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Imagem recolhida aqui. |
Passou recentemente na
RTP Memória uma adaptação ao cinema do romance
O Velho e o Mar, que Ernest Hemingway escreveu em Cuba. O romance foi publicado em 1952 e o filme, realizado por John Sturges com Spencer Tracy no principal papel, apresentado em 1958. Entre estas duas datas - 1956 -, Jorge de Sena traduziu a obra para português e escreveu o prefácio que se pode ler abaixo:
Quando a decisão de reeditar-se esta obra admirável me apresentou a oportunidade de ser eu desta vez a traduzi-la,
com alegria aceitei esse trabalho, que o é, porquanto traduzir Hemingway tem sido um dos meus gostos e uma das
minhas honras de tradutor. E em particular este pequeno romance passa por ser uma obra-prima da literatura
contemporânea e talvez que o tempo o ponha entre as obras primas da literatura universal.
Pode dizer-se que, em toda a
parte, e independentemente de felizes ou infelizes traduções, público e crítica receberam com entusiasmo este
livro. Não é, no entanto, uma obra extensa, de acção complexa, de variado e movimentado ambiente. É, antes, um
breve poema em prosa, uma epopeia de simples trama,singelamente narrada. Mas é, por outro lado, muito mais do
que isso: um breviário nobilíssimo da dignidade humana, escrito com a mais requintada das artes. Poucas vezes, no nosso tempo, terá sido concebida e realizada uma obra tão pura, em que a natureza e a humanidade sejam, frente a frente, tão verdade. Com efeito, a intensidade e a precisão do descrever e do caracterizar, qualidades que, com uma extrema e no entanto subtilmente doseada concisão, colocaram
Hemingway entre os grandes escritores - prosadores - da nossa época, atingem nesta pequena obra um nível, um poder
de visualização, uma emoção artística, uma vibração humana, que, em plano igual, a literatura quase só terá atingido na poesia épica clássica como em certas páginas de romance do século passado. O que mais irmana tudo isso à prodigiosa vivência da natureza, a um contacto com esta entre íntimo e
respeitosamente distante, tão peculiar às grandes epopeias,
é precisamente um conhecimento profundo, de todas as horas,
de todos os momentos, dir-se-ia que da mínima tonalidade da luz, como do mais comum gesto de uma espécie animal,
conhecimento que na literatura contemporânea só Hemingway
possuirá tão despreconceituosamente
O mar e a sua fauna vivem esplendorosamente nestas páginas de O Velho e o Mar. Mas vivem sem a mínima poetização
panteísta, sem a mínima deliquescência antropomórfica.
Vivem. São. E a luta titânica do velho pescador com o seu
peixe imenso não é sequer titânica senão pela naturalidade
da mútua aceitação: é uma luta pela vida, lutada em plena
dignidade natural. Nada há de sobre-humano nela, que não
seja o facto admirável de o homem ser capaz de lutar e de
sobreviver para além do que parece ser o legítimo limite das
suas forças.
Muito se tem escrito - e é fácil - sobre o pessimismo de
Hemingway. O que sobre o pessimismo de uma tão perfeita
narrativa exemplar de que, como o velho pescador pensa, "um
homem pode ser destruído, mas não derrotado", se tenha
escrito efectivamente, faz-me lembrar o que paralelamente é
hábito escrever sobre o cepticismo. Uma vez, li um
comentário a um filósofo medieval, que foi para mim, nestes
pontos, extremamente iluminante. Do tal filósofo se dizia
que era céptico para ter a certeza daquilo em que podia
acreditar. Algo de semelhante se passa com o pessimismo de
Hemingway, independentemente do que nele participa do
ambiente intelectual de após a Primeira Grande Guerra e de
certas atitudes neste ambiente peculiares aos chamados
"expatriados" norte-americanos, de que Hemingway tem sido,
ou foi, expoente notório. Esse pessimismo reflecte apenas
uma ciência muito certa dos limites humanos, colhida na
experiência e na aventura por um homem nado e criado para
tal.
É típica de Hemingway - e há nesta obra um episódio
importante, apesar de na aparência meramente episódico - a
sua confiança no conhecimento que vitalmente se adquire,
aliada a uma desconfiança daquele que uma exterior educação
possa dar. O episódio é o do passarito que vem pousar na
linha de pesca, e ao qual o velho fala carinhosamente por
achá-lo jovem e inerme. Mas, além de que o pássaro não
entendia as suas palavras,
não valia a pena explicar-lhe quem eram os falcões que o
esperariam junto à costa, porque o pássaro não tardaria em
aprender por si quem eles eram. Este episódio é simbólico -
simbólico de um pessimismo quanto ao que não seja
directamente experimentado, embora uma criatura possa, por
solidariedade, ser informada, quando a comunicação é
possível.
Simbólica é igualmente a total solidão do velho
entregue a si próprio e à sua experiência de pescador, a
contas com o seu poderoso peixe e com os tubarões de que,
depois de morto o peixe, ele o defende. É extremamente
comovente, de uma límpida grandeza de romanceiro ou velha
saga quanto se passa entre o velho e o peixe. E as
apóstrofes que o velho dirige ao seu contendor, a
consciência de um respeito e de uma dignidade mútuas à face
nua das águas, são de uma pungência e de uma majestade, que
só têm contrapartida nos diálogos com o rapaz, em que a
dignidade humana é respeitada até à última miséria.
Daí o
contraste terrível do final, com a antítese entre a
ignorância pretensiosa dos "turistas" e a cena do rapaz
velando o velho, possivelmente moribundo, que sonha com os
leões, esses leões que são, em matéria de sonho, tudo o que
lhe resta da vida.
Ante uma obra como esta - da mais alta qualidade
artística e da mais nobre categoria ética - uma obra que
nos eleva à contemplação da dignidade do homem e do mundo em
que é um ser pensante, através da mais avassaladora
singeleza: devemos curvar-nos gratamente e fazer votos por
que, numa tradução que procurei fosse escrupulosa e fiel,
pouco se tenha perdido de tão pura obra-prima, do seu poder
incantatório, da sua frescura narrativa.
Lisboa, 1956
Jorge De Sena
Esse livro começa assim:
Era um velho que pescava sozinho num esquife na Corrente
do Golfo, e saíra havia já por oitenta e quatro dias sem
apanhar um peixe. Nos primeiros quarenta dias um rapaz fora
com ele.
Mas, após quarenta dias sem um peixe, os pais do rapaz
disseram a este que o velho estava definitivamente e
declaradamente *salao*, o que é
a pior forma de azar, e o rapaz fora por ordem deles para
outro barco que na primeira semana logo apanhou três belos
peixes. Fazia tristeza ao rapaz ver todos os dias o velho
voltar com o esquife vazio e sempre descia a ajudá-lo a
trazer as linhas arrumadas ou o croque e o arpão e a vela
enrolada no mastro. A vela estava remendada com quatro
velhos sacos de farinha e, assim ferrada, parecia o
estandarte da perpétua derrota.
O velho era magro e seco, com profundas rugas na parte de
trás do pescoço. As manchas castanhas do benigno cancro da
pele que o sol provoca ao reflectir-se no mar dos trópicos
viam-se-lhe no rosto. As manchas iam pelos lados da cara
abaixo, e as mãos dele tinham as cicatrizes profundamente
sulcadas, que o manejo das linhas com peixe graúdo dá. Mas
nenhuma destas cicatrizes era recente. Eram antigas como
erosões num deserto sem peixes.
Tudo nele e dele era velho, menos os olhos, que eram da
cor do mar e alegres e não vencidos.
E, pode continuar a ser lido
aqui.
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