sábado, 17 de outubro de 2015

Mitos pedagógicos

Texto de Solange Amorim e Amato, professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, que muito agradecemos.

Mitos na área de educação vêm sendo discutidos por alguns pesquisadores.

Catherine Cornbleth, por exemplo, discute a existência e a persistência de tais mitos e, a título de exemplo, apresenta três mitos vigentes ao final dos anos 80 (The Persistence of Myth in Teacher Education and Teaching, em T. S. Popkewitz, editor do livro intitulado Critical Studies in Teacher Education. Its Folklore, Theory and Practice, Editora Falmer, 1987).

Um deles diz respeito às habilidades de pensamento. De acordo com esse mito, pensar é um processo composto de um número discreto de habilidades cognitivas, e essas habilidades são genéricas e, portanto, independentes do conteúdo a ser aprendido.

Alguns mitos na educação brasileira são apresentados na reportagem intitulada “Com a Palavra, o Professor” da revista Veja de 5 de abril de 2006 e no livro citado nessa reportagem “Professor Refém” (Editora Record, 2006). O livro é um relatório de uma pesquisa feita pela educadora Tania Zagury com professores da rede pública e particular.

Concordo com o que foi escrito por Tania Zagury, principalmente no que diz respeito aos problemas decorrentes da implementação de reformas sem antes se fazer uma avaliação criteriosa de seus efeitos em pequenos grupos de estudo piloto. Inovar é preciso, porém avaliar o potencial impacto de inovações também é preciso.

Boa parte das reformas propostas no Brasil foi copiada de outros países.

Conheço muitas propostas que, embora sejam atualmente apresentadas aos professores como inovações, foram assunto de artigos publicados em língua inglesa há cerca de quatro décadas.

Antes de serem copiadas e implementadas em nosso país, os educadores e administradores deveriam avaliar os efeitos a longo prazo (efeitos longitudinais) dessas reformas nos países em que foram originalmente criadas e implementadas.

A promoção [passagem] automática [de ano de escolaridade] é uma delas. Os poucos países que conseguiram adotar a medida com sucesso, em sua maioria, implementaram primeiramente um sério programa de recuperação paralela. Assim que um aluno apresenta uma dificuldade no conteúdo sendo ensinado, ele é imediatamente colocado num esquema de reforço em um turno oposto àquele em que freqüenta as aulas regulares. Por meio da recuperação paralela, os alunos têm seu direito de aprenderem os conhecimentos necessários para cursarem a série subseqüente.

Um outro grande problema na área de educação advém das diferentes formas de se interpretarem os dados de uma certa pesquisa. Segundo a mesma reportagem, “a pontuação do Sistema Nacional da Educação Básica (Saeb) de 2003 mostra, efetivamente, que os alunos que já sofreram uma reprovação têm pior desempenho (146 pontos) do que aqueles que nunca foram reprovados (180 pontos)” (página 113).

Achei curiosa a relação de causa-efeito entre a reprovação (variável 1) e os resultados do Saeb (variável 2). É perfeitamente possível imaginar, neste caso, uma terceira variável que denominaria de “alunos com dificuldades de aprendizagem em certos conteúdos”. Os alunos com dificuldades nos conteúdos avaliados pelo Saeb são provavelmente os que obtiveram maior número de reprovações na escola. Portanto, essa terceira variável, e não os “alunos que já sofreram uma reprovação”, poderia ser uma das causa do “pior desempenho no Saeb”.

Há alguns anos venho apontando para meus alunos do curso de pedagogia, e para professores em palestras e oficinas que ofereço na rede pública e particular de ensino, as propostas pedagógicas que considero que não funcionam na prática. Eles parecem confusos, pois ouvem outros educadores e lêem artigos e livros de outros autores que apresentam justamente o oposto. Normalmente esses autores só comentam os pontos positivos dessas propostas. Nada é falado sobre os pontos negativos. 

Devo dizer que os pontos positivos são normalmente muito atraentes e convincentes. Mesmo assim, muitas das propostas denominadas inovadoras simplesmente não são viáveis nas salas de aula brasileiras, e nem em salas de aula de outros países.

Um mito central: a alfabetização em língua materna

Apesar de ser professora de matemática, vou me deter a propostas de alfabetização em língua materna, uma vez que a discussão está mais fervorosa depois que o MEC decidiu recentemente reavaliar essas propostas. Sei que a adoção do método de alfabetização denominado global, por exclusão de outros métodos como o silábico e fonético, foi uma proposta que falhou em países desenvolvidos como a Inglaterra. Não existe nada de errado em utilizar textos inteiros para estimular a alfabetização crianças, jovens e adultos, porém o método global foi divulgado por alguns como sendo incompatível com a quebra das palavras em sílabas (como no método silábico) e/ou em sons (como no método fonético).

Alunos ingleses e americanos, com quem este método foi usado, estavam chegando aos 12 anos de idade sem saber ler e escrever. A psicóloga cognitiva Diana McGuinness abordou esse problema em seu livro “Por que as crianças não conseguem ler e o que podemos fazer sobre o assunto” (Why Children Can’t Read and What we Can do about it, Editora Penguin, 1998).

No Brasil, vários foram os cursos oferecidos aos professores pregando as vantagens do método global e criticando os métodos silábico e fonético. Essas críticas foram expressas em publicações. Um exemplo lido por muitos professores é “Atualmente se percebe que o processo de ensino baseado na silabação é desnecessário e lento” (página 7 da Revista Nova Escola, Edição Especial, Parâmetros Curriculares Nacionais Fáceis de Entender, de 1ª a 4ª série).

Em 2006, o jornal inglês Times em seu suplemento sobre educação (Times Educational Supplement), após vários artigos sobre a “guerra dos métodos de alfabetização”, publicou uma matéria (C-A-T Spells Compulsion, página 16 da seção News Reading de 24 de marco de 2006) informava que as escolas primárias iriam ser obrigadas por lei a ensinar crianças a ler utilizando o método denominado fonético sintético.

Esse método havia sido menosprezado em artigos publicados por educadores ingleses, e excluído dos planos de aula de muitos professores que foram convencidos de que ele não seria bom para o aluno aprender a ler e escrever.

As propostas pedagógicas ditas não estruturadas, não-diretivas, ou centradas nos alunos

Lisa Delpit, em seu livro “Os filhos dos outros: conflito cultural na sala de aula” (Other People’s Children: Cultural Conflict in the Classroom, Editora The New Press, 1995), sugere que os métodos não estruturados têm prejudicado os alunos negros dos Estados Unidos da América. Charles J. Sykes, respeitado jornalista especializado em assuntos educacionais, é autor de vários livros criticando as reformas educacionais feitas nesse país como “Embrrecendo nossas crianças: porque as crianças americanas têm muita auto-estima, mas não conseguem ler, escrever ou adicionar” (Dumbing Down our Kids: Why American Children Feel Good about Themselves but Can’t Read, Write, or Add, Editora St. Martin’s Griffin, 1996).

Similarmente, a filósofa Christina H. Sommmers, autora do livro “A guerra contra os meninos: como o feminismo pouco sensato está prejudicando nossos jovens do sexo masculino” (The War Against Boys: How misguided feminism Is Harming our Young Men, Editora Simon & Schuster, 2000), responsabiliza esses métodos pelos problemas recentes de baixo desempenho escolar apresentados pelos alunos do sexo masculino nos Estados Unidos e na Inglaterra.

No Brasil, Aparecida Santos, autora do livro “Desigualdade Social e Dualidade Escolar” (Editora Vozes, 2000), afirma que não há base científica (p. 67) para as propostas pedagógicas não-diretivas que valorizam mais os aspectos afetivos da aprendizagem e desvalorizam os conteúdos. Para ela, os aspectos cognitivos e afetivos da aprendizagem são complementares. Outro livro sobre o assunto é “Construtivismo: Apontando Falsas Verdades” (Annamaria Píffero Rangel, Editora Mediação, 2002).

Alguns educadores, defensores dos métodos supostamente inovadores, responsabilizam a falta de preparo dos professores pela falha desses métodos. Somos realmente professores reféns, culpados até pelas falhas de métodos que não funcionam.

Considero minha formação adequada para julgar criteriosamente a eficácia de métodos de ensino.

Tenho licenciatura em matemática, e mestrado e doutorado em educação por universidades de renome. Tenho estudado os efeitos positivos e negativos do que tem sido proposto como inovação pedagógica. Tenho também tentado por em prática várias das idéias que ouvi e li mas nem sempre com sucesso em minhas empreitadas.

Minha última tentativa, há cerca de 10 anos, na área de avaliação foi utilizar o portfolio dos alunos para avaliar minhas turmas de Didática da Matemática no curso de pedagogia. Devo adiantar que foi um fracasso. Carreguei para a minha sala cerca de 90 portfolios (pasta arquivo com os trabalhos, anotações feitas em sala de aulas e reflexões dos alunos de 2 turmas). Demorei cerca de quatro horas para ler os cinco primeiros e elaborar os critérios iniciais de avaliação. Decidi então refletir e fazer uma estimativa do que ainda me faltava fazer, e desisti de prosseguir com esse método. Pude perceber a imensidão do trabalho que me aguardava. Notei o enorme tempo que seria necessário para fazer uma análise que pudesse ser formalizada e apresentada para fins de avaliação. Sem uma análise criteriosa eu não poderia justificar as menções atribuídas ao desempenho dos meus alunos em futuros pedidos de revisão de menção.

Para dispor do tempo de que necessitava para essa análise, eu teria de abdicar de minhas outras tarefas de professora universitária, como preparar aulas e ler novas referências sobre os conteúdos que ensino. Eu me vi na posição de ter que escolher entre dedicar meu tempo avaliando os alunos por meio de portfolios ou ensinando. Optei por ensinar!

A outra possibilidade que restava não me agradou do ponto de vista ético. Eu poderia atribuir a nota máxima (menção SS) para todos os meus alunos sem ter lido os portfolios. Com isso eu evitaria gastos exagerados de tempo e reclamações. Todos ficariam felizes e tudo acabaria em pizza! Evitaria quaisquer transtornos que pudessem decorrer dos usuais pedidos de revisão de nota pela falta de adoção de critérios claros de avaliação.

Posteriormente, eu observei que a literatura já possui alguns trabalhos de pesquisa relatando o enorme tempo necessário para a análise criteriosa de portfolios. A literatura também menciona a baixa confiabilidade apresentada por essa forma de avaliação, isto é, dois professores podem avaliar de maneira totalmente diferente um mesmo portfolio. Retomei as minhas antigas e confiáveis formas de avaliação: provas longas, conceituais e abrangentes. Elas também consomem bastante tempo porém bem menos do que a análise de portfolios.

Devo acrescentar que sempre faço em minhas provas uma análise dos erros cometidos pelos alunos, e utilizo essa análise nas aulas seguintes, na tentativa de sanar as dificuldades dos meus alunos. Com isso, é possível verificar quais conceitos precisam ser revisados, e quais posso considerar como bem assimilados. Dessa forma, tenho tido bastante sucesso em melhorar o rendimento dos alunos que apresentaram dificuldades e que participaram das minhas aulas. Só não consigo fazer milagres pelos faltosos.

As notas baixas são quase sempre o reflexo da pouca participação de alguns alunos, por melhor que tenha sido a minha formação, ainda não aprendi a ensinar por osmose. Os alunos também têm que fazer sua parte. Tudo o que foi dito pode parecer muito óbvio para a maioria dos professores, principalmente aqueles que possuem várias turmas de 40 alunos ou mais, mas parece ser ignorado por alguns educadores.

A existência de várias “teorias educacionais enganosas”, que em vez de potenciar tendem a retardar a aprendizagem,

já havia sido apontada no final dos anos 60 por Irving Adler no livro “Matemática e desenvolvimento mental” (Mathematics and Mental Growth, Editora Dennis Hobson, 1968). Nunca aceitei ser refém dessas teorias. Após três década  de trabalho como professora, sei facilmente distinguir que propostas irão potenciar o aprendizado, e quais o vão retardar.

Contudo, devo dizer que a rejeição de certas teorias tem resultado em algumas dores de cabeça na minha vida acadêmica. Isso me faz compreender por que alguns alunos de pós-graduação que são professores experientes decidem adotar em suas pesquisas algumas teorias enganosas. Só peço que, depois da conclusão de seus cursos de mestrado e doutorado, reflictam sobre os efeitos longitudinais dessas teorias. A leitura das referências anteriormente citadas é um bom começo.

Solange Amorim e Amato

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