segunda-feira, 13 de novembro de 2023

O JUÍZO ESTÉTICO ANTECEDE O JUÍZO ÉTICO

Por Eugénio Lisboa 
A fealdade é uma forma de violência. 
Francine Noel 
 
Sempre me intrigou, quando a minha mãe me queria repreender, por qualquer mau comportamento meu, que fosse sistematicamente invocada uma razão de cariz estético: “O menino não faça isso porque é feio!” “O menino não coma assim porque não é bonito”. Não porque magoa o outro, ou porque suja a toalha da mesa, ou porque torna alguém infeliz. Não: pura e simplesmente, não se faz porque é feio. 
 
O estético antes do ético ou do moralista. Era talvez a melhor maneira de persuadir crianças ainda não maduras para outros conceitos de mais difícil absorção. Um argumento de fácil aceitação, porque ninguém quer ser feio. 
 
André Gide viria até a produzir um dos seus mais atrevidos aforismos, a este mesmo respeito, quando observou que a ética era uma dependência da estética. As pessoas, de uma maneira geral, mais se conseguem abster de um gesto suposto feio ou grosseiro do que eticamente reprovável. Serem acusadas de falta de sentido estético incomoda-as mais do que de insensibilidade ética. 
 
Oscar Wilde levava esta inclinação ao extremo, ao dizer que não há livros morais e livros imorais, há só livros bem escritos ou mal escritos, indo até dizer que ”nenhum artista tem simpatias éticas” e que “uma simpatia ética, num artista, é um imperdoável maneirismo de estilo.”
 
Há, nestas formulações wildeanas um óbvio e deliberado exagero, mas que indubitavelmente visa dar preponderância ao estético sobre o ético. A fealdade na natureza tem muito de repulsivo e tem sido fonte de inúmeras invectivas de grande ferocidade. 
 
Shakespeare, por exemplo, não hesitava em rogar, por via de um dos seus personagens: “Ajudai-nos a escorraçar a fealdade do mundo.” E um provérbio inglês sugere que “a beleza é à flor da pele, mas a fealdade vai até aos ossos.” Certos vícios de carácter – e dos mais odiosos – como a inveja, são tidos como particularmente repulsivos, por razões mais estéticas do que éticas: diz-se de alguém que ficou “verde de inveja”, sublinhando-se aqui a “fealdade” de uma pele humana verde; ou “roído de inveja”, uma imagem física de um feiíssimo corpo “roído” pelo verme da inveja.
 
Nisto tudo, o ético ou não entra ou entra em segundo lugar. O recurso à estética da fealdade, para iluminar melhor o que têm de repulsivo certos vícios (a inveja, o ciúme, o ressentimento), mostra-nos como o juízo estético pode ser muito mais eficaz, como arma de luta contra eles, do que o juízo ético. 
 
Porque o juízo estético vê-se melhor, impressiona mais, agride com mais força. Dizer que uma pessoa é feia por dentro e por fora ou que é bonita por dentro e por fora diz-nos mais do que o desfiar abstracto, não visível, das maiores virtudes. O gosto pode servir melhor o valor de certas virtudes, do que o exemplo dessas virtudes. Uma virtude bela é mais apetecida do que uma simples virtude. 
 
Eugénio Lisboa 

1 comentário:

Carlos Ricardo Soares disse...

Mais um texto carregado de curiosidades e de interesse, com o qual Eugénio Lisboa nos convoca ao aprazível exercício de pensamento e nos interpela à reflexão sobre os nossos comportamentos, mais ou menos privados, mais ou menos exteriorizados por sentenças, suscetíveis de consciencialização e conhecimento acerca das linhas com que nos cosemos, para usar uma expressão bastante feia.
E ai de quem me contradisser, porque também será feio. Se formos para o tribunal, então o juiz que faça a justiça de aceitar ou rejeitar o pleito e de fundamentar a decisão.
Com esta brincadeira, estou a pensar na subjetividade dos juízos, por um lado, e na objetividade das sentenças, por outro. Os meus juízos estéticos, sobre a natureza, ou sobre os artefactos são o que decide se algo, na natureza, ou no artefacto, é belo, ou não, ou se é repulsivo, atraente, agradável, desagradável, etc.. Não é o juízo sentença da minha mãe, ou o do pintor dos diabos que vai decidir sobre a realidade das coisas, por mais efeitos que possa ter sobre o meu comportamento e por mais que condicione a forma como vejo as coisas.
Ou seja, o meu juízo estético opera sobre uma realidade cujas características não são belas, ou feias, antes de eu decidir. Nem estou a questionar se e porquê há formas belas ou feias, independentemente de o julgarmos.
Na realidade, não é por eu julgar uma coisa bela, ou feia, que ela o é. Ser bela ou feia não é uma característica da coisa, quando muito, é uma atribuição que eu faço. E isto não quer dizer que é uma atribuição arbitrária, ou que é aleatória. Não quer dizer que não tenha a ver com características da coisa.

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