sexta-feira, 18 de dezembro de 2015
José Mariano Gago (1948‑ ‑2015): Um depoimento pessoal
Trancrevo um outro capítulo meu do livro "Histórias da Física do século XX em Portugal" (Gradiva; Teresa Pena e Gonçalo Figueira, eds.):
Conheci o José Mariano Gago em 1984 na Conferência Nacional de Física em Évora, organizada, como as outras Conferências Nacionais, pela Sociedade Portuguesa de Física. Eu tinha vindo, doutorado, da Alemanha no Natal de 1982 e, jovem professor auxiliar, fui participar naquela conferência. Assisti nessa ocasião a uma entusiasmante palestra sobre física de alta energia, em particular sobre a actividade na Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (CERN) em Genebra, na Suíça, dada pelo José Mariano, então com 36 anos. Ele já tinha na sua mente o alargamento da participação portuguesa no CERN, o que conseguiu com a entrada de Portugal naquela organização em 1985, faz agora 30 anos, e com a fundação do Laboratório de Instrumentação e Partículas (LIP), que ele dirigiu quando não esteve em exercício de funções políticas. Falei‑lhe no fim e só não ficámos com os endereços de email um do outro porque ainda não havia Internet. O contacto estabelecido — depressa tornado amizade — havia de durar longos anos, até à sua morte recente. A última vez que o vi foi em 20 de Janeiro de 2015, na sede da UNESCO, em Paris, onde ele foi moderar, de forma brilhante, a mesa redonda final da inauguração do Ano Internacional da Luz. Na Páscoa tentei telefonar ‑lhe e ele já não respondeu. Sabendo da doença, mandei‑lhe, na véspera da sua inesperada morte, um email animador falando do futuro da ciência entre nós, da urgência de sairmos rapidamente da sombra em que estamos mergulhados. Foram, portanto, mais de três décadas de intercâmbio de ideias, irmanados como estávamos pelo desejo de um país melhor, um país desenvolvido com base na ciência e na cultura científica.
Devemos‑lhe a clarividente presidência da Junta Nacional da Investigação Científica (JNICT) entre 1986 e 1989. Eu tinha andado nas lutas em defesa do Instituto Nacional de Investigação Científica (INIC). A JNICT fez esquecer rapidamente as agruras do INIC com as Jornadas de Ciência e Tecnologia e o Programa Mobilizador de Ciência. Saído da JNICT, escreveu o Manifesto para a Ciência em Portugal (Gradiva, 1990), um ensaio que faz agora 25 anos e que é um programa de governo para uma área que até aí quase não tinha governo. Sobre esse livro escrevi uma recensão nos primeiros meses do Público. Respondeu‑me, por simpática carta manuscrita que conservo algures, esclarecendo‑me sobre alguns dos pontos que levantei e lançando ‑me pistas de reflexão. Ele era assim: amável e inspirador. Em 1991 publiquei na Gradiva Física Divertida. O José Mariano escreveu na altura no Expresso uma recensão, em que elogiava o editor Guilherme Valente, chamando ‑lhe «reitor da Universidade da Gradiva» e anunciando que o autor tinha ascendido à cátedra com aquela obra. Julgo que lhe agradou, para além de ter apresentado a história da Física, a apresentação de experiências simples. Para o José Mariano a escola e a sociedade precisavam clara‑ mente de mais experimentação. Precisavam não apenas do saber como do saber fazer.
Em 1995 Mariano Gago, com a mudança política introduzida pela eleição de António Guterres (que tinha sido seu colega no Instituto Superior Técnico e que tinha por ele enorme admiração e estima), foi nomeado ministro da Ciência e Tecnologia. Era a primeira vez que existia essa pasta, pois antes os assuntos de ciência eram tratados na Administração do Território. Tratava‑se de uma esperança para a ciência, uma esperança que se veio a concretizar. No ano seguinte nascia a Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), que sucedia à JNICT, e a Ciência Viva — Agência Nacional para a Cultura Científica e Tecnológica. As duas, em conjunto sempre que necessário, passavam a exercer a sua acção por todo o lado. A FCT começou a atribuir projectos e bolsas, por concursos credíveis, assim como apoio plurianual a unidades de investigação, após rigorosa avaliação, bastante bem acolhida pela comunidade científica nacional. Estive também com ele na inauguração do primeiro laboratório associado do país, o Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra. Apesar de não simpatizar muito com a cidade de Coimbra — que ele via como símbolo de um passa‑ do de séculos onde a ciência esteve reduzida à mínima expressão — fez questão de inaugurar a nova instituição dos laboratórios associados na Lusa Atenas. E inaugurou também a Milipeia, o supercomputador no Laboratório de Cálculo Avançado em Coimbra, que de certa forma representa as infra‑estruturas científico ‑tecnológicas que começavam a aparecer entre nós. A ciência portuguesa internacionalizou ‑se: além da adesão ao CERN houve adesão à Agência Espacial Europeia (ESA) e ao Observatório Europeu do Sul (ESO), entre outros organismos transnacionais. Por outro lado, o Ciência Viva cedo começou a fazer projectos nas escolas. Eu tinha participado num encontro que ele organizou sobre cultura científica, com alguns cientistas estrangeiros, e estava disposto a colaborar nessa área no que fosse preciso. Mostrara ‑lhe o embrião do Exploratório Infante D. Henrique, em Coimbra, que ele tinha apreciado. Mas o primeiro Centro Ciência Viva abriu em 1997 em Faro, usando materiais de uma exposição itinerante de ciência que tinha sido organizada pela Associação para o Desenvolvimento da Ciência e da Tecnologia. Eu estava no seu gabinete no Terreiro do Paço (o ministro gostava imenso da localização, muito perto do restaurante Martinho da Arcada, onde ele ia amiúde), quando ele recebeu com evidente satisfação um telefonema da Reitoria da Universidade do Algarve dando ‑lhe a notícia do bom acolhimento do protocolo para instalação do centro. Havia de ser o primeiro de muitos outros acordos de instalação de centros congéneres.
Quando não era ministro, entre 2002 e 2005, estive com ele nas vicissitudes por que passou o Ciência Viva, uma vez que havia quem quisesse destruir. Eu sabia do reconhecimento internacional desse programa, que era menina dos olhos do José Mariano. O Rómulo — Centro Ciência Viva da Universidade de Coimbra, um centro de recursos situado no Departamento de Física da Universidade de Coimbra — foi uma ideia que lhe apresentei num jantar no Parque das Nações, perto do Pavilhão do Conhecimento, centro que ele sonhou bastante antes de ser ministro. Quando lhe perguntei quantos centros Ciência Viva se poderiam criar numa dada região, respondeu lesto: «Far‑se‑ão todos aqueles que forem precisos!» Mariano Gago haveria de visitar o Rómulo em 2013, tendo falado de novas formas de ligação dos cidadãos à ciência, consubstanciadas por exemplo nos movimentos de «ciência cidadã».
Não o visitando com frequência, sabia da sua permanente e generosa disponibilidade. Como ministro encontrou tempo para apresentar, na Livraria FNAC do Centro Comercial Colombo, o meu livro Nova Física Divertida (Gradiva, 2007), da colecção «Ciência Aberta», tendo ele deixado claro, quando eu afirmei que tinha fechado o departamento da «Física Divertida», que mais haveriam de vir. Tendo ‑lhe pedido, quando já não era ministro, para apresentar o meu livro História da Ciência em Portugal (Arranha Céus, 2013), ele declinou amavelmente o convite, talvez por razões de saúde, mas esteve presente no Restaurante do El Corte Inglês em Lisboa não só para me abraçar, mas também para fazer um comentário elogioso. Gago sabia da relevância da História da Ciência, não tendo sido por acaso que criou na FCT um programa de apoio a essa área.
Foi estupefacto que vi o ministro Nuno Crato, sucessor de José Mariano Gago, terminar com o programa em História da Ciência (e também com o programa em Promoção de Ciência). Começou aí o meu afastamento, que desde há algum tempo é público e notório, com a política de Crato. Comentei esse facto com o José Mariano num recente encontro que tivemos no Convento da Arrábida, um sítio que ele adorava pela vista marítima e pelo ar puro. Aí comentámos a recente pseudo ‑avaliação da ciência nacional perpetrada por Nuno Crato: concordámos os dois que não era uma normal avaliação por pares, mas um processo político de destruição de uma herança que tinha custado a construir.
Estranhamente, alguns dos que hoje aplaudem a obra de Mariano Gago são os mesmos que apoiam a política de castração da ciência, em particular das áreas da História da Ciência e da Cultura Científica perpetrada por Crato. O passamento de José Mariano Gago constitui uma grande perda para todos. Para mim é o fim do convívio com um homem inteligente e sonhador. Mas é sobretudo uma chamada aos amigos da ciência e da cultura científica, da física ou de outras ciências, para que redobremos o combate contra uma política desfavorável à ciência, que na prática mais não faz do que dar à ignorância o lugar que é do saber. Devemos à memória do José Mariano a continuação do bom combate em favor da ciência e do seu papel cultural insubstituível.
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