"- Observe o mundo de hoje. Está claramente partilhado em dois. De um lado, as sociedades de população estável, cada vez mais ricas, cada vez mais democráticas, com avanços técnicos quase quotidianos, uma experiência de vida que não cessa de aumentar, uma verdadeira idade de ouro e de paz, de liberdade de prosperidade, de progresso sem precedentes na História. De outro, populações cada vez mais numerosas, mas que empobrecem incessantemente, metrópoles tentaculares que têm de ser alimentadas por barco, Estados que recaem um após outro no caos (...) Há efectivamente duas humanidades, entre as quais o fosso se tornou intransponível. Se, de súbito, a providência nos enviasse uma solução, quem se queixaria disso? Queixar-se-iam os dirigentes do Terceiro Mundo que têm de alimentar incessantemente novas bocas, e que vêem os tímidos progressos progressos da produção aniquilados, varridos, afogados sob a inundação demográfica? E nós, os privilegiados, cada vez mais minoritários, não desejamos que os nossos congéneres do Sul sejam um pouco mais prósperos e um pouco menos numerosos? Quem se queixaria, diga-me, se fosse encontrada uma solução?
Clarence não via, efectivamente, por enquanto, quem podia de facto queixar-se. A argumentação de Pradent pareceu-lhe, de momento, de uma lógica esmagadora. Então procurou, por um são reflexo, trazer de novo o seu interlocutor para um terreno onde se sentia em melhor posição para lhe fazer frente
- O que o senhor diz impressiona-me, confesso francamente, e vou reflectir nisso profundamente (...) o senhor pôs o dedo num problema fundamental do nosso tempo. E precisamente por ser fundamental seria normal que o nosso jornal falasse dele. E que lhe consagrasse bem mais espaço do que eu imaginava ao entrar no seu gabinete."
Amin Maalouf, 1992, 79-80.
Há alguns meses, o país foi sensibilizado com dados estatísticos confiáveis que mostravam uma diminuição da população portuguesa, com tendência para se acentuar. Durante uma ou duas semanas, o assunto polarizou muitas atenções; em notícias e debates de ocasião surgiu a exigência de intervenção do governo português, que teria de ser rápida e eficaz de modo que, a curto prazo, impedisse o agravamento da situação e, a longo prazo, a invertesse.
Não ouvi outro argumento que não fosse o da economia: exigia-se ao Estado que, em nome da economia - claro está, mais favorável a uns do que a outros -, tomasse medidas que conduzissem à procriação.
Veio à conversa o (bom) exemplo de certas autarquias que já faziam isso com sucesso, pelo que o Estado poderia, a uma outra escala, mais ambiciosa, seguir-lhe o exemplo.
Não me apercebi de qualquer dúvida sobre o facto de se estar a falar de Pessoas e nem, sequer, da legitimidade do poder político - estatal ou autárquico - intervir numa questão tão delicada como é a decisão de se pai ou mãe. E estremeci, lembrando-me de alguns tristes casos em que esses poderes se mobilizaram e se mobilizam para tanto, com a anuência ou a solicitação das populações.
Enfim, o assunto parece ter sido esquecido, pelo menos, deixou de vir a público, até hoje ou ontem. Reavivou-a a iniciativa de uma empresa portuguesa atribuir um ordenado (mínimo) suplementar por filho às suas "colaboradoras". Entrevistada uma responsável pela empresa, justificava a medida pelo respeito que a maternidade deve merecer, e eu acreditei na sua sensibilidade; entrevistada uma jovem mãe, dizia que esse dinheiro lhe permitiria comprar vacinas que não estão incluídas no plano nacional de vacinação, e eu acreditei na sua necessidade; notei a inocência reprodutiva das notícias, e eu acreditei nessa inocência.
Ter acreditado em tudo isso, levou-me, mais uma vez, a estremecer: este consenso que se apresenta tão candidamente superficial mas, em simultâneo, tão trespassado de razões que não se trazem (ou não se querem trazer) a lume, só pode ser enganoso, não pode se aplicar a tal assunto, tão profundamente humano.
Referência: Maalouf, A. (1992). O primeiro século depois de Beatriz. Lisboa: Difel.
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