Esta preocupação com o estupro
das palavras, com o uso calculado e mentiroso que se faz delas, dizendo uma
coisa, para querer dizer outra, tem afligido uma classe especial de gente: os
escritores. De Gaulle, que foi, por necessidade, e numa fase adiantada da sua
vida, um político, mas que foi sempre, e sobretudo, uma grande vocação de
escritor, notava: “Uma vez que um
político nunca acredita naquilo que diz, fica sempre muito surpreendido, quando
os outros acreditam nele.”
Há outra maneira, particularmente
irritante, de se praticar este “estupro”: é falar
na coisa, precisamente quando ela
está ausente (o político que fala de
rigor, no meio da bagunça; ou de honestidade, no centro do esbulho; ou de
coragem, quando arreia nos fracos e se encosta aos fortes e aos ricos).
Montherlant, com o fulgor assassino do seu
grande estilo, punha já na boca de um personagem da sua bela peça, La Reine Morte, isto: “É quando a própria coisa falta, que se deve
propiciar a palavra.” Quando Hitler falava de “paz”, queria,
invariavelmente, dizer “guerra”. A coisa, tornada sistemática – e, com
frequência, torna-se – leva à descredibilização dos políticos e da política e
ao sarcasmo incomplacente e perigosamente generalizador dos humoristas de
serviço (Will Rogers: “Se injectarmos
verdade na política, acabamos com a política”).
Outra forma de enganar com as
palavras é fazer, com elas, o que faz o nosso Ministro das Finanças: construir
um discurso circunvoluto, retorcido e infinitamente nebuloso, que tem, para
ele, a vantagem de calar, sem apelo, o adversário ou interpelador: é que este
nem sequer sabe se o que o ministro disse está certo ou errado – na realidade,
está além ou aquém da categoria de “certo” ou “errado”. Com efeito, as suas
explicações embrulham muito mais a dificuldade do que ajudam a esclarecê-la (“I
wishhecouldexplainhisexplanation”, dizia Byron, que era lord, mas era também
bruto). Neste caso, não se cala o adversário, com a força dos argumentos;
tira-se-lhe o pio, com a perplexidade em que o mergulha o arrazoado fúnebre. Em
Portugal, tem-se sempre muito medo de não achar “inteligente” o charabia pomposo e o seu tanto sinistro dos
tecnocratas de serviço. O estilo “profundote” intimida e, hélas!, faz que
deslumbra... O poeta inglês Wordsworth, de quem Fernando Pessoa traduziu um
poema, acusava os sonetos de Shakespeare (tu quoque!) de chafurdarem numa “elaborateobscurity”
, que pode muito bem ter-se tornado (sabe-se lá!) uma influência dominante no
discurso de não poucos literatos lusíadas e, seguramente, nas ejaculações do
nosso singular Ministro das Finanças. Aos que não pensam, raramente faltam as
palavras, dizia alguém não muito conhecido.
Seja como for, o que eu aqui hoje
gostaria de trazer, para iluminar um pouco melhor a irritação de Pacheco
Pereira, era um testemunho esclarecedor e pungente. Trata-se de uma carta
escrita, em 1937, no dia de Ano Novo, em Zurique, pelo escritor Thomas Mann, e
dirigida ao deão da Faculdade de Filosofia da Universidade de Bonn, que acabara
de retirar ao autor de A Morte em Veneza
o título de Doutor Honoris Causa, anteriormente atribuído. Thomas Mann, como se
sabe, abandonara a Alemanha logo a seguir à ascenção de Hitler ao poder, para
salvar a sua liberdade e a sua vida. A Universidade, cobardemente, alinhara com
os cães do poder.
Nessa carta, que é um monumento
admirável e imperecível, o autor de Tonio
Kröger diz, com clareza e veemência, que ainda pensou em permanecer na
Alemanha, calando-se: “Quando a Alemanha
caíu nas mãos deles [Hitler e apaniguados], eu queria calar-me: pelos grandes sacrifícios que tinha consentido,
julgava ter adquirido um direito ao silêncio, um direito que me permitisse
conservar o que tinha por mais caro: o contacto com os meus leitores da
Alemanha.” Apesar destas razões, que o puxavam
para ficar, Thomas Mann decidiu sair.
Porquê? A razão dá-a, nessa mesma carta e é digna de estudo e divulgação: “Eu não teria podido [aí] viver e trabalhar.
Teria sido, para mim, um verdadeiro envenenamento, se não tivesse podido, de
tempos a tempos, «lavar o meu coração», como dizem os antigos, se não tivesse podido
exprimir, sem reticências, o meu nojo por esses discursos miseráveis, que
ribombam pelo meu país, e pelos actos ainda mais miseráveis que nele se
cometem. Com ou sem razão, o meu nome está ligado, para o mundo, à noção de uma
Alemanha que ama e que honra. Vi-me, pois, na obrigação de denunciar
abertamente as mutilações selvagens que infligiram a essa Alemanha. E essa
obrigação perturbava todos os meus sonhos de artista, aos quais eu me teria tão
voluntariamente abandonado. Mas a essa obrigação, eu não podia subtrair-me,
porque me foi sempre permitido exprimir-me, libertar-me pela linguagem. A vida
não se acha, para mim, realizada, a não ser nessa constante criação da linguagem
que purifica a emoção e a conserva.” (O sublinhado é meu)
Eis o sentido profundo desta
carta: todo o escritor se exprime, isto é, se
liberta, pela linguagem. É ela que lhe dá as maiores razões de felicidade,
nesta terra. Assim sendo, o escritor contrai, pelo seu lado, uma obrigação: retribuir
esse dom imenso que lhe dá o uso da linguagem – a libertação, a expressão - ,
com a garantia solene de que nunca dará um mau uso – um uso perverso, mentiroso
–ao instrumento que lhe abriu as portas da felicidade. “A linguagem”, diz ainda Mann, nessa carta, “está carregada de um grande mistério. Somos responsáveis pela sua
pureza. E essa responsabilidade é simbólica; não é somente do domínio da arte,
é propriamente moral. É a responsabilidade humana na sua essência mesma;
compromete-nos com o nosso próprio povo, obrigando-nos a conservar pura a sua
imagem aos olhos da humanidade.” É
assim que pensa e sente um escritor
digno desse nome. A linguagem não é, para ele, algo que se manipule com
leviandade. Não é este, porém, quase nunca, o caso dos políticos. Julgo que o
fino Goethe estaria também a pensar neles, quando observou: “Quando uma ideia não comparece, pode sempre
achar-se uma palavra que a substitua.” Pior ainda : quando uma ideia é, de
momento, inconveniente, pode, em vez dela, dizer-se o contrário, com palavras
suficientemente fluidas para, num futuro mais ou menos próximo, se poder
desvelar, por actos, o sentido originalmente visado... Em quem estaria a pensar
Maurice Barrès, também escritor, como Thomas Mann, quando escreveu: “O político é um acrobata: mantém o seu
equilíbrio, dizendo o oposto daquilo que faz”? Não sei em quem estaria a
pensar, mas sei a quem pode aplicar-se o que disse, neste “reino cadaveroso” em
que me coube vir acabar os meus dias.
P. S. – Como gosto, às vezes, de
recordar os macedónios, essa gente “rude e apalhaçada”, que, segundo Plutarco,
teimava em chamar pá a uma pá!
Eugénio Lisboa
3 comentários:
Vá lá, te seria margem.
Um pouco mais resumido talvez não fosse má ideia....tempo é dinheiro! Como que se diz no mundo americanês.
Pouco há a notar quando tanto de comentário válido existe no texto. E acrescentar, desnecessita. Talvez assentir. Gostar de ler que ainda existe gente que respeita a palavra e se revolta contra um governo invasivo e incréu, desligado das lições da simbologia; e logo, criador de desumanidade.
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