Meu posfácio ao livro com o título acima da autoria de Ilídio Barbosa Pereira (edição de autor, com prefácio do médico José Apolónio), vítima de poliomelite (uma doença debelada por uma vacina que agora faz 50 anos em Portugal; na imagem vacina oral anti-polio).
Conheço o Ilídio há muitos anos, em primeiro lugar por o ter
encontrado no campus universitário principal de Coimbra, não sei se ainda no
Arquivo da Universidade, paredes meias com o Departamento de Física onde eu
trabalho há décadas, ou já depois no Serviço de Publicações e Documentação da
Universidade, onde ele entrou em 1992, e em segundo lugar, circunstância bem mais
importante, por ter convivido com ele na Associação de Pais da Escola EB2/3 Dr.ª Maria Alice Gouveia em Coimbra, onde o meu
filho frequentou o segundo e terceiro ciclos da escolaridade básica. Com
efeito, o meu filho Luís, nascido em 1993, é da mesma idade de um dos filhos do
Ilídio, o Duarte, e os dois não só foram colegas
naquela escola como ficaram amigos. De facto, a relação é mais íntima: quando o
Luís, já numa idade escolar, pediu para ser baptizado, escolheu para padrinho
de baptismo precisamente o Ilídio. Fui eu que transmiti o convite e lembro-me
bem que, do outro lado, do fio telefónico, não houve a mínima hesitação. Pois
foi com gosto recíproco e fortalecido nos nossos encontros que ficámos
compadres. A casa do Ilídio era contígua à escola da EB2/3
Dr.ª Maria Alice Gouveia e acontecia muita vezes, na primeira década
deste século, que o Luís ficava em casa do padrinho para almoçar, sendo tratado
como um dos seus quatro filhos.
Entre as actividades da Associação de Pais ficaram-me na
memória as festas do fim do ano lectivo, nas quais os infantes aproveitavam os
primeiros calores do estio para se refrescarem na praia fluvial do rio Mondego,
no Zorro, para depois o encontro acabar, em convívio das várias famílias, à
volta do jantar composto de iguarias trazidas e partilhadas por todos. A Lua
estava alta sobre as águas do rio e os nossos espíritos estavam também alto por
os nossos petizes terem completado com êxito mais um ano escolar.
O Ilídio é portador de deficiência, que vem, como tão bem
conta neste livrinho, de uma infecção de poliomielite
que apanhou na infância, pouco antes dos dois anos, quando começava andar. Só
soube da história completa após a saborosa leitura desta obra. É uma história
exemplar, não só pela coragem e determinação do próprio, como pela ajuda por
parte de uma família numerosamente fraterna (o Ilídio tem uma dúzia de irmãos)
e de amigos. Este livro é um agradecimento muito sentido do autor à família e
aos amigos, tendo como pretexto os 50 anos do Plano Nacional de Vacinação, que permitiu erradicar o flagelo da poliomielite entre nós. Mas este posfácio não pode
deixar de ser um agradecimento ao Ilídio por ele ser quem é, por sempre me ter
honrado com a sua amizade e por ele ter mantido, embora o Luís esteja neste
momento e estudar Engenharia em Lisboa enquanto o Duarte
está a estudar Arquitectura em Paris, um contacto assíduo com o afilhado. Os
filhos cresceram e a nossa amizade foi crescendo com eles. Depreende-se do
livro, mas, se for preciso um testemunho de alguém que conhece o autor, só
posso dizer que o Ilídio venceu – aliás, vence todos os dias – a deficiência de
infância. Vindo jovem da aldeia de Lagares, Penafiel, fez o seu curso de
História na Universidade de Coimbra, com pós-graduação em Ciências Documentais,
ao mesmo tempo que trabalhava na Biblioteca Municipal de Coimbra. Depois
tornou-se técnico superior da Universidade, onde está há 29 anos, no Arquivo, no Serviço
de Documentação e Publicações e, mais recentemente, no Centro de
Serviços Comuns da Administração - SGA. Tudo isto com dificuldades notórias de
locomoção que nunca o esmoreceram, pois vejo-o sempre bem disposto. O Ilídio,
graças em primeiro lugar a ele e depois à sua família, mas também à sociedade
que fomos formando e em que felizmente hoje vivemos, é um belo exemplo de
inclusão. Ser diferente não significa que ele não se considere e que não seja
considerado igual. Estou certo que, para o meu filho, que também teve como
madrinha uma extraordinária mãe de um rapaz deficiente (não relacionada
familiarmente com o padrinho), o convívio com o padrinho tem sido uma lição de
vida.
Da leitura deste livro (onde além da capacidade do
historiador ressaltam os conhecimentos de artes gráficas do autor), não pode
deixar de resultar a rejeição do “preconceito do coitadinho”, tão arreigado na
nossa antiga sociedade rural, mas hoje, tal como a poliomielite,
erradicado no nosso país. Custou mais terminar com o preconceito do que com a
doença, porque contra o preconceito não há vacina. E é, por isso, que o
preconceito ainda hoje por vezes assoma. É nossa
obrigação preveni-lo através da educação
inclusiva.
Por falar de vacina, não posso deixar, como praticante da
divulgação da ciência, de aproveitar o espaço que o Ilídio generosamente me
concede na sua obra, por repetir aqui o que afirmo amiúde nas minhas palestras de
divulgação da ciência: o incremento da longevidade, que pressupõe a eliminação
de causas de morte prematura como certas epidemias graves, é um dos grandes
triunfos da ciência moderna. Na segunda metade do século XX, assistimos todos
ao fim, em quase todo o globo, de doenças que costumavam ser fatais. Eu sou
praticamente da idade do Ilídio (não chego a ser um ano mais velho) e podia,
portanto, ter sido infectado, em tenra idade, pelo vírus da pólio. Mas os
nossos filhos, o Luís e o Duarte, já não, porque
engoliram as gotas “mágicas” da vacina anti-pólio.
Os médicos virologistas Hilary Koprowski, de origem polaca, mas naturalizado
estado-unidense, Jonas Salk, norte-americano, e Albert Sabin, de origem russa,
mas também norte-americano, cujos primeiros ensaios vacínicos foram realizados
respectivamente em 1950, em 1952 e em 1957, permitiram que a campanha alargada
de vacinação anti-pólio tivesse começado em Portugal em 1965, depois de alguma
experiência no início da década de 60. É curioso que o judeu Koprowski tenha
passado por Portugal ao fugir da França ocupada pelos nazis, viajando para o
Brasil antes de se fixar nos Estados Unidos. Por sua vez, Sabin, que também era
judeu, emigrou para o Novo Mundo entre as duas guerras, tendo estado várias
vezes no Brasil, o que lhe valeu o ensejo de casar com uma brasileira, a senhora
Heloísa de Abranches.
Para reconhecer o grande triunfo sobre a doença que foi a
vacinação, basta mencionar que a epidemia de 1952 foi horrível (58.000 casos,
que resultaram em 1445 mortes e 21.269 paralisias permanentes), sendo o medo da
poliomielite apenas comparável ao da bomba
atómica, o espectro que pairava sobre o mundo no pós-guerra. As consequências primeiro
do dessa grande epidemia e depois da prevenção através da vacina (a cura
continua a ser um enorme desafio para a medicina) foram enormes, tanto no campo
das ciências médicas, como na sociedade em geral: o progresso
da medicina intensiva teve muito a ver com o combate à pólio, a fisioterapia
desenvolveu-se associada ao tratamento dos pólios, a filantropia floresceu com
a necessidade de assegurar a vacinação maciça e os direitos dos deficientes
foram-se afirmando socialmente, com a criação de associações e a inclusão bem
sucedida.
Jonas Salk recusou patentear
a sua vacina, perguntando: “Acaso se pode patentear o Sol?”. E a vacina passou
a ser, como o sol, para todos. Hoje em dias, graças à vacina anti-pólio, só
existe poliomielite na Nigéria, no Afeganistão e
no Paquistão, embora, devido às péssimas condições sanitárias em cenários de
guerra, estejam a aparecer casos na Síria e no Iraque. A vacina anti-poliomielite representou o início de outras vacinas,
que os cientistas foram descobrindo e disponibilizando. A recente campanha
anti-vacinas que surgiu nalguns países desenvolvidos, designadamente ao
associar de maneira fraudulenta a vacina tríplice
(sarampo, rubéola e papeira) a casos de autismo, é um movimento anti-científico
que tem de ser denunciado e combatido por todos os meios.
O livro do Ilídio é um depoimento, muito autêntico, de um
tempo em que a humanidade passou de uma fase que certas doenças eram temidas fatalidades
para um tempo em que elas não passam de impossibilidades, se conseguirmos que o
conhecimento prevaleça sobre a ignorância. O seu escrito pode parecer apenas um
depoimento pessoal. Mas é bem mais do que isso: é um documento histórico que
importa divulgar e preservar, para que aprendamos com a experiência. Neste caso
não apenas a experiência que a medicina proporciona, mas também a experiência
das ligações humanas. Muito obrigado, Ilídio!
Coimbra, 15 de Novembro de 2015
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