Se não acrescentarmos algo de cultural e/ou de histórico às matérias curriculares da nossa responsabilidade, ficamos como os papagaios e os nossos alunos também. Maneira singela de dizer que, se nos limitarmos a debitar o manual em uso, estamos a amestrar os alunos a acertarem nas perguntas a afrontarem nos exames, mas não estamos a formar cidadãos.
Esclareço que limito estas linhas ao ensino da Geologia, embora colegas me digam que outro tanto se passa em outras áreas. Por outro lado, faço questão de tornar claro que estou, sobretudo, a visar o sistema
- em que, insensatamente, as sucessivas tutelas parecem estar mais interessadas nas estatísticas do que na qualidade do ensino;É, pois, neste quadro e na convicção de que os que ensinam (hoje são mais as professoras do que os professores) devem saber muito mais do que o estereotipado no deficiente manual de ensino, que aqui deixo um exemplo que poderá ser ideal mas, nem por isso, recusável.
- em que os programas oficiais amarram os professores, não lhes dando tempo para “divagações desnecessárias”;
- em que os professores vivem sobrecarregados em tarefas administrativas e outras de que deveriam estar rigorosamente libertos;
- em que muitos deles vivem longe das famílias ou perdem horas nos caminhos diários de ida e volta a casa e a contarem os tostões;
- numa sociedade que lhes retirou a dignidade e o respeito a que têm direito.
Suponhamos que temos de falar de calcários. Para além de sabermos qual a sua natureza, o seu significado como documentos indispensáveis para o conhecimento da história da Terra e o seu interesse como importantíssima matéria-prima, será interessante sabermos que a palavra radica no latim “calcariu”-, termo relativo a cal, que cal, também do latim, “calx”, traduz a ideia de pedra e, a partir daqui, podermos abrir portas a duas das mais importantes e úteis capacidades do ser humano – aprender e pensar.
Um parêntese para lembrar que, desde que haja apetência, a nossa capacidade para aprender é praticamente ilimitada. Cabe a quem ensina ter arte de criar essa apetência.
Neste texto, que exemplifica uma possibilidade de complementar a, matéria curricular com algo de cultural e/ou histórico que contribua para a formação dos alunos como cidadãos, destaco, em maiúsculas, as principais palavras do léxico português radicadas no acima referido étimo “calx”.
Comecemos pelo CÁLCIO, o elemento químico isolado pela primeira vez em 1808, pelo químico inglês Humphry Davy, que hoje sabemos ser o 5.º mais abundante na crosta terrestre, com 3,6% na escala ponderal, e que entra na composição do mineral CALCITE, já conhecido ao tempo de Plínio. o Velho (século I), que hoje sabemos ser um carbonato de cálcio (CaCO3) descrito, em 1836, pelo alemão Johann Carl Freiesleben, mineral essencial na constituição do CALCÁRIO.
Vulgarmente conhecido por pedra-de-cal, o calcário é a rocha sedimentar que, submetida a CALCINAÇÃO (decomposição térmica), produz CAL, o óxido de cálcio (CaO), substância sólida, branca e alcalina, vulgarmente referida por cal-viva.
Uma vez regado com água, o óxido de cálcio gera o respectivo hidróxido ((OH)2Ca), bem conhecido por cal-apagada que, em suspensão aquosa, dá a cal com que ainda se branqueiam as paredes nas aldeias e montes que caracterizam o Alentejo e o Algarve. Cal designa, ainda, a argamassa de cal-apagada que se usava antes da era do cimento. CALEIRA ou CAIEIRA (termo usado no Alentejo) é o forno de cal, CALEIRO ou CAIEIRO, o homem que a fabrica e/ou a vende, e CAIADOR, o que se serve da cal para CAIAR. Lá longe, nos mares recifais das Caraíbas, onde sabemos ter sido importante a presença dos portugueses (lembremos a muito provável naturalidade de Cristóvão Colombo na vila alentejana de Cuba), deu-se o nome de CAIOS (Caio Largo e Caio Coco) às pequenas ilhas cubanas, rasas e exclusivamente feitas de areia calcária bioclástica.
CALEIRA refere ainda o sulco ou rego inicialmente empedrado, tendo o nome sido generalizado, depois, ao mesmo tipo de aparato, ainda que feito com outros materiais. CALCIMETRIA é o procedimento químico destinado a quantificar o teor de cálcio, do seu óxido ou do seu carbonato, em rochas ou em terrenos, CALCÍMETRO, o aparelho que, no laboratório, é usado com esse fim, e CALCEMIA, o teor de cálcio ionizado no sangue.
Era com pedras, a servirem de lastro, que se CALAVAM os barcos quando, sem carga, se faziam ao mar. Com o mesmo étimo, dá-se o nome de CALADO à profundidade a que se encontra o ponto mais baixo do casco de uma embarcação, em relação à superfície da água onde se encontra mergulhada.
Com a mesma origem, CALÇADA é o revestimento de ruas e praças com pedras e CALCETEIRO, o artista que celebrizou no mundo a calçada portuguesa. Paralelamente, CALÇAR tanto é enfiar o pé no CALÇADO, como é meter um CALÇO por baixo daquilo que queremos que fique firme, e CALCAR o chão é dar-lhe a compactação da pedra. CALCANHAR e o respectivo osso, o CALCÂNEO, têm a mesma etimologia.
A terminar, a palavra CÁLCULO, do latim calculus (de calx (pedra) + sufixo diminutivo -ulus), que significa pedrinha, é o termo erudito para designar a pedra nas litíases biliar e renal e CALCULISTA, a pessoa que tudo calcula ou que não procede senão por interesse. Na Antiguidade, era com pedrinhas (cálculos) que se contava e se faziam contas, ou seja, se CALCULAVA, operação que hoje fazemos, por via electrónica, nas modernas CALCULADORAS.Na sequência desta exploração semântica, poderíamos dissertar, menos ou mais detalhadamente, sobre cada uma das palavras lembradas atrás, mas fixemo-nos, por exemplo, em CALCÁRIO e CALÇADA e, aqui, vale a pena começar por dizer que, no essencial, a “calçada portuguesa” consiste no calcetamento com pedras de calcário brancas e pretas (que, na realidade, são cinzentas), criando figurações plásticas de notada beleza.
Na origem, as pedras pretas eram de basalto, que há muito na região de Lisboa, tenho sido aqui intensamente explorado, num passado recente. São Sebastião da Pedreira deve o nome à pedreira de basalto que ali existiu.
Há, ainda, pedras de calcário de outras cores (avermelhadas e amareladas), mas apenas usadas em casos pontuais. No que se refere às referidas pedras, basta olhar para o chão de praças ou avenidas, ou navegar na “Net”, para vermos que umas não têm talhe uniformizado, ditas ao “malhete”, e que outras, nas calçadas mais aperfeiçoadas, foram aparelhadas ao “quadrado” ou “sextavadas”.
A “calçada portuguesa” surgiu em Lisboa, em 1842, com o calcetamento de parques, praças, passeios e outros espaços pedonais, com um simples motivo em zigue-zague (“ondas do mar largo”), a branco e preto, realizado por “grilhetas”, nome que, na época, se dava aos presidiários. A calçada portuguesa alastrou rapidamente por todo o país, pelo Brasil, pelas então colónias e pelo estrangeiro, numa expressão de arte muito nossa, tendo sido criada, em 1986, uma Escola de Calceteiros da Câmara Municipal de Lisboa.
Imagem encontrada aqui |
Como nota final, saiba-se que o Código QR, de múltiplas utilizações, à semelhança do já familiar Código de Barras, foi inventado no Japão em 1994.
Sugiro a visita aos “sites”, de que há muitos e bons no Google, alusivos à calçada portuguesa.
A. Galopim de Carvalho
2 comentários:
“Se não acrescentarmos algo de cultural e/ou de histórico às matérias curriculares da nossa responsabilidade, ficamos como os papagaios e os nossos alunos também. Maneira singela de dizer que, se nos limitarmos a debitar o manual em uso, estamos a amestrar os alunos a acertarem nas perguntas a afrontarem nos exames, mas não estamos a formar cidadãos.”
Toda a razão, Professor, mas a partir do momento em que as Câmaras Municipais oferecem manuais aos alunos com o dinheiro dos erários públicos, os pais ficam na expectativa de que os mesmos sejam respondidos, na íntegra, com todos os seus livrinhos suplementares, o que não deixa muito tempo para a criatividade do professor e do aluno (não sabendo bem o que isso é). Por outro lado, existem tísicos plafonds de fotocópias, a serem cumpridos com prazo, que mal dão para fichas sumativas, quanto mais para sequências didáticas exemplares ou roteiros de leitura, ou desafios que ativem o treino cognitivo ou qualquer surpreendente dimensão espiritual para além do que é invocado nos manuais. Mais ainda, nem todos os pais são a favor de TPC, ficando os livros inteiramente confinados à sala de aula (sei que há outros tipos de TPC). Manuais, portanto. Como vieram para ficar, são incontornáveis e praticamente orientadores do trabalho do professor, os mesmos deveriam ser elaborados por equipas de professores catedráticos que formam professores, ou inspetores que avaliam direta ou indiretamente o trabalho dos docentes, com a qualidade que todos merecemos.
Com o exposto, não estou a afirmar que sou a favor de manuais...
A formação de cidadãos não é só matéria escolar. Família é fundamental e insubstituível. Acompanhamento dos comportamentos dos filhos e ação educativa correspondente. Tempo presencial com os pais (há alunos na Escola das 8h às 18h ou mais). Respeito pelas instituições que ensinam e tomam conta dos filhos de todos com as condições possíveis, pelas quais somos todos responsáveis.
A dissertação do Professor Galopim de Carvalho em torno da cal, para mim, foi magistral!
Só faltou mesmo a famosa adivinha:
"Cal é coisa, cal é ela, qu' inda agora falei nela?"
Infelizmente, os métodos pedagógicos propostos pelas autoridades governamentais atualmente preconizam uma abordagem minimalista das matérias em sala de aula, tendo em vista um sucesso educativo rápido e fácil para todos!
Uma boa "aprendizagem essencial" seria descobrir, em trabalho de grupo, ou em trabalho de pares, com consulta na internet, a resposta para a adivinha acima apresentada - a cal. Se enveredássemos pelas estratégias do Professor Galopim de Carvalho, os filhos da classe operária, sem acesso a uma boa biblioteca e sem internet em casa, sairiam claramente prejudicados relativamente aos filhos dos burgueses - que até têm telemóveis de última geração! - no processo de avaliação, pois não estaríamos a respeitar o princípio da equidade, consagrado constitucionalmente!
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