segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

À beira de 2016, a propósito de Savater e da Babilónia, a «guerra do eduquês»



A Helena Damião deixou-nos aqui um texto de Fernando Savater que vai para os 20 anos, e que é um texto sem idade. Só conhecia o filósofo de nome (andamos por onde andamos…). Fui seduzido pela tirada: o elogio do contágio. A capacidade de transmutação de culturas como impulso de civilização. Como ensino, dei por mim a matutar no problema do costume: como é que se transmite isso?
De verdade, a questão é bicuda, porque isso da civilização não está arrumado num corpo teórico testado, com especialistas e uma estrutura pedagógica praticável; como várias categorias deste e doutros géneros, não é ensinável na escola (como a integridade moral não o é, ou a metacognição prática). Dantes, a França divulgava-se com um curso de «Langue et de Civilisation Françaises». Agora, que perderam essa guerra, viajam para todo o lado com a Inglaterra na algibeira e na língua.
Na nossa Escola anda tudo entretido e contente com expressões e atitudes politicamente corretas. Campeia a aproximação inócua a tudo e mais alguma coisa que não seja disciplina regulada por um programa. A aproximação a valores civilizacionais correntes faz-se por intermédio dum chavão que dá pelo nome de «educação para a cidadania». Se um projeto educativo de agrupamento a menciona, então, todos dormem descansados. Ninguém faz a menor ideia do que isso seja, ou de como se inocula, mas só o pairar no projeto é bastante, e dorme-se o soninho dos justos. Se o tribalismo vem, a cada minuto, à superfície—paciência: assobia-se, olha-se para os céus, aspira-se o ar («cheira a maresia, vem aí chuva…»), e passa-se adiante.
Estas confusões no ensino são um dos pontos fortes do lote de práticas «progressistas» a que os detratores chamam «eduquês». Os resultados andam por aí, bem à vista.
A guerra contra o «eduquês», tal como correu nos últimos anos, aparenta ter sido perdida (dizia-mo, ainda há um par de meses, o Carlos Fiolhais); de facto, foi perdida porque quem está no ensino já não tem referências cruzadas: não conhece o antes e o depois; igualmente foi perdida porque se pensou que o problema essencial do ensino era este: o «facilitismo» (repare-se na abundância de aspas que estas digestões suscitam; já isso—é significativo!). Ora, não só já o não era nos tempos de Sócrates como, depois, veio o governo Passos Coelho divulgar que ainda havia mais um mundo de problemas: o «eduquês», sendo magno, afinal nem era o maior. Passos Coelho, o educador, era muito maior que o «eduquês», tal como o exercício de Nuno Crato demonstrou: Crato não reformou, como prometia, os fundamentos do ensino, tendo estragado bastante na Ciência; não fez caminhada: fez arabescos, patinagem artística. Estragou um par de patins, escalavrou tabelas. Passos Coelho orientou, e aprovou; os problemas engordaram e multiplicaram-se: é um grande mestre de patinagem.
Voltando a Savater: como se ensina a ponderar estas questões em concorrência com os mitos «tribais»? Como se ensina a mudar de opinião com fundamento?
A Ciência faz isso diariamente; não será assim tão complicado… E aquilo que os cientistas são dá-nos uma pista: são conhecedores de assuntos. O conhecimento dá-lhes a vantagem crítica de que precisam relativamente ao desconhecimento. O resto é uma questão de feitio (há cientistas com mau e bom feitio).
A afirmação anterior sobre o conhecimento e o desconhecimento não é um jogo de palavras estéril: serve para sublinhar a gritante necessidade de conhecimento, para início de conversa. O ensino tem de ser exercido como prioridade nacional em qualquer país que esteja cansado de patinar com os Coelhos. O ensino adequado nunca é caro: aquilo que é necessário, tem de ser feito. Savater, num outro sítio, faz a distinção entre despesa e investimento. Há quem ainda não tenha entendido…
A inclusão da «educação para a cidadania» nos projetos educativos é muito defendida para, logo depois, no dia-a-dia, servir de pretexto para falar de equivalência de civilizações; e para, da mesma maneira, mergulharmos nas várias pequenas cobardias que constituem o «politicamente correto». Por exemplo: qual é a vantagem de promover, nas sociedades ocidentais, o respeito pelas variantes de traje feminino islâmico, em nome da tolerância? Ignora-se a segregação feminina de muitas culturas islâmicas (de que os trajes são apenas uma manifestação conspícua), em nome do respeito pelos outros: de facto, esses «outros» não respeitam as mulheres e nós achamos que isso é um traço de atraso, de barbárie. Salazar achava que as meninas só necessitavam da 3.ª classe. Que pensamos hoje disso? Que desejaria fazer da cientista Maria de Sousa a escola de Salazar? E da nossa anfitriã Helena Damião? Há benefício, no entanto, em entender que gente com instrução—e que já percebeu como funciona a cidadania—pode interpor-se, dentro do mundo democrático, entre práticas culturais antigas e mulheres modernas, recusando o exercício dessas coisas ancestrais em terrenos de dentro da decência moderna. Isto não é educação para a cidadania e treino civilizacional? Claro que há que explicar e tentar persuadir, a par da recusa: sempre é melhor do que disparar, que é o que se segue à correção política mais vulgarizada. Os americanos conhecem esta última sequência, embora ainda não tenham extraído as ilações dos sucessivos logros. (Têm uma indústria muito ativa, bem sei…)
Li há um mês um livro de Irving Fikel intitulado «A arca antes de Noé: descodificando a história do dilúvio» («The Ark Before Noah: decoding the story of the flood»). O autor é filólogo e assiriologista, especialista em escrita cuneiforme e curador do Museu Britânico. O livro explora, ao longo de quase 500 páginas, o conteúdo duma tabuleta de argila com 4000 anos que contém, entre outras coisas, instruções para a construção da arca. E fala de «uma ponte mágica para um mundo que morreu há muito tempo, habitado por reconhecíveis companheiros humanos» («a magic bridge to a long-dead world populated by recognisable fellow humans»). Somos os mesmíssimos. É desta identidade que fala Salvater, da que transcende culturas.
A Vulgata da educação para a cidadania que por aí corre põe a tónica na aceitação acrítica do outro, na tolerância pachorrenta de qualquer cultura. Ora a educação para a cidadania de que deve falar-se é a do debate, da argumentação, da persuasão—com conhecimento. É o exato contrário da aceitação na ignorância. A aceitação nem sequer é comunicável, e muito menos pacífica: ignorar mas ter de aceitar só suscita revolta, e basta ver uma claque de futebol em plena ação para entender isto. Conhecem-se como gangue, combatem outros gangues (e tudo aquilo que não são eles: pode ser um comerciante numa bomba da gasolina), ignoram por completo o resto e, duma maneira geral, nem estão interessados em conhecer.
Frequentaram a escola, claro. Com resultados variáveis, mas alguma educação para a cidadania. Só faltou o conhecimento, a precisão e a contingência do raciocínio científico, o golpe de asa do debate filosófico. No entanto, se partem uma cabeça, são malta para se interrogar, no ecoponto, acerca do contentor adequado para os cacos.
Eu resumo: a educação para a cidadania só tem pleno sentido entre gente que tem como ocupação permanente saber. É na boa divulgação da prática científica, tanto quanto do voo filosófico, que ela deve assentar (o que não é novidade nenhuma, mas tende a perder-se na barafunda e na poeira do trânsito diário do debate corrente).
Se o estado português quer cumprir o seu dever, tem de promover uma coisa na escola pública: a qualidade generalizada do ensino. Para isso, deverá gastar, nem mais nem menos, o que for necessário. Se num plano de legislatura não couber (não cabe), que seja num plano a 12, a 16, a 20 anos.
O que é que envolve?: um curriculum nacional sério, tanto geral como tecnológico; escolas de turno único; professores cuidadosamente formados por um sistema de seleção de uma elite; pessoal auxiliar de perfil adequado e em número suficiente; instalações equipadas com sensatez; dimensões decentes («small is beautiful»); gratuidade total até ao fim da formação superior (manuais e material,  transportes, refeições escolares, cobertura médica e medicamentosa—dentes inclusive—, atividades de complemento educativo do curriculum); política de atenção aos mais lentos e aos mais rápidos que acabe, de vez, com a retenção (ou, não sei se melhor ou pior, com passagens administrativas feitas em reuniões de conselho de turma) e também apoie miúdos excecionais; regras de flexibilidade na construção dos curricula e dos diplomas de ciclo; regionalismo e verdadeira autonomia das escolas, tendo em fundo as linhas gerais dum plano nacional orientador. E tudo—mas tudo—em simultâneo, senão, não funciona.
Foi isto que o combate ao «eduquês» perdeu de vista, concentrando-se em medidas restritivas moralizadoras: aulas e programas «exigentes», exames a condizer, guerra ao «facilitismo», o processo montado à «anti-cultura». Foi importante abordar estas questões, e pôr algum travão a tanta parvoíce que grassa; o próprio ex-ministro Nuno Crato alinhavou peças avulsas; mas é uma perspetiva, em si mesma, parcial. Aquilo que há a fazer é muito mais profundo e abrangente, e consiste numa mirada civilizacional—e não administrativa, ou policial—sobre o ensino. Algo que, a ser feito, deixa pouca oportunidade a que aconteçam grandes facilidades, porque se toma o conhecimento como uma meta estrutural de grande vulto.
É o conhecimento que forja o debate, a discussão, o confronto de opiniões, o embate de diferenças, a fundamentação de posições correspondentes a outros tantos pontos de vista—a propósito do que ocorrer ou for considerado pertinente, por professores, pela comunidade educativa, por alunos, nas aulas, em clubes, em palestras, informalmente ou formalmente—em eventos criados para o efeito. Tudo, menos o (já) invariável «politicamente correto», bacoco, ignorante, tão sinistro como os tabus que, regularmente, preenchem—e entopem—a nossa vida, tão eficaz a gerar cobardias como uma opressão dos espíritos.
Sucessivos ministros (mesmo os que partem com uma agenda carregada de inteligentes intenções) têm baqueado no exercício. É o ministério, diz-se. Não é: é o ponto de vista. O ministério, como «think tank», é duma inépcia gritante, de facto; mas ele nunca foi planeado como «think tank». Não é suposto que o ministério pense: é de esperar que execute, com eficiência, a política do ministro. Quem pensa são as pessoas; o primeiro ministro da educação que se aplique a fazê-lo bem, e a agir em consequência, pode fazer muitíssimo. E o primeiro governo que entender isto, entendeu algo de grande importância. A propósito: gostaria que fosse desta; a frase «não há dinheiro» é, simplesmente, falaciosa. Há, e sempre houve. Há para a banca… O que não há, é interesse!
A massificação do ensino foi boa; acabou. O ramerrão não está a trazer-nos nada de jeito de forma que, agora, já não restam desculpas. Temos de fazer tudo aquilo que listei, e que falta.
Para os fundamentalistas da contagem de tostões: «aquilo» de que falo também é feito em nome da economia. (Quem achar que não… talvez deva ir estudar.) É «aquilo» que produzirá conhecimento; que será tudo menos «eduquês»; que gerará, sem falhas de maior, cidadãos informados, não havendo a necessidade de inventar disciplinas escolares nebulosas: gente tão capaz de ter e manter boas ideias, como de ser seduzido por melhores ideias.
Tudo para cozinhar, em Portugal, o melhor da velha Europa: civilização, em suma.
Elucidou Torga, no Diário, com data de 9 de maio de 1974:
«Disse-lhe:
—Todas as civilizações se equivalem, realmente. Mas há só uma que entende isso. A civilização a que pertence o homem que o pensou.»
António Mouzinho

4 comentários:

Anónimo disse...

meu deus .....

Carlos Ricardo Soares disse...

A atenção crescente aos problemas ambientais, mormente a partir dos anos 70 do séc.XX, tem vindo a perspetivar uma visão do mundo e da história que não pára de surpreender e que irá inspirar conceções políticas e soluções económicas de profundo alcance, alternativas ao capitalismo industrial e financeiro entrelaçado com o consumismo desenfreado não mais sustentável num planeta esgotado e deteriorado (dois séculos de máquinas, energias fósseis e indústrias químicas bastaram para espatifar o "trabalho" acumulado de 4540 milhões de anos-e só recentemente se percebeu isso) cada vez mais sujeito a pressões demográficas, numa "civilização" de alienados...
Mas vai ser necessário, custe o que custar, abrir os olhos e o coração e a mente para valores mais importantes do que o poder que o dinheiro confere a quem o detém. Harmonizar e ajustar o interesse individual ou corporativo pelo lucro, com o interesse coletivo pelos verdadeiros valores, vai ser crucial e todas as ciências, das ambientais e da vida, às sociais e humanas, economia, ciência política, demografia, direitos humanos e direito financeiro, deverão ser promovidas.
O próprio direito dos povos aos recursos naturais e respetivos processos de partilha, que parece resolvido desde sempre de acordo com o princípio do domínio territorial, deverá ser invocado em primeira linha e reanalisada a respetiva relação de posse/proveito.
A civilização reconhecerá os problemas e poderá ajudar a resolvê-los.

Anónimo disse...

O Sr. pára e depois faz "conceções", "perspetiva"? Não entendemos... talvez aqui faltem umas gotas óticas ou serão "óticas"? É que, de facto, não se entende se o problema é do ouvido ou da visão!
Ana Leo

Carlos Ricardo Soares disse...

Agradeço a leitura e o zelo. Não, não é problema do ouvido, nem da visão. Simplesmente, depois do texto publicado, não quis dar-me ao trabalho de fazer uma corrigenda por causa de um acento.

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