sexta-feira, 3 de novembro de 2023

O ACRESCENTADOR DE AZUL

 

Meu texto no último JL:

O escritor Mário de Sá-Carneiro escreveu em 1914 um conto de ficção científica, intitulado A Estranha Morte do Professor Antena, no qual faz um grande elogio da ciência: “Com efeito um grande sábio cria – imagina tanto ou mais do que o Artista. A Ciência é talvez a maior das artes – erguendo-se a mais sobrenatural, a mais irreal, a mais longe em Além. O artista adivinha. Fazer arte é prever. Eis pelo que Newton e Shakespeare, se se não excedem, se igualam.” É curioso que, no mesmo ano de 1914, tenha publicado a sua primeira obra de poesia, Dispersão, revista pelo seu amigo Fernando Pessoa, onde consta o poema “Quase”, que também fala em além: “Um pouco mais de sol - eu era brasa, / Um pouco mais de azul - eu era além.”

Pois foi esta bela expressão Um Pouco Mais de Azul que o editor da Gradiva, Guilherme Valente, resolveu adoptar para título do primeiro livro publicado pelo astrofísico franco-canadiano Hubert Reeves, que infelizmente acaba de nos deixar aos 91 anos. O livro, o n.º 2 da colecção “Ciência Aberta,” saído em 1983 com o subtítulo A Evolução Cósmica, conheceu um êxito estrondoso em Portugal, tal como em todo o mundo: vendeu globalmente mais de um milhão de exemplares em mais de 30 línguas. E foi um êxito bem merecido, pois o autor conseguiu, como poucos, apresentar a história do Cosmos – averiguada pela ciência – usando uma sedutora linguagem poética. O livro fez-nos sentir que somos parte do Cosmos. Os átomos de que somos feitos vieram, na sua maioria, das estrelas. Tanto quanto sabemos, somos a única espécie que consegue perceber a unidade na complexidade do vasto espaço sideral. Como bem explica Reeves, quando olhamos para as estrelas, estamos a olhar para as nossas raízes cósmicas. Depois de o lermos, ficamos com uma consciência mais alargada do céu, que associamos ao azul. Ele acrescentou, com esse seu livro, «um pouco mais de azul» nas nossas vidas.

Um Pouco Mais de Azul saiu no original nas Éditions du Seuil em 1981. O título francês – Patiente dans l’Azur – provinha não de Mário de Sá-Carneiro, mas de um outro grande poeta, Paul Valéry. Foi retirado do poema “Palme” do seu livro Charmes (1922). Em tradução livre o excerto poético diz: “Paciência, paciência,/ paciência no azul! Cada átomo de silêncio/ É a hipótese de um fruto maduro!” Na Introdução de Um Pouco Mais de Azul, intitulada “A montanha e o rato” (que ele explica assim: “A história do Universo é, grosso modo, a história da montanha que pariu um rato.»), diz por que se lembrou de Valéry: “Paul Valéry, estendido nas areias quentes duma laguna, olha para o céu. No seu campo de visão as palmeiras balançam lentamente, amadurecendo os frutos. Está à escuta do tempo que lentamente leva a cabo a sua obra. Esta escuta, podemos explicá-la e aplicá-la ao Universo. Com o correr do tempo desenvolve-se a gestação cósmica. Em cada segundo, o Universo prepara qualquer coisa. Ele sobe lentamente os degraus da complexidade.” E Reeves continua imaginando um Paul Valéry assistindo ao aparecimento dos primeiros átomos e das primeiras células. Comenta: “Para as primeiras células, teria composto uma ode”. Comos e vê, Reeves junta ciência e poesia de uma maneira singular. Porque, como Mário Sá-Carneiro intuiu antes dos modernos avanços astrofísicos, ciência e poesia estão mais ligadas do que se pensa. Tanto o cientista como o poeta precisam de uma grande imaginação. Poder-se-á pensar que o cientista tem uma imaginação limitada pela «imaginação da Natureza». Mas a Natureza tem revelado uma «imaginação» extraordinária, que nos desafia permanentemente.

Ler Reeves é penetrar na imaginação da Natureza. Um Pouco Mais de Azul, esgotado há muito, depois de se terem vendido todos os exemplares da 7.ª edição (de 2013), vai em breve estar de novo à disposição dos leitores nacionais, porque a mensagem do autor não perdeu de modo nenhum actualidade. Na colecção “Ciência Aberta”, que tenho a honra de dirigir desde o n.º 200,” Reeves é, devido ao continuado interesse dos leitores, o autor com mais títulos publicados. Depois do n.º 2, seguiram-se o n.º 13 (A Hora dos Deslumbramento), o n.º 43 (Malicorne, Reflexões de um observador da Natureza), o n.º 73 (Poeiras de Estrelas, ilustrado a cores), o n.º 78 (O Primeiro Segundo), o n.º 104 (Aves, Maravilhosas Aves), o n.º 155 (A Agonia da Terra, uma entrevista a Frédéric Lenoir), o n.º 163 (Crónicas dos Átomos e das Galáxias”, do n.º 185 (Já não terei tempo, as suas memórias, que incluem uma foto onde estou a seu lado, numa visita que ele fez a Coimbra em 1998) e o n.º 205 (Onde cresce o perigo surge também a salvação). Em breve vai sair, ainda na mesma colecção, o livro Eu Vi Uma Flor Selvagem. O Herbário do astrofísico, que dá conta do seu profundo interesse pelas plantas. De facto,  ele e a sua mulher compraram uma casa na Borgonha, no sítio de Malicorne, onde não só podia passear sob árvores centenárias como apanhar as flores que irrompem do solo. Escreveu no seu livro Malicorne: «Tenho uma grande paixão por estas árvores. Que me sobreviverão por muito tempo (sairei do túmulo para as proteger se alguém tiver a ousadia de querer cortá-las!) O facto de ser responsável pela sua existência dá-me um prazer infinito.»

Hubert Reeves é não apenas um apaixonado pelo Cosmos, mas também um apaixonado pela Natureza. Ele sabe bem que a Natureza veio do Cosmos. O físico com ar de poeta – calvo, de barbas brancas e olhos azuis – que nos encantou comas histórias do espaço é também um ecologista, que nos inquieta com a «agonia da Terra». Ele lembra-nos que somos – devíamos ser – a consciência da Natureza. Devemos respeitar a Natureza, cujo tempo é bastante maior do que o nosso. No seu livro Onde cresce o perigo surge também a salvação (verso do poeta alemão Friedrich Hölderlin), dedicado à associação Humanité et Bioversité, a que ele presidia, cita um velho provérbio chinês: «É em vão que bate nas pétalas de um botão de flor para o fazer florir mais depressa.»

Reeves morreu. Mas os seus livros continuam vivos. Leiam-nos porque ele, esteja onde estiver, ficará feliz por continuar a acrescentar azul às nossas vidas.

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