Meu artigo no Público de hoje:
Entra-se, passando da clara luz do dia para a espessa penumbra interior, e o primeiro olhar é de um deslumbramento incrédulo. O dourado está por todo o lado, o brilho procurando vencer o escuro. A vista habitua-se rapidamente à escassez de luz e perde-se no interior da Biblioteca, não sabendo bem para onde olhar, tal é a profusão da folha dourada, que, nos seus primórdios setecentistas, deveria ofuscar. De facto, entrar na Biblioteca Joanina é como entrar numa igreja barroca, com a diferença de que, neste templo secular recheado de livros antigos, o rei ocupa o lugar de Deus. Alongando-se na profundidade, em busca de um hipotético altar, a vista acaba por se fixar na mira mais longínqua e encontra o retrato de D. João V, o monarca que mandou executar a obra. Será preciso que o dono da vista se aproxime e ademais saiba latim para que consiga ler e compreender a inscrição que jaz aos reais pés. Pode-se traduzir por:
“Neste régio retrato, como em espelho
Vedes quanto este espaço compreende.
Tudo o que de majestoso aqui se ostenta,
Feito é de João Quinto. Eterna seja,
Como o nome do príncipe, a obra sua.”
O visitante começa agora a perceber a intenção da cobertura em ouro. A Biblioteca devia ser o espelho de um rei verdadeiramente poderoso, senhor de um vasto império cuja parcela mais rica era o Brasil. O ouro para cobrir a biblioteca tinha vindo, em boa parte, dessa colónia, onde, na década final do século XVII, os bandeirantes tinham descobertas minas auríferas na região que ficou conhecida por Minas Gerais. Era norma da coroa apoderar-se de “um quinto” do ouro, uma porção assaz significativa embora não exagerada para os padrões fiscais de hoje. O Rei-Sol português deveria brilhar mais graças à cobertura da sua Biblioteca e o seu brilho deveria perdurar eternamente. O poder material do rei, fundado na descoberta e na conquista, foi, no Iluminismo, acrescentado pelo poder da sabedoria, não só a sabedoria ancestral dos clássicos e da Igreja mas também a sabedoria mais recente relativa a novos céus, terras e gentes, que os antepassados daquele rei tinham com denodo obtido.Todas essas formas de sabedoria estavam e estão contidas nos livros que enchem as estantes da Biblioteca.
O edifício, hoje monumento nacional muito visitado, chama-se Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra, em reconhecimento a D. João V (este quinto não é do ouro, mas sim da sucessão monárquica), que, em 1716, há quase 300 anos, deferiu o pedido do reitor, que reclamava um novo espaço para arrumar os livros. Parte dos volumes tinha vindo da biblioteca universitária que, conforme consta de uma acta que chegou até nós, já existia numa casa em Alfama, Lisboa, em 1513, há exactamente 500 anos. O espólio era, porém, tão avultado que não cabia na exígua sala, ao lado da actual Sala dos Capelos, no Paço Real, o palácio no topo da colina que, por ordem de D. João III, tinha passado em 1537 a albergar a mais antiga universidade portuguesa, desde há pouco Património Mundial da Humanidade. O rei Magnânimo não hesitou em conceder, fazendo jus ao cognome com que a história o haveria de honrar, uma nova e ampla casa para os livros, que ficou conhecida por Casa da Livraria antes de surgir o nome de Biblioteca Joanina. Se D. João III tinha cedido o seu Paço para morada da sabedoria, D. João V acrescentou-lhe uma valiosíssima ampliação que exprimia a continuada protecção da coroa a uma instituição que continuava a cumprir o seu mister de formar quem a demandava. Mais tarde o Estado Novo haveria de acrescentar um edifício maior, que ostenta o dístico de Biblioteca Geral, para onde foi transferida a maioria dos livros da Joanina. Hoje, o edifício novo já não é, porém, novo e está a rebentar pelas costuras, à espera que o Estado Democrático, que tem sido em geral governado por gente inculta, o substitua por outro, maior, mais moderno e funcional. Por isso clamam os cerca de dois milhões de volumes.
No quadro das comemorações dos 500 anos da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, a mais antiga biblioteca pública portuguesa, o PÚBLICO distribui a partir de 8 de Outubro e ao longo de 16 semanas, um conjunto de primeiras 16 edições facsimiladas da Joanina, a começar pela primeira edição de Os Lusíadas (1572), de Luís de Camões, que poderá ter andado por Coimbra, e a continuar com a História do Futuro (1718), do Padre António Vieira, que pregou em Coimbra em 1663, e Mau Tempo no Canal (1944), de Vitorino Nemésio, que estudou em Coimbra. Num tempo de crise, os leitores poderão enriquecer-se ao levar para suas casas por um preço módico cópias fiéis de alguns tesouros de uma extraordinária biblioteca. Como está escrito na parede de uma biblioteca norte-americana: “As bibliotecas ajudar-te-ão mais numa época sem dinheiro do que o dinheiro te ajudará numa época sem bibliotecas”.
2 comentários:
Muito oportuno artigo.
Premiada a história deste que ousa brilhar o amanhã !
Deveras poucas palavras ao máximo esplendor o ' saber ' e assim basicamente surpreende a face decorada, o templo, vigor do conhecimento presente a centenária acolhida biblioteca - digo - carinhosa Biblioteca Joanina de dias longos e esclarecidas noites, donde suor de outra face ( a face de homens ) sábios e soberano estudo, ousa brilhar.
Enviar um comentário