A última crónica de Jorge Buescu na Ingenium, revista da Ordem dos Engenheiros, é tão interessante que não resisto aqui a transcrevê-la, alargando o público que a pode ler:
Cédric Villani jamais passa
despercebido. A sua imagem singularmente retro remete-nos para um outro
tempo: cabelo comprido, cortado a direito abaixo das orelhas, e risco ao meio, fato
de três peças, relógio de bolso cuja corrente lhe cruza o colete, laço ou plastron ao pescoço, e na lapela um
enorme alfinete em forma de aranha (da vasta colecção que possui, conforme o
atestam as suas incontáveis imagens disponíveis nos media). A mochila preta
onde transporta o portátil é a nota dissonante neste look de aristocrata do século XIX. Este inesperado e excêntrico conjunto
leva-nos, num primeiro olhar, a supor estar perante um músico ou um actor – certamente alguém ligado às artes.
Dificilmente diríamos, contudo,
estar diante de dos mais brilhantes matemáticos da actualidade. E seguramente
do mais famoso. Mas quem é Cédric Villani?
Nascido em França há 42 anos, Cédric
Villani já atingiu tudo aquilo que um matemático
pode sonhar na sua vida profissional: descobriu resultados profundos e importantes;
goza de reconhecimento mundial, sendo convidado pelas melhores Universidades
para expor as suas ideias; publicou mais de uma centena de artigos nas mais prestigiadas
revistas científicase livros considerados marcos nas matérias que tratam. São
muitos e impressionantes os prémios e distinções que até ao momento ganhou: prémio
da European Mathematical Society, Prémio Henri Poincaré, Prémio Fermat, Prémio
J. Doob da American Mathematical Society, pertença à Academia Francesa das
Ciências,…e, é claro, a maior distinção na
área da Matemática: a medalha Fields, que lhe foi atribuída em 2010 e lhe mudou
a vida, elevando-o ao papel de incansável embaixador da Matemática junto do
grande público e transformando-o em “pop
star” à escala planetária – de tal forma que ele próprio se intitulou “Lady
Gaga da Matemática”.
Em termos científicos, o seu
resultado mais espectacular é (até hoje!) a demonstração matemática da
existência de um fenómeno físico desconhecido. A história conta-se brevemente:
o físico russo Lev Landau tinha previsto em 1946 a existência de um fenómeno de
amortecimento exponencial de ondas em plasmas, que ficou conhecido como
amortecimento de Landau. Mas, apesar da previsão teórica, este fenómeno
permaneceu inobservado: os plasmas existem no núcleo do Sol, a 2 milhões de
graus, e não são propriamente reprodutíveis em laboratório, como bem sabem os
físicos que trabalham em fusão nuclear. Por outro lado, a própria teoria de
Landau era discutível: todos estes fenómenos são por natureza altamente
não-lineares, e as equações utilizadas eram já resultado de aproximações e
simplificações. Poderia o amortecimento de Landau não passar de um efeito espúrio
destas aproximações? Existiria ou não o
amortecimento de Landau?
Estava-se, pois, numa situação de
total bloqueio: as equações prevendo o fenómeno não passavam de um modelo, de
validade não comprovada na região em que estava a ser aplicado (citando o
estatístico George Fox, “todos os modelos estão errados, mas alguns são úteis”).
Sendo ponto assente a impossibilidade, para todos os efeitos práticos, da sua
confirmação experimental, a existência
do amortecimento de Landau apresentava-se, pois, como uma quimera inatingível.
É aqui que entra em cena Villani.
Constatando a analogia de princípio das questões matemáticas em que trabalhara
anteriormente (transporte óptimo e equações cinéticas do tipo de Boltzmann) com
o problema de princípio do amortecimento de Landau, desafiou o seu antigo aluno
Clément Mouhot a colaborar no estudo deste problema. Ao fim de quase dois anos
de esforços, Villani e Mouhot conseguiram um resultado notável: demonstraram
matematicamente a existência de amortecimento de Landau nas equações completas
da magnetohidrodinâmica. Aquilo que Landau deixara como conjectura relativa às
equações aproximadas, Villani e Mouhot demonstraram como teorema relativo às
equações completas!
É difícil exagerar a importância
deste resultado. Para se ter uma ideia, note-se por exemplo que as equações de
Navier-Stokes, que regem a dinâmica de fluidos, são para a Matemática terra incognita: quase duzentos anos
depois de formuladas, está ainda em aberto a demonstração matemática da existência
de soluções no caso geral (é, aliás, um dos problemas do Milénio, com prémio de
um milhão de dólares atribuído pelo Clay Institute). E, no entanto, todos nós
comprovamos experimentalmente no dia-a-dia a existência de soluções: a água flui
como se espera, o ar da atmosfera circula como previsto pelas equações, o fumo de
um cigarro sobe aceleradamente, passando o escoamento de laminar a turbulento. Como
é natural, nesta, como noutras matérias, a Física está séculos à frente da
Matemática.
Ora, Villani foi contra a ordem
natural das coisas: fez a Matemática ultrapassar a Física, ao demonstrar
matematicamente que o amortecimento de Landau existe. Mais do que um fenómeno
físico, o amortecimento de Landau é, graças a ele, um teorema, tão verdadeiro
como o de Pitágoras.
Foi este o grande resultado que
deu a Cédric Villani a medalha Fields em 2010. E foi a partir daqui que a sua
vida se alterou radicalmente.
As medalhas Fields são atribuídas
de quatro em quatro anos no Congresso Internacional de Matemática, que reúne
milhares de matemáticos de todo o Mundo e são frequentemente comparadas aos
prémios Nobel. A ocasião da sua entrega evoca, contudo, mais a dos Óscares em
Hollywood do que a que decorre na austera Academia Sueca. Cria-se grande
expectativa, estão presentes chefes de Estado, são convidadas centenas de
jornalistas e a cerimónia é planeada e ensaiada ao segundo. É propositadamente um
momento de public relations, marketing excepcional numa disciplina conhecida por não ter
propriamente boa imagem pública. Nos dias subsequentes, os matemáticos
galardoados são assediados por todo o tipo de media para declarações e entrevistas.
Um matemático típico ambiciona
tudo menos este tipo de fama efémera. Sente-se desconfortável sob os holofotes,
tem dificuldade em comunicar aos leigos em que consiste o trabalho que o fez
ganhar o prémio, e deseja secretamente que tudo aquilo passe para poder regressar às
suas equações. E em regra esta agitação em torno dos premiados cessa ao fim de
algumas semanas, retomando estes a sua vida normal.
Mas Villani não é um matemático
típico. Profundo mas comunicativo, erudito mas acessível, e com um enorme
desejo de partilhar com o resto do Mundo a beleza da Matemática, Villani
aceitou e chamou a si, com enorme empenho e contagiante joie de vivre, essa inesperada tarefa de comunicação da Matemática.
Os media ficaram de imediato fascinados
por Villani – e com boas razões. Nele descobriram um dos representantes máximos
da ciência provavelmente menos conhecida e mais incompreendida, não apenas a
aceitar os seus pedidos de entrevistas, mas a revelar-se uma personalidade
transbordante de energia, de inteligência, de erudição, de sofisticação – e de graça. Um verdadeiro esprit de finesse. Alguém que pulveriza
todos os estereótipos que ditam que a Matemática é aborrecida e os matemáticos enfadonhos.
Alguém que brilha em todo o lado, na rádio, na TV, na imprensa escrita – e brilha
por ser genuíno. Alguém que nos enriquece pelo mero facto de o ouvirmos, que tem
um enorme gozo em comunicar e que fala, com profundidade e clareza
extraordinárias, sobre tudo o que lhe perguntarem.
Tudo? Não. Como os irredutíveis
gauleses da aldeia de Astérix, há um assunto tabu para Villani: as aranhas que
usa na lapela. Recusa-se a falar desta sua idiossincrasia, que se materializa numa
colecção de quase meia centena de alfinetes provenientes de todo o Mundo, a
maioria feitos especialmente para si. Villani diz que todas as pessoas devem
ter algo de misterioso, e que o seu segredo são as aranhas. Tem mesmo uma
tarântula empalhada no seu gabinete do Institut Henri Poincaré (de que é
director).
Villani gosta da projecção
mundial que a medalha Fields lhe trouxe e aproveita-a para comunicar ao Mundo
as razões da sua paixão pela Matemática. Diverte-se a fazê-lo. E o Mundo quer
ouvi-lo. É também, literalmente, uma estrela de cinema, figurando como protagonista
do filme Comment j’ai detesté les Maths,
de Olivier Peyon, e da curta metragem La
main de Villani, de Jean-Michel Alberola. E é autor de livros singulares,
como Théoreme Vivant ou o recente Les rêveurs lunaires, banda desenhada em
que surge também como personagem.
O seu livro Teorema Vivo, editado em 2015 pela Gradiva e traduzido pelo autor
destas linhas, é uma obra verdadeiramente ímpar. Não é um livro de divulgação
científica no sentido clássico. É uma espécie de diário de bordo, de mapa da
actividade mental de Villani durante os quase dois anos de trabalho e
colaboração com Mouhot sobre o amortecimento de Landau. Lá estão os avanços e
os recuos, as trocas de emails inflamados e as grandes frustrações. Lá estão
também solilóquios sobre música ou literatura, associações de ideias mais ou
menos conscientes, e páginas e páginas de equações, curiosamente com propósito
sobretudo decorativo. Uma viagem que nos leva de Paris a Princeton, de Lyon a
Tóquio e termina em Hyderabad, com a entrega da medalha Fields. Teorema Vivo é acima de tudo um testemunho
pessoal único sobre a singularidade do processo
criativo em Matemática.
Em Novembro de 2014 Cédric
Villani esteve em Lisboa, no LEFFEST (Lisbon and Estoril Film Festival),
convidado pelo organizador Paulo Branco como mais uma estrela, lado a lado com
John Malkovich ou Willem Dafoe. Numa noite mágica, o público presente assistiu
aos seus filmes e teve o privilégio de participar num debate com Villani
(disponível no youtube). Foi uma estadia breve, pois nessa mesma madrugada seguiu
para o Canadá, onde era esperado para mais uma conferência.
Em 10 e 11 de Novembro de 2015
Villani regressa a Portugal: desta vez, além de participar no LEFFEST, virá ainda
lançar a edição portuguesa do Teorema
Vivo e proferirá, em Coimbra, a conferência “Matemática, Cultura e Criação”,
no âmbito do Mês da Ciência, promovido pela Fundação Francisco Manuel dos
Santos. Duas excelentes ocasiões para privar de perto com esta mente brilhante.
Jorge Buescu
Outubro de 2015
3 perguntas a Cédric Villani
JB: Livros, filmes, TV, BD, entrevistas… como arranjas tempo para ser o
“embaixador da Matemática”?
É verdade que explorei
muitos caminhos… seria necessário falar também das centenas de conferências que
dei nestes últimos anos, do meu papel de presidente de associações, da minha
cooperação com África, e do dinheiro de que foi necessário ir à procura para o
meu instituto. No entanto, todos estes “chapéus” participam da mesma lógica
“pública” e reforçam-se uns aos outros: um contacto criado num contexto pode
revelar-se importante noutro; os progressos realizados num papel podem ser
úteis para outro. É portanto uma questão de integração. Alguns pontos-chave da
minha organização são: (1) A minha secretária faz um trabalho extraordinário,
nunca me desembrulharia sem ela; (2) Qualquer que seja o projecto que se
prossegue, o êxito é sempre uma questão humana: descobrir as boas pessoas, ter
a boa compreensão, a boa empatia; (3) um grande rigor na gestão das
comunicações, por exemplo os emails.
JB: A investigação exige total concentração, como se vê no teu “Teorema
Vivo”. Não sentes essa exposição pública por vezes como um entrave ao teu
trabalho matemático?
É claro que a exposição
mediática e o trabalho matemático não se dão bem em conjunto: as restrições que
pesam sobre a utilização do tempo, e o facto de ele ser tão esquartejado, não
são muito compatíveis com o ritmo prolongado da investigação. Tive de pôr de
lado assuntos que me eram caros; e, acima de tudo, sofro por não poder
trabalhar nos meus projectos de livros. Mas não há milagres: se se pretende
atingir objectivos em comunicação, administração, contacto com a sociedade, é
necessário investir nessas áreas durante anos. E é como em investigação: quando
a oportunidade se revela, é preciso aproveitá-la a fundo. Dito isto, eu
conservei a minha actividade de ensino: cursos de Doutoramento, um MOOC[1]
no ano passado e outros em preparação; e a minha actividade como editor
permite-me ainda estar bem informado sobre as tendências actuais da
investigação. Enfim, as conferências públicas foram preciosas para me permitir
compreender o meu próprio trabalho e as suas relações com o resto da
investigação.
JB: E o que pensam os teus colegas matemáticos do teu envolvimento
público?
Os meus colegas têm, seguramente,
sentimentos diversos: alguns acham que é muito bom desencarcerar a disciplina,
outros devem dizer-se que faço demasiadas coisas. Mas (quase) ninguém me
censurou. E creio que todos eles vêem que eu trabalho enormemente no assunto, e
que isso tem efeitos muito positivos para a disciplina: a publicidade feita à
profissão e às nossas universidades; os grandes financiamentos públicos obtidos
para o desenvolvimento do Institut Henri Poincaré; a nossa influência política
acrescida em decisões importantes.
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