“Camus não lutou somente contra a preguiça da inteligência (a sua obra é como a embriaguez da lucidez), como se opôs ainda à preguiça do coração” - Jean Grenier.
Pôr a tónica, falando de Camus, na “embriaguez da lucidez”,
tão finamente diagnosticada por Jean Grenier (como poderia não ser ele a
fazê-lo?), é a melhor homenagem que se pode prestar à reedição (revista e
acrescentada) do belo e lúcido livro de Marcello Duarte Mathias: A Felicidade em Albert Camus. É que este
livro do ensaísta português é bem um exemplo dessa lucidez, afinada por uma
aguda sensibilidade, que permeia, de uma ponta à outra, a obra e a vida do
autor de L’Étranger. Camus tem sido,
em Marcello Duarte Mathias, a devoção de uma vida. Não é difícil perceber
porquê: alguém dizia ao escritor Jean Claude Brisville que “ler Camus é ficar
com vontade de lhe apertar a mão.” E o próprio Sartre, ex-amigo enviesado e
cruel do autor de La Peste,
prestou-lhe, nos dias que se seguiram à morte deste, uma homenagem justa e
comovente: “Ele representava, neste século, e contra a História, o herdeiro
actual dessa longa linha de moralistas, cujas obras constituem o que há talvez
de mais original nas letras francesas. O seu humanismo obstinado, estricto e
puro, austero e sensual, deu combate incerto aos maciços e deformados
acontecimentos do dia. Mas, inversamente, pelo inesperado das suas recusas, ele
reafirmou, no coração do seu tempo, contra os maquiavélicos, contra o bezerro
de oiro do realismo, a existência do acto moral".
Camus, francês argelino, oriundo dos bairros pobres de Alger,
é hoje uma das glórias sem mácula das letras francesas do século XX. Além dele
e de Roger Martin du Gard (para cujas Obras Completas, o autor de Noces escreveu um admirável prefácio),
não sei se haverá muitos mais. Ao contrário de Sartre e de alguns outros
duvidosos maîtres-à-penser, Camus nunca pactuou com a opressão e o atropelo das
liberdades humanas, a pretexto de uma mítica felicidade-a-haver. As vítimas do
comunismo estalinista não eram mais justificáveis ou toleráveis do que os
mártires do fascismo italiano ou do nazismo alemão. Numa fórmula fulgurante
deste livro, onde brilha uma prosa descascada e clássica não indigna de Camus, Mathias
observa: “Para ele [Camus], não há escravos felizes e escravos infelizes e
nenhum carrasco merece indulgência, seja qual for a causa em nome da qual
decepa a cabeça.”
Embora tudo, na obra de Camus, seja dito de modo luminoso, embora
a sua sedutora prosa ática nunca nos embrulhe em opacidades e trapaças, o mundo
nela desvelado, ainda que íntegro, não é feito de uma ausência total de
componentes divergentes e até contraditórias. Numa resposta dada à pergunta
sobre “as minhas dez palavras preferidas”, Camus indica-nos a variedade das
suas “preferências”: “o mundo, a dor, a terra, a mãe, os homens, o deserto, a
honra, a miséria, o verão, o mar.” Este adorador do sol não foi também, afinal,
um verificador do absurdo? Palavras suas em L’Été:
“Com tanto sol na memória, como pude eu apostar na falta de sentido?”
Era a integridade que lhe não consentia mentir: O Mediterrâneo, diz ele nesse mesmo livro, “tem o seu trágico solar que não é o trágico das
brumas.” Mesmo a pobreza (sei do que ele fala) pode ser iluminada e, por aí,
tornada “viável”. Camus, sempre fiel à verdade, di-lo em palavras
insubstituíveis: “...A pobreza, em primeiro lugar, nunca foi uma desgraça para
mim: a luz derramava nela as suas riquezas. Mesmo as minhas revoltas foram por
ela iluminadas. Elas foram quase sempre, julgo poder dizê-lo sem fazer batota,
revoltas em prol de todos e para que a vida de todos seja construída na luz.”
São palavras que só o pobre – ou o que já o foi – está
“autorizado” a proferir, sem risco de manipulação criminosa: “O academismo da
direita ignora uma miséria que o academismo da esquerda utiliza. Mas, nos dois
casos, a miséria é reforçada” – eis Camus, no seu melhor, e em registo que lhe
garante o ódio eterno da direita e da esquerda...
Eugénio Lisboa
1 comentário:
Não se pode não gostar de Camus e da sua humana compreensão . entende sem retalhar e observa-se na sua obra, simultâneo à constatação do absurdo, um cuidado compreensivo, um quase amor que não condena e antes aceita tudo que pertence ao homem
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