domingo, 8 de março de 2015

Mulheres que ultrapassaram as convenções (tradicionais e contemporâneas) e se afirmaram pelo seu génio


Alexander Fleming descobriu mesmo a penicilina? A resposta é algo complicada... Antes de Fleming já muitos outros haviam notado a acção dos fungos sobre as bactérias, mas Fleming foi o primeiro a pensar que isso poderia estar na base de um medicamento. 

Fleming foi visionário, mas a resposta é ainda mais complicada pois este não conseguiu purificar a penicilina e acabou por desistir. Esse trabalho foi realizado cerca de dez anos depois por Ernst Chain com a colaboração de Howard Flory, tendo Fleming reaparecido a tempo de reclamar a sua ideia. Embora no imaginário popular quase só Fleming seja lembrado, o comité Nobel não esqueceu Chain e Flory e os três receberam o prémio Nobel em 1945.

A história da penicilina não estava, no entanto, concluída em 1941, altura em que se fizeram os primeiros ensaios clínicos. Há pelo menos duas pessoas cujo trabalho foi fundamental para o sucesso da penicilina. Uma delas foi Norman George Heatley que realizou uma parte do trabalho técnico com Chain e Flory e que contribuiu também para o desenvolvimentos dos primeiros processos para a obtenção de penicilina em larga escala. A outra foi Margaret Hutchinson Rousseau, uma das primeiras engenheiras químicas americanas, a qual desenvolveu o processo industrial que permitiu que a penicilina estivesse disponível em 1944 para tratar mais de quarenta mil soldados durante a segunda guerra mundial.

No dia da mulher poderá parecer normal que nos lembremos de Margaret Hutchinson Rousseau, mas não caiamos em paternalismo. Margaret Margaret Rousseau não só não é o único cientista envolvido na descoberta da penicilina que parece ter sido esquecida como vimos, como não deve ser lembrada apenas por ser uma mulher pioneira da engenharia química. De facto, Margaret esteve envolvida em muitos outros projectos com grande impacto como o desenvolvimento de combustíveis para aviões e merece ser recordada por isso.

Mas a história da penicilina não fica por aqui. Cerca de 1944, uma outra mulher, Dorothy Crowfoot Hodgkin, identificou a estrutura molecular desta substância, abrindo o caminho para a descoberta e desenvolvimento de derivados desta molécula. Em 1964, pela identificação dessa estrutura e da de outras moléculas de origem biológica, como a vitamina B12, Dorothy Hodkin recebeu o prémio Nobel.

Dorothy Hodgkin doutorou-se em Cambridge sob a orientação de John Desmond Bernal e foi, tal como este, toda a vida uma pessoa de esquerda. Margaret Thatcher, embora sendo de direita, nunca deixou de admirar Dorothy, e mandou colocar o seu retrato em Downing Street. Segundo referiu Jorge Calado numa palestra, as famílias de Margaret e Dorothy, separadas pelas maiores diferenças políticas, eram vizinhas e mantinham boas relações pessoais. É de notar que, Dorothy só passou a usar o nome do marido, Hodgkin, em publicações a partir de 1949 depois de instigada por colegas para fazê-lo. O marido, Thomas Hodgkin, foi um historiador de esquerda e activista de temas africanos, que ocasionalmente teve também posições em universidades, mas nunca atingiu o nível académico e a projecção de Dorothy.

O conhecimento da estrutura molecular das moléculas com actividade biológica, assim como dos seus alvos terapêuticos, é actualmente de grande importância para o desenvolvimento racional de novos fármacos. Uma das pioneiras no desenvolvimento racional de fármacos foi Gertrude Elion que ganhou o prémio Nobel em 1988. Pode parecer incrível, mas Gestrude Elion está ligada ao desenvolvimento de pelo menos sete medicamentos importantes para o tratamento de doenças como a leucemia, meningite, septicemia, gota, malária e herpes (o conhecido aciclovir) e ainda de imunossupressores.

Tudo isto sem ter concluído o doutoramento, pois não lhe foi permitido realizá-lo a tempo parcial. Mas, mais uma vez talvez seja precipitado dizer que tal resultou de discriminação. Também Russell Marker, por exemplo, o químico visionário que está na origem da primeira síntese prática da progesterona, a qual abriu o caminho ao desenvolvimento dos contraceptivos orais, nunca completou o doutoramento porque não tinha tempo para perder tempo com ele. Gertrude Elion e Russell Marker foram, no entanto, reconhecidos com doutoramentos Honoris Causa e e história da química medicinal não os esquece.

Actualmente as estruturas 3D das proteínas são representadas com diagramas muito elegantes, que realçam os enrolamentos alfa e as folhas beta destas moléculas, designados ribbon diagrams (diagramas de fitas). Esses diagramas foram desenvolvidos  por Jane Shelby Richardson em 1980. Também Jane Richardson nunca realizou um doutoramento e por isso foi-se mantendo em posições mais ou menos invisíveis, acompanhando o marido. No entanto, recebeu prémios importantes e o reconhecimento da comunidade científica. Foi eleita em 1991 para a Academia das Ciências americana e em 2006 para o Instituto de Medicina, tendo acabado por obter uma posição permanente como professora de bioquímica por mérito próprio. Jane mantém actualmente um grupo de investigação em conjunto com o seu marido, David Richardson.

Esbocei algumas histórias da evolução da ciência envolvendo mulheres fortes e com percursos invulgares ligados à química. Poderíamos associar a estas mulheres algum tipo de discriminação: esquecimento pela história, dificuldade para obter o doutoramento ou posição universitária, pressão para o uso do nome do marido, subalternidade em relação a este, ou outras. Não me parece, no entanto, que as suas histórias sejam assim tão simples e caibam em construções estereotipadas. Tratam-se de mulheres que ultrapassaram as convenções tanto tradicionais como contemporâneas e que se afirmaram pela sua diferença e génio. Lembrei-me de escrever hoje sobre elas por razões óbvias, mas admiro-as sempre que as recordo.

(Fotografias da Wikipedia que foi consultada também acerca de datas e alguns dos factos referidos.

1 comentário:

Cláudia da Silva Tomazi disse...

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