quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Um museu dos Descobrimentos: porque não?


Início do texto de Luís Filipe Thomaz inserido no seu último livro publicado na Gradiva O DRAMA DE MAGALHÃES E A VOLTA AO MUNDO SEM QUERER:

Grassa por aí, entre os pequenos e médios intelectuais deste país, um vaga de histeria causada pelos propósitos que anunciou o presidente da Câmara Municipal de Lisboa. Quando dela ouvi falar, talvez porque com a idade o ouvido me começa por vezes a trair, cuidei que se tratava de demolir o Padrão dos Descobrimentos, junto à Torre de Belém, e preparava-me para apoiar incondicionalmente o protesto. Chegou-me depois às mãos a papeleta e foi então que compreendi: tratava-se, muito antes pelo contrário, de organizar um «Museu das Descobertas». Ao que então me disseram, haviam-na assinado já centos de intelectuais, brancos uns, pretos outros, e outros ainda assim-assim.

Diga-se a talho de fouce que sempre me maravilhou como as gentes se preocupam de tais exterioridades. Até uma vez que pedi um visto para visitar certo país da Ásia me perguntaram no formulário a minha raça. Olhei para um espelho que ali havia, olhei para uns finlandeses que estavam atrás de mim, que pareciam feitos de iogurte, e preenchi: «raça: bianca ma non troppo». A funcionária da embaixada deve ter concordado, pois nem pestanejou...

Claro que não assinei a petição; como poderia eu assinar como que um cheque em branco? Um museu vale pelo que contém e pelo modo como o tem exposto. De qualquer modo, organizar um museu não significa aprovar moralmente o que nele se expõe. Visitei em Cartagena de Indias, na Colômbia, um museu da Inquisição, e no Camboja um do terror dos Khmers Vermelhos. Não sei se em Auschwitz se em Tel Aviv, creio que há também um do Holocausto. E é evidente que todos foram
erguidos horroris causa...

Não é certamente esse o caso do museu que a Câmara de Lisboa pretende construir. Seja como for, funcionou neste país durante mais de uma década uma Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses e, que eu saiba, ninguém protestou; talvez porque a Comissão distribuía em profusão apoios a projectos, bolsas de estudos e outros subsídios, e não era muito conveniente arreliar a galinha que tais ovos de ouro punha...~

Dito isto, devo acrescentar que não concordo com a designação «Museu das Descobertas». O termo «descobertas» aplicado aos descobrimentos marítimos é um galicismo, o que é talvez o menos; o mais importante é que a nossa língua é rica em subtis cambiantes semânticos, pelo que, ao contrário do francês ou do italiano, faz uma diferença entre descoberta e descobrimento. Descoberta usa-se sobretudo para coisas materiais e pode ser meramente fortuita: a descoberta do fogo na Pré-História, a do magnetismo terrestre pelos chineses da época Sung (960-1279), a da radioactividade pelo casal Curie, ou a do ouro na Austrália no século XIX. Gramaticalmente, descoberta é um particípio passivo e conota por isso a passividade da cousa achada, ao passo que descobrimento é um nomen actionis, activo e, se se quiser, interactivo.

Seja como for, quer na documentação oficial quer nos nossos clássicos, descobrimento denota um processo voluntário de exploração geográfica, como em 1972 mostrou Armando Cortesão no seu artigo «‘Descobrimento’ e Descobrimentos» na revista Garcia de Orta. O abaixo-assinado contra o projectado museu que por aí circula enferma por isso, inter alia, de ignorância da nossa própria língua, em que achamento, descoberta, descobrimento e invenção têm sentidos vizinhos mas não coincidentes. O que o autarca lisbonense quereria dizer era, evidentemente, «Museu dos Descobrimentos», termo consagrado por largo uso, que se generaliza c. 1470 para significar o que até aí era designado por enquerer, saber parte, colher certa enformação, haver manifesta certidão, etc. São tudo expressões que denotam um processo minucioso de colheita de informações, que ultrapassa em muito a ideia de achar, encontrar, topar com, que só se aplicaria com inteira justeza a ilhas desconhecidas e despovoadas, como por exemplo as da Ascensão e Santa Helena.

Em castelhano descubrimiento assumiu um sentido semelhante: por isso, embora o Amazonas tivesse sido percorrido do Peru até a foz em 1541-42 por Francisco de Orellana, e de novo em 1560 por Lope de Aguirre, Filipe IV mandou-o descobrir de novo em 1639: foi assim, uma vez mais, descido pelo jesuíta Cristóbal de Acuña, que refez o caminho dos seus predecessores, inquirindo diligentemente, das populações ribeirinhas, seu modo de vida e seus costumes, do que deu pormenorizada conta no seu livro, expressivamente intitulado Nuevo descubrimiento del Gran río de las Amazonas, impresso
em Madrid em 1641.

Tampouco colhem os outros argumentos que têm sido apresentados. Diz-se, por exemplo, que antes das viagens de Duarte Pacheco Pereira, Pinzón e Pedro Álvares Cabral, já o Brasil fora descoberto pelos índios que o habitavam. É verdade. Tão verdade que me recorda a história de Jacques de Chabannes, senhor de La Palisse, gentil-homem francês que se finou em combate a 25 de Fevereiro de 1525 na batalha de Pavia, em que as forças de Carlos V esmagaram as de Francisco I de França e o fizeram prisioneiro. Seus homens, que o amavam muito e o viram perecer em pleno vigor, batendo-se até ao fim, compuseram em sua honra uma elegia que começava assim:

Un quart d’heure avant sa mort,
il était encore en vie...

Totalmente diferente, tanto do caso do Brasil, como do das ilhas desertas, é, por exemplo, o caso da Índia, referida no Ocidente pelo menos desde Heródoto (c. 480-425 a. C.). Na época romana conhecia-se já bastante da sua cultura, e Propércio (c. 47-15 a. C.) contempla a prática dita do satî, ou sacrifício da viúva na pira do marido, numa das suas Elegias (III, xiii) que se pode traduzir assim:

Ditosa e singular a lei funérea
vigente p’ra os maridos do Levante,
a quem com seus corcéis a Aurora etérea
confere c’o arrebol tom rutilante!
     De feito, se acontece
para o esposo chegar o fatal dia,
a turma das esposas, leda e pia,
    à pira comparece,
pois que enxovalho é p’ra a esposa amante,
ali não se finar naquele instante;
    o fogo já crepita:
do último brandão lampeja a flama,
e a devorar começa a letal cama;
    a lenha se encandece:
e ei-las todas juntas à compita
p’ra de com ele morrer haver a dita...
     Enquanto monta a chama,
de todas uma há que prevalece,
e ao fogo denodada o peito of’rece:
    indiferente à morte,
o cabelo soltando em desalinho,
como mostra postrema de carinho,
    ao corpo do consorte,
que em fumo, cinza e pó se desvanece,
os lábios apõe; e assim fenece...

Aliás, creio que jamais pretendeu alguém que Vasco da Gama tenha descoberto a Índia: o que descobriu foi a boa rota para lá chegar por mar. Ou, se quisermos tomar o verbo descobrir num sentido mais absoluto, descobriu mais precisamente o troço de costa que vai do Rio do Infante, onde Bartolomeu Dias fora obrigado a arrepiar caminho, ao Cabo das Correntes, perto de Inhambane, tradicional termo meridional das navegações muçulmanas; ou, melhor, até Melinde, onde conseguiu chegar por si, pois só aí obteve um piloto mouro que o levou a Calecut.
(...)

Luís Filipe Thomaz

1 comentário:

Anónimo disse...

E os grandes intelectuais, não? Não os há por cá?
Os intelectuais não são aqueles que, em geral, nem uma lâmpada são capazes de substituir?; especialistas de tudo, profissionais da retórica, reincidentes da treta?

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