no chamado
Cântico dos Cânticos, ou nas imensas poesias tradicionalmente atribuídas a
Salomão e insertas na Bíblia, alguns cantos da Odisseia continuam a despertar
em nós o fascínio que despertam os enigmas que nada de estranho nos apresentam,
mas que indizivelmente fogem à compreensão que as palavras, quase sempre
imediatas, procuram abarcar.
Nesse distante poema
homérico, de mais de 2.500 anos de sentidos e leituras, um aedo é chamado a
declamar, tal como sucederia nas comuns noites num palácio em que se reuniriam
em torno do lume os grandes, os nobres, os guerreiros e os aventureiros,
aqueles que tinham novas para transmitir. O aedo, qual metáfora do poder do seu
olhar, é cego. Mas fala, declama. É escutado.
E as “novas” poderiam ser
plenamente novas ou não. Os mitos nasciam desse afastamento a um tempo concreto
mediante a assunção de uma dimensão primordial, organizadora de uma ordem, de
um sistema. Ouvir um aedo a declamar a sua poesia era, quer escutar novidades,
num tempo onde o Saber era lento na transmissão, quer voltar a entrar dentro de
conhecimentos ancestrais, já sabidos, em nada novos, mas constantemente
rememorados e revalidados. Sendo apreendida individualmente, a poesia era uma
dimensão social e colectiva.
A poesia era
verdadeiramente uma linguagem de códigos, de descoberta. Se a prosa descrevia o
linear, os tratados, as contas, os registos, a poesia, com o seu ritmo, com a
rima e a entoação, quase sempre acompanhada de música, era o campo do que não
podia ser apenas ouvido, mas tinha de ser entendido. A poesia era hermenêutica
em potência, era abertura à interpretação, era convite a elaborar e a
descobrir.
Não será, obviamente por
acaso que muitos Textos Sagrados se encontram nessa forma ritmada que faz
entrar o leitor e o ouvinte numa dimensão fora da linguagem normal, num quadro
de ritmicidade, numa valoração de ritual, de contacto com uma Verdade fora da
compreensão imediata.
É este, em meu entender,
o ponto de contacto mais interessante entre traduzir Homero e traduzir a
Bíblia. Pouco aqui interessa a qualidade das traduções de Frederico Lourenço,
mais que aclamadas, validadas e reconhecidas por gente de cultura e académicos;
o que de mais importante o recém premiado com o Prémio Pessoa nos trouxe foi,
literalmente, a Bíblia de volta.
Muitos foram, ao longo
dos séculos, os medos, os receios e os interditos ligados à tradução da Bíblia.
Se o mundo influenciado pela Reforma Protestante democratizou a Bíblia,
deixando-a influenciar a sua cultura, desenvolvendo rapidamente a alfabetização,
por exemplo, nos meios católicos a Bíblia manteve-se até quase hoje um absoluto
desconhecido.
Frederico Lourenço, numa
tradução não ligada a confissão cristã alguma, municiado essencialmente da sua
capacidade de domínio do grego, começou a fazer com o texto bíblico aquilo que
fez tão elegantemente com a Ilíada ou a Odisseia.
E fazer o mesmo com estes
textos que num olhar religioso são tão diferentes, é assumir que um aspecto
fundamental eles apresentam em comum: seja-se religioso, ou não, a Bíblia é um
texto fundante do que somos. Ao retirar o monopólio da tradução e da edição da
Bíblia ao mundo religioso, Frederico Lourenço fez regressar a Bíblia à cultura,
de onde, afinal, nunca deveria ter saído.
Com o trabalho de
Frederico Lourenço, passamos a ter mais que uma nova edição da Bíblia, passamos
a ter uma edição descomprometida com uma visão religiosa. Não que para a
História da Bíblia toda e qualquer ligação religiosa não seja importante, mas
hoje, mais que nunca, urge perceber que ela é um património que não se esgota
no campo da crença e das afirmações de fé.
E, num passo mais a
seguir, ao ter uma tradução que pega no texto coo produtor de cultura, somos
todos nós, leitores, chamados a ler, agora fora dos púlpitos onde se apoia a
dogmática e a palavra certa. Regressando com a Bíblia aos textos de Homero,
aliás, textos em muito contemporâneos dos bíblicos, e geograficamente não muito
distantes no que respeita aos locais de redacção, esta nova tradução realizada
pelo classicista da Universidade de Coimbra impele-nos à leitura poética do
texto, como que declamada, como eram, de facto, para serem lidos quando foram
escritos.
É que a poética abre-nos
a porta para o único e o irrepetível; cada leitura é uma vivenciação. A grande
tentação de reduzir a capacidade de pensamento e de leitura a uma lógica religiosa
encontrava-se na uniformização, na normativização, na nivelação. Por esta razão
a Bíblia foi tão pouco tida em conta em grande parte da História do
Cristianismo: ler a Bíblia, como qualquer outro texto antigo, fornece
ferramentas para as mais profundas problemáticas, ou não fosse isso mesmo que
fez com que estes textos perdurassem e se tornasse “clássicos”.
É desta forma livre e
liberta que o texto bíblico pode ser redescoberto como centro de cultura. É na
sua capacidade de inebriamento, fora das regras religiosas, que a sua Sabedoria
surge e se espraia no leitor ou, regressando ao aedo de Homero, no ouvinte,
anulando a diferença entre o que escreveu, seja poeta, ou não, e o ouvinte,
aquele que ouve, trauteia ou repete.
Paulo Mendes Pinto
ANSELMO BORGES SOBRE A TRADUÇÂO DA BÌBLIA DE FREDERICO LOURENÇO
Link para a última coluna do Padre Anselmo Borges no DN, em que ele cita Frederico Lourenço:
Natal. Traduções da Bíblia
Consulte o artigo completo em: http://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/anselmo-borges/interior/-natal-traducoes-da-biblia-5569751.html
segunda-feira, 26 de dezembro de 2016
Circunstâncias "excepcionais" tornadas "normais"
Fotografia de Graeme Robertson for the Guardian publicada aqui. |
Foi hoje publicada no The Guardian uma notícia que, de alguma maneira, já seria de esperar: as muitíssimas câmaras de vigilância espalhadas pelas cidades - no caso, Londres - instaladas, primeiro, com o argumento de se poderem identificar deliquentes e, depois, com o argumento de se detectarem ameaças terroristas, são usados para registar - em audio e vídeo - hábitos quotidianos das pessoas comuns.
Refugiando-se na legislação recente que alarga a possibilidade de vigilância em "circunstâncias excepcionais" (quando absolutamente necessário para protecção da população face a ameaças extremas), diversas autoridades britânicas locais usam esses registos para identificar quem:
- não cumpre regras ao passear os cães;
- alimenta os pombos de rua;
- alega ser pai solteiro;
- importuna vizinhos com barulho ou de outros modos;
- acumula lixo no quintal ou não respeita a sua separação;
- vende álcool e tabaco a menores de idade;
- comete fraudes comerciais e falsificações;
- ...
Os responsáveis pela vigilância "de todos a todo o momento" alegam que esses e outros comportamentos não são nada inocentes pois afectam a vida da generalidade das pessoas. Atentando contra os direitos dos consumidores, constituíndo crimes ambientais, e configurando fraudes em termos de benefícios sociais, têm de ser descobertos. provados e punidos.
Quem detectou o "abuso" declara ser "absurdo que as autoridades locais se aproveitem de medidas destinadas a combater o terrorismo em questões tão triviais como o ladrar de um cão ou a venda de bilhetes de teatro".
Este é o futuro, que já é bem o presente.
O Nick, Harold Bloom e este small world, piccolo mondo
Recebi este "conto de Natal" (o nome é meu, ele dá-lhe outro) do Onésimo Teotónio Almeida e achei-o tão interessante que lhe pedi para o publicar. Aqui vai, para delícia não apenas minha mas de todos os leitores:
É mais uma estória
de small world, piccolo mondo, mas
com um preâmbulo a ameaçar ser longo e desligado do desenlace. A minha irmã
Suzette pôs-me em contacto com um moço que tinha lido um artigo meu sobre Pessoa
e gostaria de encontrar-se comigo, até porque pensava fazer pós-graduação na
Brown. Uma troca de e-mails com o Nick revelou-o deveras interessante a ponto
de eu achar que poderia convidá-lo para almoçarmos juntos.
Foi hoje. Dei-lhe
a escolher entre o Brown Faculty Club e a Tasquinha, em East Providence, ele
optou de caras pelo restaurante português. Sentámo-nos a desenrolar duas horas
e meia de conversa. Eu gostaria de ter gravado, de
preferência em vídeo. Vai aqui um condensado.
Descendente de bem antigos portugueses
(açorianos e uma costela madeirense) pelos dois lados, nasceu e vive em Fall
River, Massachusetts. Há injecções de franco-canadianos, de onde lhe veio o
sobrenome “Belmore”, e não me lembro que mais, todavia sente-se todo português,
embora não fale a língua muito bem. Foi aluno do Bristol Community College e só
fez duas disciplinas de Português, uma com o José Francisco Costa.
Desde cedo tem sido fartamente
atribulada a sua história de saúde. Nasceu prematuro - dois meses antes do tempo
- com complicações que os médicos foram procurando resolver de improviso, visto
não figurarem em nenhum manual. O problema fundamental, gerador dos restantes,
era um buraco grande no crânio deixando-lhe o cérebro exposto. Aos poucos
conseguiram fechá-lo, mas sem hipóteses de cobertura de cabelo, daí surgindo
complexos, sobretudo na escola. Usa agora cabelo colado, que tem de ser
substituído todos os meses, no entanto não se nota nada, dá-lhe um ar todo tão
normal – o Nick tem 25 anos - que não se imagina o que por trás vai de
tribulações. Por um período de sete anos, alternou a sua vida entre a casa da
família e vários hospitais, lutando com problemas do coração, sendo acometido
de frequentes desmaios por falta de irrigação suficiente do cérebro. Para lutar
contra a solidão e o medo, refugiou-se na leitura, que acabou por salvá-lo. Lá
em casa, havia um Conde de Monte Cristo,
de Alexandre Dumas. Devorou-o e ficou definitivamente preso à literatura. Por
mero acaso, um dia descobriu O Cânone
Ocidental, de Harold Bloom, e fez dele o seu guia e conselheiro. Pôs-se a
ler tudo o que Bloom recomendava, tornando-se fã de uma plêiade díspare que
inclui Dante (A Divina Comédia foi
lida já quatro vezes), Shakespeare, Cervantes (Don Quijote foi, em sua opinião, o melhor romance que já leu, e põe
em Segundo lugar As Memórias Póstumas de
Brás de Cubas, de Machado de Assis), Milton (o seu grande poeta), Proust,
Swift, Luis Cernuda, Celan, Hemingway, Pessoa, Kierkegaard, Nietzsche, Emerson.
Ah! E os clássicos Lucrécio, Virgílio e Platão. Não é um name dropper, eu é que ia puxando por mais nomes do seu interesse.
Mas o Nick tem uma fina memória e interjecta a propósito na conversa citações
que guardou deste e daquele autor.
Há cinco anos que os desmaios deixaram
de o incomodar. No ano passado terminou o Bristol Community College (dois anos)
e concorreu à Brown. Não foi aceite, todavia receberam-no em Tufts, nos
arredores de Boston, uma excelente universidade. Está no terceiro ano de
Literatura Comparada e vai aprender Latim e Grego. Porque tem melhorado muito as
notas, quando terminar a licenciatura tenciona tentar Harvard, Yale, ou Brown
para prosseguir estudos em Literatura Comparada.
Tudo isto surgindo na nossa charla com
enorme simplicidade e quase a pedir desculpa, porém com muito humor de permeio
pois o Nick tem uma prodigiosa capacidade de imitar sotaques de emigrantes
etno-americanos: russos, indianos, italianos, mexicanos, micaelenses…
Mas vamos então ao small world, piccolo mondo.
Durante décadas mostrei a Brown a
visitantes portugueses, sobretudo nos anos em que em Portugal não se disfrutava
de uma data de possibilidades do quotidiano universitário americano.
Bibliotecas, por exemplo. Dava-me especial prazer adocicar a visita parando
junto aos ficheiros bibliográficos e ir direitinho a uma velha ficha que eu
achava deveras ternurenta. Rezava assim:
RAPOZO,
Victorino - SANTA GENOVEVA – (lindíssima história em verso cantada pelo
cantador dos Arrifes Victorino Rapoza
[sic]). Fall River, M. Capeto, 1922. (Harris Collection)
Cito de cor porque a letra e música
colaram-se-me ao ouvido.
Ora bem. Ao sondar a ascendência
genealógica do Nick, revelou-me ele que um seu trisavô era poeta. Chamava-se…
Victorino Rapozo.
Caí de queixo. Não queria acreditar.
Confesso: comovi-me mesmo. Verdadinha. Small
world, piccolo mondo.
Regressado a casa, vim direitinho ao
computador aceder ao catálogo da biblioteca da Brown. Hoje desapareceram as
fichas de cartão, mas os seus conteúdos estão todos digitalizados. Em segundos,
cheguei lá. Vai aqui a ligação (não fui corrigir a ficha que acima citei de
cor):
No seu e-mail de agradecimento, o Nick
pergunta se podemos voltar a encontrar-nos durante as férias de Natal para
continuarmos a conversa. Já adivinharam a minha resposta.
Onésimo Teotónio Almeida
"IN MEMORIAM" DO ORTOPEDISTA MR. DAVID ROUX
Meu artigo de opinião publicado hoje in Diário as Beiras:
A minha odisseia, como da maioria dos portugueses que se viram impelidos a
regressar, depois de 25 de Abril, a este pequeno torrão de terra, em
citação de Pessoa, “onde a terra acaba e o mar começa”, não me permitiu
explicar a minha decisão em vir para Portugal, em vez de rumar à África do Sul, a uma personagem de elevadíssima craveira profissional e humanista a quem
muito fiquei a dever em gratidão, e tal como eu, mas em circunstâncias
diferentes, muitos cidadãos de Lourenço Marques que a ele recorriam em
consultas ou operações do foro da Ortopedia. Refiro-me a Mr. David Roux de quem
tive a triste notícia do seu falecimento (em 1987), através de um documento biográfico, emanado do “Royal College of Surgeons of England”, que traduzo:
“David Roux graduou-se na Universidade de Pretória em 1949 e pouco
tempo depois começou a sua formação em ortopedia, trabalhando
principalmente no Hospital Geral debaixo da orientação dos Professores J M
Edelstein e G T du Toit. Fez uma breve visita a Londres em 1955 em que
passou do inicio ao final do FRCS em apena poucos meses.
Posteriormente passou um ano no Hospital de Cirurgia Especial em
Nova Iorque onde trabalhou para o Dr. John Cobb cujo principal interesse era em
escoliose e deformidades neuofibromatoses da coluna. No seu regresso à
África do Sul criou a primeira unidade de escolioses no Transval
onde se deparou com problemas motivados por tuberculose,
poliomielite e anormalidades congénitas. O seu trabalho foi lendário mas ainda
encontrou tempo para a pesquisa e ensino. Como cirurgião, apesar de da ausência
do seu dedo médio da mão, foi o mais dextro, exacto e preciso técnico”.
(Por julgar ser
do desconhecimento de grande parte dos leitores, abro um parêntese para
esclarecer que os médicos cirurgiões, membros do prestigiadíssimo “Royal
College of Surgeons of England”, não enjeitando a sua herança de
barbeiros-cirurgiões, com raízes na Idade
Média, utilizam o tratamento de
“mister” em vez de “doctor”).
Como referi no
início do meu artigo, perante a perigosa situação que se vivia em Moçambique, no período transição para a respectiva
independência, por tencionar rumar para a África do Sul, passou-me Mr.
David Roux um certificado (1974) de que cito este pequeno excerto: “Tive uma relação
profissional com ele durante sete anos, através de doentes que lhe enviei para
Lourenço Marques. Prestou um excelente serviço e se quiser emigrar para a
África do Sul teria prazer em endossar as suas qualidades como um benefício
para a África do Sul e em particular para o campo de ginástica correctiva.”.
No meu regresso
a Portugal, em concurso púbico para a leccionar
a disciplina de Recuperação e Terapia pelo Movimento, do ISEF da Universidade
do Porto, fiquei classificado em 1.º lugar, tendo sido contratado, por despacho
do Secretário do Estado do Ensino Superior e Investigação de 21 de Março de
1976.
É, pois, diante
da memória de um ser de eleição daqueles que perpassam em nossas vidas, e que pela sua grandeza nos fazem sentir
importantes por orbitarmos profissionalmente à sua volta, que eu escrevo
este singelo, mas muito sentido texto e me curvo respeitosamente em homenagem póstuma
a um cirurgião de inexcedível competência profissional e rigoroso cumprimento
do “Juramento de Hipócrates”. Repouse em paz, meu nobre, meu
querido e muito saudoso Amigo, Mr. David Roux.
Rede GPS na Antena 1
A minha participação no programa Dias do Futuro, da Antena 1, a propósito da rede GPS. Foi uma óptima conversa com o jornalista Edgar Canelas. Para ouvir aqui:
http://www.rtp.pt/play/p383/e262860/os-dias-do-futuro
http://www.rtp.pt/play/p383/e262860/os-dias-do-futuro
Cidadãos contra o “Acordo Ortográfico” de 1990
Manifesto, em subscrição pública, recebi de Ivo Miguel Barroso, docente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Eu assinei, claro.
Cidadãos contra o “Acordo Ortográfico” de 1990
A Língua é um património valioso e um instrumento
determinante para a afirmação dos povos e das suas culturas, porque é através
dela que exprimem a sua identidade e as suas diferenças. Tal como a
espontaneidade da vida e dos costumes de cada povo, a Língua é um elemento
vivo, e não pode, por isso, ser prisioneira de imposições do poder político,
que limitam a sua criatividade natural.
O “Acordo Ortográfico”
de 1990 (AO90), nasceu de uma ideia peregrina do então Primeiro-Ministro,
Cavaco Silva, com o duplo objectivo de “unificar” “as duas ortografias oficiais”
do Português (sic) - alegadamente
para evitar que o Português de Portugal se tornasse uma “língua residual”(!) -,
e de “simplificar” a escrita. Na
realidade, o que fez foi abrir uma caixa de Pandora e criar um monstro. O AO90
— a que os sucessivos Governos, com uma alegre inconsciência, foram dando
execução —, é um fiasco político, linguístico, social, cultural, jurídico e
económico.
O processo
de entrada em vigor do AO90 nos Estados
lusófonos começou por ser um golpe político: o AO90 teria de ser ratificado por
todos os Estados. Mas Angola e Moçambique, os dois maiores Países de língua
portuguesa a seguir ao Brasil, nunca o ratificaram. E, dos restantes países, só
três o mandaram “aplicar” obrigatoriamente: Portugal, a partir de 2011-2012,
Cabo Verde, a partir de 2014, e o Brasil, a partir de 2016. Os resultados desta
trapalhada estão à vista: em Cabo Verde, apenas dois anos depois, o Português
vai passar a ser “segunda língua” no
ensino, e o Crioulo a língua principal. Um dos grandes objectivos propalados
pelo AO90 não era o de evitar que o Português se tornasse numa “língua
residual”?
“O que
nasce torto, tarde ou nunca se endireita”. Foi o que aconteceu com o AO90: os
efeitos que produziu foram exactamente o contrário do que se pretendeu.
Senão vejamos: o princípio que presidiu ao AO90 foi o de que
a ortografia deveria ser determinada pelo alegado “critério da pronúncia” (?!), o que gerou aberrações da maior
gravidade, de que damos apenas alguns exemplos:
·
Ao
pretender eliminar as consoantes “mudas”,
o AO90 criou arbitrariamente centenas de lemas (entradas de Dicionário), até aí
inexistentes em qualquer das ortografias (portuguesa ou brasileira): “conceção”, por “concepção”; “receção”, por “recepção”, “espetador” por “espectador” — o que
criou confusões semânticas, como, por exemplo, “conceção de crédito”, “receção
económica” ou “espetador de cinema”.
·
No
entanto, pela mesma lógica, o AO90 deveria começar por cortar a mais “muda” de todas as consoantes: o “h”
inicial. O que não fez.
·
Estabeleceu
17 normas que instituem duplas grafias ou facultatividades, assentando num
critério que se pretende de acordo com as “pronúncias”
(?!): “corrupto” e “corruto”, “ruptura”
e “rutura”; “peremptório” e “perentório”.
·
“Óptico” (relativo aos olhos), com a
supressão da consoante “muda” “p”, passou a “ótico” (relativo aos ouvidos), o que cria a confusão total entre os
Especialistas e o público, que deixam de saber a que órgão do corpo humano nos
estamos a referir!
·
Em
Portugal, a eliminação sem critério das consoantes “c” e “p”, ditas “mudas”, afasta as ortografias do
Português europeu e do Brasil (quando o que se
pretendia era aproximá-las), criou desagregações nas famílias de algumas
palavras e provoca insólitas incoerências:
passou a escrever-se “Egito”, mas “egípcios”; produtos “lácteos”, mas “laticínios”; os “epiléticos”
sofrem de “epilepsia”; um “convector” opera de modo “convetivo”; o “interrutor” produz uma “interrupção”.
·
O
facto de as facultatividades serem ilimitadas territorialmente (por exemplo, “contacto”
e “contato”; “aritmética” e “arimética”) conduz a uma multiplicação
gráfica caótica: por exemplo, o Curso universitário de “Electrónica e Electrotecnia” pode ser grafado com 32 combinações diferentes; o que é
manifestamente absurdo.
·
A
confusão maior surgiu entre a população que se viu obrigada a ter de “aplicar” o AO90”, e passou a cortar
“cês” e “pês” a eito, o que levou ao aparecimento de erros, tais como: “batérias”, “impatos”, “ténicas”, “fição”; “adatação”, “atidão”, “abruto”; “exeto” (por “excepto”); para além
de cortarem outras consoantes, como, por exemplo, o “b” em “ojeção”, ou o “g” em “dianóstico”.
·
No
uso de maiúsculas e minúsculas, o caos abunda; “Rua de Santo António” pode escrever-se de quatro formas: também “rua de Santo António”, “rua de santo António” ou “Rua de santo António” (se acrescentarmos
as 4 do Brasil, com “Antônio”, dá um total de 8 formas possíveis (!)).
·
O
AO90 prescreve ou elimina o uso do hífen de forma totalmente caótica. Vejamos
alguns exemplos: “guarda-chuva”, mas
“mandachuva”; “cor-de-rosa”, mas “cor de
laranja”; zona “infantojuvenil”,
mas “materno-infantil”; e aberrações
como “cocolateral”, “cocomandante”, “semirreta”, “conavegante”,
“corréu”, “coutente”.
·
Entre
outras arbitrariedades, a supressão do acento agudo cria situações caricatas. A
expressão popular: “Alto e pára o baile”,
na grafia do AO90 (“Alto e para o baile”)
dá origem a leituras contraditórias. A frase “Não me pélo pelo pêlo de quem pára para resistir” fica, com o AO90,
escrita deste modo: “Não me pelo pelo
pelo de quem para para resistir” — o que é incompreensível, seja qual for o
contexto.
·
Em contrapartida, para “compensar” o desaparecimento da consoante "muda" e
evitar o “fechamento” da vogal anterior, imposto pelo AO90, na escrita
corrente, surgem aberrações espontâneas como a colocação de acentos
fora da sílaba tónica: “correção” escrito “corréção”; “espetaculo” corrigido para “espétaculo”
ou mesmo “letivo” que passa a “létivo”!
Em suma, com este caos (orto)gráfico como se poderão
“ensinar” as crianças a escrever Português?
Mas há mais: o AO90 não incide
sobre os factores de divergência da linguagem escrita entre Portugal e o
Brasil, nas quais existem diferenças lexicais (fato – terno; autocarro –
ônibus; comboio - trem), sintácticas (tu – você) e semânticas (palavras com
sentidos diferentes: camisola, por exemplo, que, no Brasil, significa “camisa
de dormir”). Estamos perante diferenças atávicas que caracterizam as duas
variantes do Português e que não se alteram por decreto.
O caos na
grafia grassa nos vários dicionários, correctores e conversores. Com estas
ferramentas discrepantes, os utilizadores da Língua Portuguesa, que já têm
dificuldade em “aplicar” o “Acordo”,
ficam ainda mais confusos e instáveis. Hoje, ninguém sabe escrever Português
com o “Acordo”.
Sejamos claros: a diversidade ortográfica — entre
apenas duas variantes do Português: o de Portugal e o do Brasil — nunca foi
obstáculo à comunicação entre os diversos povos de Língua portuguesa; como
nunca foi razão de empobrecimento, mas, pelo contrário, uma afirmação da
pujança da nossa Língua; o que, aliás, faz dela uma das mais escritas e
utilizadas do Mundo. O Inglês tem 18 variantes, e não deixa por isso de ser a
principal língua internacional; o Francês tem 20 e o Castelhano, 15.
Por outro lado, as “aplicações” do
AO90 afastam o Português padrão das principais Línguas internacionais, o que só
traz desvantagens em termos etimológicos, de globalização e de aprendizagem
dessas línguas estrangeiras, em relação às quais não temos qualquer vantagem em
nos afastar. Por exemplo, a
palavra “actor”. Em todas as línguas,
como a nossa, em que a palavra é de raiz latina, escreve-se “actor” com c ou k (excepto em Italiano, mas em que se escreve com duplo tt, que tem idêntica função de abrir a vogal “a”).
É caso
para dizer que “foi pior a emenda que o
soneto”.
Mas o AO90
é também um lamentável exemplo da forma como o Estado abusou do seu poder. A “Nota Explicativa” contém erros crassos,
falácias e falsidades. Mais grave, nunca foi promovida qualquer discussão pública
sobre o AO90. Em 2005, foram emitidos 25 Pareceres negativos por parte de
Especialistas e de entidades consultadas. Porém, esses documentos foram
ocultados. Todo o processo do AO90, culminando com a Resolução do Conselho de
Ministros n.º 8/2011, é um péssimo exemplo de falta de transparência,
inadmissível num Estado de Direito democrático (artigos 2.º e 48.º, n.º 2, da
Constituição da República Portuguesa).
Por sua
vez, o AO90 dividiu a sociedade e as gerações, ao impor uma forma de escrita
nas escolas, Universidades e instituições do Estado e da sociedade civil —
enquanto a esmagadora maioria dos Portugueses continua a escrever com o
Português pré-AO90.
A maioria
dos escritores lusófonos, muitos dos professores, dos tradutores e da
Comunidade científica têm manifestado a sua repugnância em acatar o “Acordo”. Mesmo o grande número dos que
acatam o AO90, por convicção, pragmatismo, inércia, subserviência, ou porque
são obrigados a obedecer-lhe, na realidade, escrevem em Português normal, e
limitam-se a deixar que os textos sejam depois adaptados pelos correctores ou
revisores.
Finalmente, no domínio jurídico, há vários atropelos que
devem ser denunciados. Desde logo, o “Acordo
Ortográfico da Língua Portuguesa”, para entrar em vigor, deveria ter sido
ratificado por unanimidade, e não apenas por 3 Estados, como sucedeu.
Por outro lado, o AO90 é inconstitucional, porque o Estado
não pode programar a cultura e a educação segundo quaisquer directrizes
estéticas, políticas ou ideológicas (artigo 43.º, n. 2, da Constituição). E
viola também o dever de defesa e de preservação do nosso património cultural
(artigo 78.º, n.º 1).
Em suma, o AO90 teve os
efeitos exactamente opostos aos que se propunha: não uniu, não unificou, não
simplificou. É um fracasso político, linguístico, social, cultural e jurídico.
E é também um fracasso económico, pois, ao
contrário do que apregoou, não fez vender mais nem facilitou a circulação de
livros. Pelo contrário: as vendas caíram. No Brasil, o Português pré-AO90
continua a ser preferido.
A Língua é o instrumento decisivo da formação das crianças e
dos jovens. Não podemos permitir que o arbítrio de decisões erradas seja
transmitido às gerações futuras, de que somos cuidadores, separando filhos e
pais, muitos dos quais escrevem hoje com ortografias diferentes.
Em 18 de Maio de 1991, durante a discussão no Parlamento
sobre o “Acordo Ortográfico”, o
Deputado Jorge Lemos declarou, profeticamente: “O acordo é inútil, ineficaz, secretista, prepotente, irrealista,
infundamentado, desnecessário, irresponsável, prejudicial, gerador de
instabilidade e inoportuno. (…) Por isso, Sr. Presidente e Srs. Deputados, este
texto que nos foi distribuído, como sendo o texto do Acordo, só pode ter uma
solução: ser rasgado.” E, perante a Assembleia, passou das palavras aos
actos — e rasgou-o.
25 anos depois, é mais do que tempo
de lhe seguirmos o exemplo.
sexta-feira, 23 de dezembro de 2016
Novo número da Revista da Ciência Elementar
A Casa das Ciências, no Porto, distribuiu prémios para os melhores recursos e publicou mais um número da sua revista digital, muito útil para professores, estudantes ou simples curiosos da ciência. Ver aqui.
PIMPAMPUM! NA HEMEROTECA DIGITAL
A Hemeroteca de Lisboa está desenvolver um extraordinário trabalho de colocação em linha de publicações históricas. A última é o suplemento infantil do jornal "O Século", como o onomatopaico nome de "PimPamPum". Lembro-me muito bem de o ler quando era criança... Em baixo informação da Hemeroteca com o conveninente link para o "PimPamPum" até 1940 (eu só li a partir dos anos 60):
No dia 1 de dezembro de 1925, o jornal O Século dava início à publicação de um suplemento semanal, às 3.ªs feiras, dedicado ao público infantil. Tratava-se do PimPamPum!, que fica agora disponível na Hemeroteca Digital, aqui.
Integrando-se numa tendência comum a grande parte dos jornais importantes nessa segunda década do século XX, o PimPamPum tornou-se percursor e em larga medida o modelo e exemplo seguido pelos restantes suplementos infantis. Foi também um fenómeno de longevidade, com 2554 números editados durante 52 anos, pelo que estamos certos que este título evocará infâncias de várias gerações.
As suas páginas, cujo intuito claro era o de educar de forma lúdica, estavam repletas de contos, histórias edificantes, poesias, charadas, bandas desenhadas, jogos e concursos, com amplo recurso à ilustração.
Desde o dia 20 de novembro, O Século foi despertando o interesse para o novo suplemento, numa série de anúncios de primeira página que pode ver aqui. A campanha de marketing terminou no dia anterior ao lançamento, num artigo que sumaria o projeto, e que transcrevemos: "Cônscio da sua nobre missão de orientador e mentor da sociedade portuguesa, e no louvável desejo de corresponder às necessidades de ordem moral que ela presentemente atravessa, o Século, que sempre caprichou em estar na vanguarda de todo o movimento reformador, acaba de tomar a deliberação de mais uma iniciativa, que muito deve interessar aos pequeninos portugueses. E dessa iniciativa - a organização de um semanário infantil, suplemento do Século - o nosso jornal encarregou duas das melhores mocidades portuguesas, o ilustre poeta Augusto de Santa-Rita, autor de várias obras que o consagra de há muito no nosso meio literário e entre as quais se conta «O Mundo dos meus bonitos», onde há poesias de tal encanto infantil que as crianças já quase popularizaram, e o admirável pintor Eduardo Malta, que em várias exposições tem revelado ser também um notável desenhador. Dirigido, literariamente, pelo primeiro, e, artisticamente, pelo segundo, Pim-Pam-Pum! - que assim se intitula o novo suplemento - fará amanhã a sua aparição, incorporado no Século, de maneira a, devidamente dobrada a folha que lhe compete, ficar constituindo, ele próprio, um jornalzinho cheio de interesse, de vida, de originalidade, meticulosamente seleccionado quanto à matéria que inserirá e impresso a duas cores, para maior brilho da sua apresentação gráfica. Podem, portanto, os pequeninos leitores do nosso jornal contar dora avante com as mil travessuras de Pim, de Pam e de Pum, os endiabrados heróis do nosso suplemento, com as suas lindas histórias, músicas, teatro, horas de ensinamento e horas de recreio."
A cronologia que hoje colocamos em linha - 1925-1940, os primeiros 754 números - corresponde ao período em que o PimPamPum! foi dirigido por Augusto Santa-Rita. Agradecemos a Guilherme Santa-Rita a cedência de exemplares que nos permitiram a disponibilização integral desta primeira fase da publicação.
No dia 1 de dezembro de 1925, o jornal O Século dava início à publicação de um suplemento semanal, às 3.ªs feiras, dedicado ao público infantil. Tratava-se do PimPamPum!, que fica agora disponível na Hemeroteca Digital, aqui.
Integrando-se numa tendência comum a grande parte dos jornais importantes nessa segunda década do século XX, o PimPamPum tornou-se percursor e em larga medida o modelo e exemplo seguido pelos restantes suplementos infantis. Foi também um fenómeno de longevidade, com 2554 números editados durante 52 anos, pelo que estamos certos que este título evocará infâncias de várias gerações.
As suas páginas, cujo intuito claro era o de educar de forma lúdica, estavam repletas de contos, histórias edificantes, poesias, charadas, bandas desenhadas, jogos e concursos, com amplo recurso à ilustração.
Desde o dia 20 de novembro, O Século foi despertando o interesse para o novo suplemento, numa série de anúncios de primeira página que pode ver aqui. A campanha de marketing terminou no dia anterior ao lançamento, num artigo que sumaria o projeto, e que transcrevemos: "Cônscio da sua nobre missão de orientador e mentor da sociedade portuguesa, e no louvável desejo de corresponder às necessidades de ordem moral que ela presentemente atravessa, o Século, que sempre caprichou em estar na vanguarda de todo o movimento reformador, acaba de tomar a deliberação de mais uma iniciativa, que muito deve interessar aos pequeninos portugueses. E dessa iniciativa - a organização de um semanário infantil, suplemento do Século - o nosso jornal encarregou duas das melhores mocidades portuguesas, o ilustre poeta Augusto de Santa-Rita, autor de várias obras que o consagra de há muito no nosso meio literário e entre as quais se conta «O Mundo dos meus bonitos», onde há poesias de tal encanto infantil que as crianças já quase popularizaram, e o admirável pintor Eduardo Malta, que em várias exposições tem revelado ser também um notável desenhador. Dirigido, literariamente, pelo primeiro, e, artisticamente, pelo segundo, Pim-Pam-Pum! - que assim se intitula o novo suplemento - fará amanhã a sua aparição, incorporado no Século, de maneira a, devidamente dobrada a folha que lhe compete, ficar constituindo, ele próprio, um jornalzinho cheio de interesse, de vida, de originalidade, meticulosamente seleccionado quanto à matéria que inserirá e impresso a duas cores, para maior brilho da sua apresentação gráfica. Podem, portanto, os pequeninos leitores do nosso jornal contar dora avante com as mil travessuras de Pim, de Pam e de Pum, os endiabrados heróis do nosso suplemento, com as suas lindas histórias, músicas, teatro, horas de ensinamento e horas de recreio."
A cronologia que hoje colocamos em linha - 1925-1940, os primeiros 754 números - corresponde ao período em que o PimPamPum! foi dirigido por Augusto Santa-Rita. Agradecemos a Guilherme Santa-Rita a cedência de exemplares que nos permitiram a disponibilização integral desta primeira fase da publicação.
Carta aberta pelo tratamento igual aos doutorados no estrangeiro no Concurso de Bolsas de Pós-doutoramento da FCT 2016
Divulgo esta iniciativa. Eu assinei pois a discriminação parece-me arbitrária. Nem percebo sequer a racionalidade da posição da FCT. Qualquer tribunal, português ou europeu, dará decerto razão a quem protestar, o problema é que a justiça em Portugal anda a passo de caracol.
Carta aberta pelo tratamento igual aos doutorados no estrangeiro no Concurso de Bolsas de Pós-doutoramento da FCT 2016
Para: Presidente da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), Professor Doutor Paulo Ferrão.
1.
No contexto do Concurso para a Atribuição de Bolsas de Pós-Doutoramento
2016 da FCT, vimos mostrar a nossa preocupação com as consequências
negativas para o sistema científico nacional resultantes da atribuição
de uma bonificação a certos doutorados em caso de mobilidade. Com
efeito, na sua atual formulação no Guião de Avaliação, esta bonificação
desincentiva doutorados por universidades estrangeiras (i.e., também
eles em situação de mobilidade) de contribuírem para a ciência em
Portugal.
Recordamos que no Guião de Avaliação do dito concurso é conferida uma bonificação de 20% no mérito do candidato em caso de mobilidade:
Será atribuída uma bonificação de valor equivalente a 20% da pontuação atribuída ao critério “currículo pessoal”, aos/às candidatos/as que tenham obtido Doutoramento NUMA UNIVERSIDADE PORTUGUESA e que, simultaneamente, pretendam fazer o pós-doutoramento:
. numa instituição de acolhimento diferente da que lhes conferiu o grau; ou,
. num distrito do território nacional diferente daquele em que se localizava a instituição onde obtiveram o grau de doutor, ainda que a instituição de acolhimento pertença à mesma universidade que lhe conferiu o grau de doutor; ou,
. na mesma instituição onde obtiveram grau de doutor após um percurso profissional ou científico de, pelo menos, 2 anos fora dela.
(maiúsculas nossas)
2. Caso esta bonificação tenha sido formulada com a intenção de incentivar a mobilidade científica, tal como está escrita, nesta avaliação, não será dada a mesma bonificação aos doutorados no estrangeiro que se candidatam com uma instituição de acolhimento portuguesa e, por isso, necessariamente diferente da que lhes conferiu o grau de doutor, o que constitui um importante indicador de mobilidade. Na verdade, se a bonificação não for aplicada a quem se doutorou numa universidade estrangeira, introduz-se uma discriminação injustificável à luz do que são as políticas europeias, amplamente recomendadas na Carta Europeia do Investigador* e no Relatório do Grupo de Reflexão sobre o Futuro da Fundação para a Ciência e para a Tecnologia**. Neste caso não se tratará de igual modo candidatos em condições semelhantes de mobilidade, o que, em última análise, encerra um princípio protecionista, limitando a entrada no sistema científico português. Ou seja, não se compreende que a bonificação conferida à mobilidade não seja aplicada a quem se doutorou no estrangeiro.
3. É fundamental para o Sistema Científico Nacional manter-se aberto aos investigadores (nacionais ou não) que tenham feito a sua formação avançada noutros países. No entanto, na sua atual formulação, a diretriz discrimina negativamente os doutorados que obtiveram o grau noutras instituições internacionais. No caso concreto de portugueses doutorados no estrangeiro com bolsas financiadas pela FCT e que tencionam fazer pós-doutoramento em Portugal, esta discriminação representa ainda um desaproveitamento do dinheiro público investido em I&D que financiou bolsas de doutoramento. A bonificação atribuída de acordo com o atual critério contribui para desincentivar a participação na comunidade científica e na ciência que se faz em Portugal pelos investigadores doutorados no estrangeiro, impedindo assim a tão necessária internacionalização dos quadros científicos nacionais e de assimilação do que melhor se faz noutras culturas científicas.
4. Em resposta a esta preocupação demonstrada por carta, a Direção da FCT frisou aos investigadores que a interpelaram que este é um ponto do Guião de Avaliação a reformular em futuros concursos, devido à desigualdade criada entre candidatos. Relativamente ao presente Concurso, o vice-presidente da FCT, Doutor Miguel Castanho, sugeriu que os candidatos lesados por esta discriminação seriam compensados pela avaliação da sua internacionalização no mérito do candidato. Esta compensação resulta numa apreciação subjetiva que poderá ou não ser atenuada, e de diferentes maneiras, pelos 40 painéis de avaliação, de acordo com o peso a que cada avaliador dedique à internacionalização do percurso de cada candidato. Para além disso, esta foi apenas uma sugestão, para a qual nenhum compromisso escrito ficou firmado, não sabendo, portanto, o candidato que, como e se esta informação será passada aos avaliadores.
5. Sendo a medida apresentada francamente insatisfatória e insuficiente, alertamos para a discriminação a decorrer neste concurso, e para os efeitos perversos desta política de investimento da ciência em Portugal. Pedimos também uma confirmação formal de que não tomará lugar no futuro, e uma séria reflexão sobre as condições de produção científica em Portugal.
Lisboa, 15 dezembro de 2016
* Acedida através do endereço www.unl.pt/data/ investigadores/legislacao_ cartaeuropeiainvestigador.pdf
** Relatório datado de 27 de janeiro de 2016, produzido pelo grupo constituído pelo Ministério da Ciência, da Tecnologia e do Ensino Superior a 10 de dezembro de 2015, do qual fazem parte membros da Direção atual da FCT, acessível em www.portugal.gov.pt/media/ 18476450/ref-fct-4- relfinalgruporeflexao.pdf.
Recordamos que no Guião de Avaliação do dito concurso é conferida uma bonificação de 20% no mérito do candidato em caso de mobilidade:
Será atribuída uma bonificação de valor equivalente a 20% da pontuação atribuída ao critério “currículo pessoal”, aos/às candidatos/as que tenham obtido Doutoramento NUMA UNIVERSIDADE PORTUGUESA e que, simultaneamente, pretendam fazer o pós-doutoramento:
. numa instituição de acolhimento diferente da que lhes conferiu o grau; ou,
. num distrito do território nacional diferente daquele em que se localizava a instituição onde obtiveram o grau de doutor, ainda que a instituição de acolhimento pertença à mesma universidade que lhe conferiu o grau de doutor; ou,
. na mesma instituição onde obtiveram grau de doutor após um percurso profissional ou científico de, pelo menos, 2 anos fora dela.
(maiúsculas nossas)
2. Caso esta bonificação tenha sido formulada com a intenção de incentivar a mobilidade científica, tal como está escrita, nesta avaliação, não será dada a mesma bonificação aos doutorados no estrangeiro que se candidatam com uma instituição de acolhimento portuguesa e, por isso, necessariamente diferente da que lhes conferiu o grau de doutor, o que constitui um importante indicador de mobilidade. Na verdade, se a bonificação não for aplicada a quem se doutorou numa universidade estrangeira, introduz-se uma discriminação injustificável à luz do que são as políticas europeias, amplamente recomendadas na Carta Europeia do Investigador* e no Relatório do Grupo de Reflexão sobre o Futuro da Fundação para a Ciência e para a Tecnologia**. Neste caso não se tratará de igual modo candidatos em condições semelhantes de mobilidade, o que, em última análise, encerra um princípio protecionista, limitando a entrada no sistema científico português. Ou seja, não se compreende que a bonificação conferida à mobilidade não seja aplicada a quem se doutorou no estrangeiro.
3. É fundamental para o Sistema Científico Nacional manter-se aberto aos investigadores (nacionais ou não) que tenham feito a sua formação avançada noutros países. No entanto, na sua atual formulação, a diretriz discrimina negativamente os doutorados que obtiveram o grau noutras instituições internacionais. No caso concreto de portugueses doutorados no estrangeiro com bolsas financiadas pela FCT e que tencionam fazer pós-doutoramento em Portugal, esta discriminação representa ainda um desaproveitamento do dinheiro público investido em I&D que financiou bolsas de doutoramento. A bonificação atribuída de acordo com o atual critério contribui para desincentivar a participação na comunidade científica e na ciência que se faz em Portugal pelos investigadores doutorados no estrangeiro, impedindo assim a tão necessária internacionalização dos quadros científicos nacionais e de assimilação do que melhor se faz noutras culturas científicas.
4. Em resposta a esta preocupação demonstrada por carta, a Direção da FCT frisou aos investigadores que a interpelaram que este é um ponto do Guião de Avaliação a reformular em futuros concursos, devido à desigualdade criada entre candidatos. Relativamente ao presente Concurso, o vice-presidente da FCT, Doutor Miguel Castanho, sugeriu que os candidatos lesados por esta discriminação seriam compensados pela avaliação da sua internacionalização no mérito do candidato. Esta compensação resulta numa apreciação subjetiva que poderá ou não ser atenuada, e de diferentes maneiras, pelos 40 painéis de avaliação, de acordo com o peso a que cada avaliador dedique à internacionalização do percurso de cada candidato. Para além disso, esta foi apenas uma sugestão, para a qual nenhum compromisso escrito ficou firmado, não sabendo, portanto, o candidato que, como e se esta informação será passada aos avaliadores.
5. Sendo a medida apresentada francamente insatisfatória e insuficiente, alertamos para a discriminação a decorrer neste concurso, e para os efeitos perversos desta política de investimento da ciência em Portugal. Pedimos também uma confirmação formal de que não tomará lugar no futuro, e uma séria reflexão sobre as condições de produção científica em Portugal.
Lisboa, 15 dezembro de 2016
* Acedida através do endereço www.unl.pt/data/
** Relatório datado de 27 de janeiro de 2016, produzido pelo grupo constituído pelo Ministério da Ciência, da Tecnologia e do Ensino Superior a 10 de dezembro de 2015, do qual fazem parte membros da Direção atual da FCT, acessível em www.portugal.gov.pt/media/
Contacto: candidatosbdp2016@gmail.com
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