Minha recensão publicada na última Gazeta de Física (vol. 38, n.º 2):
A energia nuclear tem hoje má fama
em Portugal como noutros sítios. Mas, na sequência da iniciativa Átomos para a Paz de Eisenhower, ela foi
desde os anos 50 até aos anos 80 considerada em Portugal uma opção energética
possível. Foi planeado e construído – de facto, continua hoje activo – um reactor
nuclear em Sacavém. A
decisão de construir a instituição que o enquadrou, o Laboratório de Física e
Engenharia Nucleares (LFEN) foi tomada por Salazar em 1955 com base numa
proposta da Junta de Energia Nuclear criada um ano antes. O início legal do
Laboratório ocorreu em 1959, embora só em 1961 o reactor tenha entrado em funcionamento. O
fim inglório da instituição como organismo estatal ocorreu em 2012, quando Passos
Coelho decidiu extinguir o então chamado Instituto Tecnológico e Nuclear (ITN),
um dos nove Laboratórios do Estado existentes no nosso país, tendo transferido
as suas funções para o Instituto Superior Técnico.
De 1959 até à 2012, o Laboratório
teve uma vida bastante atribulada. O físico nuclear Jaime da Costa Oliveira, que
nele fez a sua carreira científica e que por isso o conhece bem, apresenta-nos
no livro Memórias para a História de um
Laboratório do Estado[1] um
resumo muito cuidadoso do percurso desse laboratório no seu pouco mais de meio
século de existência. Identificou cinco crises, algumas demoradas: a crise de
1962-63, a
crise de 1973-1978, a
crise de 1992-1994, a
crise de 2000-2005 e a crise de 2009-2011. Isto é, houve um total de quase 16
anos de crise em 53 anos de vida institucional. Entre esses períodos de crise o
autor identificou cinco tempos de mutação: 1968, 1979, 1985, 1995 e 2007. A vida do Laboratório
decorreu, portanto, num sobressalto permanente, entre crises e mutações, agravando-se
no regime democrático com a continuada indefinição de objectivos. De facto, o
secretário de Estado Carlos Pimenta anunciou em 1987 o abandono da opção
nuclear (o desastre de Chernobyl tinha sido em 1986), uma decisão que terá
contribuído para a maioria absoluta de Cavaco Silva nesse mesmo ano. Se a
primeira crise, no início dos anos 60, correspondeu a uma mudança de planos no
aproveitamento do urânio da Urgeiriça e à falta de meios para incrementar a
infra-estrutura de Sacavém (viviam-se, recorde-se, os primeiros anos da guerra
colonial), a crise de 1973 consistiu na despromoção do Laboratório, iniciada
antes do 25 de Abril de 1974 mas agravada com as confusões do PREC (o
presidente da Junta de Energia Nuclear entre 1973 e 1974 foi o general Kaúlza
de Arriaga, vindo de Moçambique, que já
antes tinha desempenhado essas funções). Em 1979 parte do Laboratório foi
integrado no LNETI – Laboratório Nacional de Engenharia e Tecnologia Industrial
–, para cuja direcção foi nesse ano nomeado Veiga Simão, um físico nuclear. A crise
de 1992 ocorreu após o LNETI ter passado a INETI (Instituto em vez de
Laboratório, mais um passo de uma dança de nomes que abunda nesta história).
Mas a nova orgânica deixou de lado a instalação de Sacavém, denominada
Instituto de Ciências e Engenharia Nucleares
(ICEN) desde 1985. Em 1995 Mariano Gago, à frente do novo Ministério da Ciência
e da Tecnologia, tentou animar o Laboratório de Sacavém, que tinha desde há
pouco o nome de ITN. A partir de 2000 e durante cinco anos ocorreu nova crise
relacionada com o mau relacionamento entre a direcção e investigadores, que
falavam de indefinição quanto ao rumo. Em 2007 o ITN transformou-se em Instituto Público ,
mas, a partir de 2009, com o deflagrar da crise económica na Europa e em Portugal,
os recursos para a ciência ficaram progressivamente mais escassos. Finalmente, em
2011, o governo de Passos Coelho, sem qualquer estudo prévio, matou de “morte
macaca” uma instituição que, apesar das sucessivas indecisões governamentais,
tinha procurado cumprir o objectivo de formar investigadores, criar ciência,
desenvolver técnicas e cuidar, nomeadamente, dos aspectos de segurança nuclear
e protecção contra radiações. E cumpriu-os, com os escassos meios que sempre
teve: uma exibição das suas capacidades
foi a missão do ITN em 2001 no Kosovo e na Bósnia para analisar vestígios de
urânio empobrecido. De facto, conclui Jaime Oliveira, com a transferência das
atribuições do ITN para a Universidade Técnica de Lisboa (hoje, Universidade de
Lisboa) não ficou “salvaguardado,
claramente, o princípio geral de independência e responsabilidade directa do Estado,
em particular no exercício das suas funções regulatórias nos domínios da
segurança nuclear e da protecção contra radiações”. Julgo que tem razão. O
ministro Nuno Crato pouco percebia da “poda”. Podou só por podar. E à
semelhança do que fez com o ITN podou, mais tarde, numerosos centros de
investigação sem uma avaliação séria.
O livro de Jaime Oliveira, na
sequência de outros que escreveu sobre a física e a engenharia nucleares em
Portugal, está muito bem documentado. Merece felicitações pelo trabalho de
recolha de dados, legislação e depoimentos, com base no qual emite um parecer
final. Estamos em presença de uma análise precisa, efectuada com raios gama se
me é permitida uma metáfora de base científica. Este livro conjuntamente com o
sítio www.itn.pt/memoria/ em que ele
colaborou contam a história do nascimento, vida e morte de um Laboratório de
do Estado. Para além da posição do autor, um insider, importam sobremaneira os depoimentos inéditos de 17
personalidades que de uma forma ou de outra supervisionaram a actividade de
Sacavém (na lista incluem-se José Veiga Simão, Luís Mira Amaral, José Mariano Gago,
Pedro Lynce, Pedro de Sampaio Nunes e Ricardo Bayão Horta). Percebe-se que
muitas vezes não houve dinheiro, mas na maior parte das vezes o problema foi
outro e bem mais grave: a falta de pensamento estratégico e a falta de decisão
política atempada. A energia nuclear não conheceu ventos favoráveis em
Portugal, ao contrário de outros países europeus, mas, sendo Portugal um país com
potencial uranífero e com níveis de radioactividade não desprezáveis em partes
largas do seu território, poder-se-ia ter alimentado com mais vigor a nossa
capacidade científico-técnica nesse domínio. A ciência e a engenharia nucleares
estão longe de se resumirem à opção energética e, ao não apostarmos, sem
descontinuidades, na investigação do núcleo atómico, limitámos a nossa
capacidade nacional em áreas que vão da protecção relativamente a radiações até
ao uso das radiações na saúde.
Jaime da Costa Oliveira sabe do
que fala. Licenciado em Ciências Físico-Químicas pela Universidade de Lisboa, doutorou-se em Física Nuclear em Paris
no ano de 1969. Foi durante 25 anos Investigador-Coordenador do ITN e instituições
anteriores, tendo desempenhado funções directivas durante vários anos. Coordenou
o Livro Branco sobre Centrais Nucleares de 1977 e foi um dos fundadores da
Sociedade Portuguesa de Física, que é contemporânea da Revolução de 1974. Publicou
numerosos trabalhos sobre reactores nucleares e política energética e 14
livros, entre os quais A Energia Nuclear
– Bases para uma opção (Sá da Costa, 1977), Energia Nuclear – Mitos e Realidades (O Mirante, 2000, com Eduardo Martinho)
e O Reactor Nuclear Português – Fonte de
Conhecimento (O Mirante, 2005). Com mais este livro deixa um legado valioso
aos historiadores de ciência. Eles, com mais distância, não deixarão de
dissecar uma das instituições mais marcantes da nossa história científica
recente.
[1] Jaime da Costa
Oliveira, Memórias para a História de um Laboratório do Estado, O
Mirante Editora, 2013.
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