A minha apresentação do livro "Diálogos com Ciência" de António Piedade, no dia 17 de Dezembro de 2015, no Centro de Ciência Viva Rómulo de Carvalho. Procurei incorporar no texto algumas das ideias que surgiram do diálogo que se seguiu.
Diálogos com Ciência, edição de autor de António Piedade, é um livro em que a ciência e a escrita poética nos supreendem na forma de textos curtos, a maior parte na forma de diálogos entre pessoas de diferentes gerações ou meios culturais. É uma delícia ler este livro a sós ou acompanhado.
Os vários capítulos que nos remetem para temas desde a matemática à biologia molecular, passando pela física e pela química, são pequenos diamantes que podem ser lidos em voz alta ou até encenados (como já aconteceu com pelo menos um deles e foi feito por Mário Montenengro na apresentação). O formato de diálogo remete-nos, como refere Carlos Fiolhais no prefácio, para Galileu e Garcia da Orta, mas não faltam bons exemplos na história da ciência. Este formato, assim como a evocação de histórias que nos fascinam - inesperadas ou deliciosamente previsíveis, pessoais, picantes ou morais - tem muita eficácia na comunicação de ciência. O diálogo foi também usado por Jane Marcet no início do século XIX, nas suas conversas sobre química, envolvendo uma professora e duas alunas com feitios muito diferentes. No caso de Marcet, quando esses diálogos foram adaptados, por diferentes autores, para livros de ensino, perderam grande parte da sua eficácia e brilho. António Piedade, na apresentação do livro, também nos falou das suas experiências com as versões de um mesmo texto, ou tema, escritos na forma de diálogo, apresentando apenas as explicações científicas, ou transformados em poemas. (Um livro de poemas com cariz científico é um projecto que o autor vai referindo e que aguardamos com curiosidade).
O nível da linguagem colocada na voz das crianças, sem concessões a tratamentos simplistas ou infantilizantes, pode causar alguma estranheza, mas faz parte do encanto do livro. Lembrou-me logo o que escreveu Aquilino Ribeiro sobre os livros para crianças. O texto deve dar mais do que o que as pessoas - em especial as crianças - sabem ou esperam. António Piedade acrescenta que, para além do uso da linguagem científica sem simplificações - quase sempre revista por especialistas - deixa propositadamente algumas partes do texto apenas esboçadas para estimular a curiosidade. Eu acrescentaria que em alguns casos se deixa liberdade ao leitor para descobrir (sem sem avassadado com isso) que o assunto abordado é bastante complexo e, que muitas vezes, ainda não temos respostas completas. É assim que funciona a ciência, procurando respostas e não respondendo de forma dogmática e autoritária. E, embora existam provavelmente limites físicos e lógicos para a ciência, não é certo que os conheçamos todos.
Não vou desvendar o conteúdo do livro; deixo para o leitor o prazer da descoberta. Vou apenas referir alguns aspectos que me chamaram a atenção, não tanto para os analisar, mas para dar a minha visão deles através dos pensamentos a que estes me conduziram. Outros leitores terão outras visões e farão outras descobertas. Como é bem sabido - mas não é de mais relembrar - um bom livro é aquele que interroga o leitor e ultrapassa as intenções do autor, ganhando vida própria.
Por exemplo, o belo texto sobre os elementos químicos presentes no corpo humano levou-me às diferentes atitudes que as pessoas têm sobre o conhecimento científico relacionado com a quantificação do corpo humano. Lembrou-me um dos momentos mais poéticos da séria Breaking Bad em que o professor e uma aluna vão somando as massas dos elementos e falta sempre alguma massa, ou seja mais alguns elementos – não a alma ou a consciência que, embora não saibamos ainda bem o que é, sabemos com grande certeza não ter massa. De facto, sabermos quais são os elementos químicos ou moléculas presentes no corpo humano, não retira poesia, ou mistério ou a possibilidade do transcendente às nossas vidas. Outra evocação a que este texto me conduziu foi a de Sylvia Plath, a qual, depois do sofrimento psíquico que lhe causou a física, fez todos os possíveis para evitar estudar química. Para Sylvia, palavras bonitas como ouro, cobalto e alumínio apareciam transformadas em abreviaturas horrorosas com números à frente. E, em vez de palavras belas como caroteno e xantofila, na física apareciam símbolos que pareciam escorpiões. Este é, poderíamos conjecturar, um efeito Sylvia Plath menos conhecido: o fechamento à beleza de alguns aspectos da ciência. Esse fechamento pode surgir das nossas personalidades, mas também dos maus encontros. Sylvia Plath talvez não tivesse odiado a física e a química se tivesse tido conhecido a escrita científica poética de António Piedade a propósito destas duas ciências.
No capítulo sobre as lágrimas é impossível não pensar no famoso poema de António Gedeão - água e cloreto de sódio, nada mais – Lágrima de Preta. Mas o texto vai muito mais além e remete-nos também para a bioquímica e a fisiologia e biologia molecular das lágrimas. É também Vitorino Nemésio e os seus poemas de Limite de Idade que nos piscam os olhos inundados de lágrimas de diferentes composições químicas, consoantes são de alegria ou tristeza, comunicando sentimentos com a linguagem da química. Muito para além da água e cloreto de sódio.
Os capítulos das viagens, realizadas em 2010 e 2011, na linha de comboio Nobel que tem três paragens: Fisiologia e Medicina, Física e Química são muito felizes e têm um grande potencial para serem, nas escolas ou em trabalho com jovens, estendidos a outros anos (anteriores ou posteriores) ou incluir novas paragens. No próprio capítulo de 2011, o combóio é perdido na paragem da Física, não chegando os viajantes à paragem da Química, onde os aguardavam os quasi-cristais.
Os nomes das personagens são também curiosos e em alguns casos relacionados com a narrativa. No capítulo do aniversário da dupla-hélice – sessenta anos – gostei da evocação de Frederick Sanger e Rosalind Franklin (cujo nome se relaciona com o da neta da história – Rosália). O nome de Jaime - o avô – liga-se a James Watson (pode ser-se um avô maravilhoso e ao mesmo tempo uma pessoa desagradável e com ideias pouco simpáticas) e Francisco - o outro neto – a Francis Crick. António Piedade não identifica o Henrique que observa sangue ao miscroscópio, mas confidencia-nos que o Rui de Bem-me-quer? é inspirado no conhecido neurocientista português com o mesmo nome próprio.
Finalmente, alguns comentários sobre a bela capa que, parecendo uma pintura, é na realidade uma imagem do campo magnético no plano galáctico obtida pela ESA, e para a paginação. António Piedade explicou-nos que optou por usar uma letra de corpo suficentemente grande que não obrigasse os mais velhos a usar óculos e usou um espaçamenento entre linhas que ajudasse os mais novos a ler com mais facilidade. O resultado em termos de paginação pode parecer menos elegante do que o que costumamos encontrar em edições muito bonitas mas menos legíveis, mas é muito eficaz. Parafraseando Michael Faraday: o que um objecto que foi feito para ser usado – neste caso um livro para ser lido - tem de mais belo é a sua utilidade e eficácia.
Em suma, há muitas boas razões para ler e oferecer neste Natal Diálogos com Ciência - veja-se também as que refere João Lourenço Monteiro. Quem estiver interessado num exemplar envie um email para apiedade@ci.uc.pt.
Diálogos com Ciência, edição de autor de António Piedade, é um livro em que a ciência e a escrita poética nos supreendem na forma de textos curtos, a maior parte na forma de diálogos entre pessoas de diferentes gerações ou meios culturais. É uma delícia ler este livro a sós ou acompanhado.
Os vários capítulos que nos remetem para temas desde a matemática à biologia molecular, passando pela física e pela química, são pequenos diamantes que podem ser lidos em voz alta ou até encenados (como já aconteceu com pelo menos um deles e foi feito por Mário Montenengro na apresentação). O formato de diálogo remete-nos, como refere Carlos Fiolhais no prefácio, para Galileu e Garcia da Orta, mas não faltam bons exemplos na história da ciência. Este formato, assim como a evocação de histórias que nos fascinam - inesperadas ou deliciosamente previsíveis, pessoais, picantes ou morais - tem muita eficácia na comunicação de ciência. O diálogo foi também usado por Jane Marcet no início do século XIX, nas suas conversas sobre química, envolvendo uma professora e duas alunas com feitios muito diferentes. No caso de Marcet, quando esses diálogos foram adaptados, por diferentes autores, para livros de ensino, perderam grande parte da sua eficácia e brilho. António Piedade, na apresentação do livro, também nos falou das suas experiências com as versões de um mesmo texto, ou tema, escritos na forma de diálogo, apresentando apenas as explicações científicas, ou transformados em poemas. (Um livro de poemas com cariz científico é um projecto que o autor vai referindo e que aguardamos com curiosidade).
O nível da linguagem colocada na voz das crianças, sem concessões a tratamentos simplistas ou infantilizantes, pode causar alguma estranheza, mas faz parte do encanto do livro. Lembrou-me logo o que escreveu Aquilino Ribeiro sobre os livros para crianças. O texto deve dar mais do que o que as pessoas - em especial as crianças - sabem ou esperam. António Piedade acrescenta que, para além do uso da linguagem científica sem simplificações - quase sempre revista por especialistas - deixa propositadamente algumas partes do texto apenas esboçadas para estimular a curiosidade. Eu acrescentaria que em alguns casos se deixa liberdade ao leitor para descobrir (sem sem avassadado com isso) que o assunto abordado é bastante complexo e, que muitas vezes, ainda não temos respostas completas. É assim que funciona a ciência, procurando respostas e não respondendo de forma dogmática e autoritária. E, embora existam provavelmente limites físicos e lógicos para a ciência, não é certo que os conheçamos todos.
Não vou desvendar o conteúdo do livro; deixo para o leitor o prazer da descoberta. Vou apenas referir alguns aspectos que me chamaram a atenção, não tanto para os analisar, mas para dar a minha visão deles através dos pensamentos a que estes me conduziram. Outros leitores terão outras visões e farão outras descobertas. Como é bem sabido - mas não é de mais relembrar - um bom livro é aquele que interroga o leitor e ultrapassa as intenções do autor, ganhando vida própria.
Por exemplo, o belo texto sobre os elementos químicos presentes no corpo humano levou-me às diferentes atitudes que as pessoas têm sobre o conhecimento científico relacionado com a quantificação do corpo humano. Lembrou-me um dos momentos mais poéticos da séria Breaking Bad em que o professor e uma aluna vão somando as massas dos elementos e falta sempre alguma massa, ou seja mais alguns elementos – não a alma ou a consciência que, embora não saibamos ainda bem o que é, sabemos com grande certeza não ter massa. De facto, sabermos quais são os elementos químicos ou moléculas presentes no corpo humano, não retira poesia, ou mistério ou a possibilidade do transcendente às nossas vidas. Outra evocação a que este texto me conduziu foi a de Sylvia Plath, a qual, depois do sofrimento psíquico que lhe causou a física, fez todos os possíveis para evitar estudar química. Para Sylvia, palavras bonitas como ouro, cobalto e alumínio apareciam transformadas em abreviaturas horrorosas com números à frente. E, em vez de palavras belas como caroteno e xantofila, na física apareciam símbolos que pareciam escorpiões. Este é, poderíamos conjecturar, um efeito Sylvia Plath menos conhecido: o fechamento à beleza de alguns aspectos da ciência. Esse fechamento pode surgir das nossas personalidades, mas também dos maus encontros. Sylvia Plath talvez não tivesse odiado a física e a química se tivesse tido conhecido a escrita científica poética de António Piedade a propósito destas duas ciências.
No capítulo sobre as lágrimas é impossível não pensar no famoso poema de António Gedeão - água e cloreto de sódio, nada mais – Lágrima de Preta. Mas o texto vai muito mais além e remete-nos também para a bioquímica e a fisiologia e biologia molecular das lágrimas. É também Vitorino Nemésio e os seus poemas de Limite de Idade que nos piscam os olhos inundados de lágrimas de diferentes composições químicas, consoantes são de alegria ou tristeza, comunicando sentimentos com a linguagem da química. Muito para além da água e cloreto de sódio.
Os capítulos das viagens, realizadas em 2010 e 2011, na linha de comboio Nobel que tem três paragens: Fisiologia e Medicina, Física e Química são muito felizes e têm um grande potencial para serem, nas escolas ou em trabalho com jovens, estendidos a outros anos (anteriores ou posteriores) ou incluir novas paragens. No próprio capítulo de 2011, o combóio é perdido na paragem da Física, não chegando os viajantes à paragem da Química, onde os aguardavam os quasi-cristais.
Os nomes das personagens são também curiosos e em alguns casos relacionados com a narrativa. No capítulo do aniversário da dupla-hélice – sessenta anos – gostei da evocação de Frederick Sanger e Rosalind Franklin (cujo nome se relaciona com o da neta da história – Rosália). O nome de Jaime - o avô – liga-se a James Watson (pode ser-se um avô maravilhoso e ao mesmo tempo uma pessoa desagradável e com ideias pouco simpáticas) e Francisco - o outro neto – a Francis Crick. António Piedade não identifica o Henrique que observa sangue ao miscroscópio, mas confidencia-nos que o Rui de Bem-me-quer? é inspirado no conhecido neurocientista português com o mesmo nome próprio.
Finalmente, alguns comentários sobre a bela capa que, parecendo uma pintura, é na realidade uma imagem do campo magnético no plano galáctico obtida pela ESA, e para a paginação. António Piedade explicou-nos que optou por usar uma letra de corpo suficentemente grande que não obrigasse os mais velhos a usar óculos e usou um espaçamenento entre linhas que ajudasse os mais novos a ler com mais facilidade. O resultado em termos de paginação pode parecer menos elegante do que o que costumamos encontrar em edições muito bonitas mas menos legíveis, mas é muito eficaz. Parafraseando Michael Faraday: o que um objecto que foi feito para ser usado – neste caso um livro para ser lido - tem de mais belo é a sua utilidade e eficácia.
Em suma, há muitas boas razões para ler e oferecer neste Natal Diálogos com Ciência - veja-se também as que refere João Lourenço Monteiro. Quem estiver interessado num exemplar envie um email para apiedade@ci.uc.pt.
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