O escritor Mário de Sá-Carneiro escreveu em 1914 um conto de ficção
científica, intitulado A Estranha Morte do Professor Antena, no qual faz
um grande elogio da ciência: “Com efeito um grande sábio cria – imagina tanto
ou mais do que o Artista. A Ciência é talvez a maior das artes – erguendo-se a
mais sobrenatural, a mais irreal, a mais longe em Além. O artista adivinha. Fazer
arte é prever. Eis pelo que Newton e Shakespeare, se se não excedem, se
igualam.” É curioso que, no mesmo ano de 1914, tenha publicado a sua primeira
obra de poesia, Dispersão, revista pelo seu amigo Fernando Pessoa, onde
consta o poema “Quase”, que também fala em além: “Um pouco mais de sol - eu era
brasa, / Um pouco mais de azul - eu era além.”
Pois foi esta bela expressão Um Pouco Mais de Azul que o editor da
Gradiva, Guilherme Valente, resolveu adoptar para título do primeiro livro
publicado pelo astrofísico franco-canadiano Hubert Reeves, que infelizmente acaba
de nos deixar aos 91 anos. O livro, o n.º 2 da colecção “Ciência Aberta,” saído
em 1983 com o subtítulo A Evolução Cósmica, conheceu um êxito estrondoso
em Portugal, tal como em todo o mundo: vendeu globalmente mais de um milhão de
exemplares em mais de 30 línguas. E foi um êxito bem merecido, pois o autor
conseguiu, como poucos, apresentar a história do Cosmos – averiguada pela
ciência – usando uma sedutora linguagem poética. O livro fez-nos sentir que
somos parte do Cosmos. Os átomos de que somos feitos vieram, na sua maioria,
das estrelas. Tanto quanto sabemos, somos a única espécie que consegue perceber
a unidade na complexidade do vasto espaço sideral. Como bem explica Reeves,
quando olhamos para as estrelas, estamos a olhar para as nossas raízes
cósmicas. Depois de o lermos, ficamos com uma consciência mais alargada do céu,
que associamos ao azul. Ele acrescentou, com esse seu livro, «um pouco mais de azul»
nas nossas vidas.
Um Pouco Mais de Azul saiu no original nas Éditions du Seuil em 1981. O
título francês – Patiente dans l’Azur – provinha não de Mário de
Sá-Carneiro, mas de um outro grande poeta, Paul Valéry. Foi retirado do poema
“Palme” do seu livro Charmes (1922). Em tradução livre o excerto poético
diz: “Paciência, paciência,/ paciência no azul! Cada átomo de silêncio/ É a
hipótese de um fruto maduro!” Na Introdução de Um Pouco Mais de Azul,
intitulada “A montanha e o rato” (que ele explica assim: “A história do
Universo é, grosso modo, a história da montanha que pariu um rato.»), diz
por que se lembrou de Valéry: “Paul Valéry, estendido nas areias quentes duma
laguna, olha para o céu. No seu campo de visão as palmeiras balançam
lentamente, amadurecendo os frutos. Está à escuta do tempo que lentamente leva
a cabo a sua obra. Esta escuta, podemos explicá-la e aplicá-la ao Universo. Com
o correr do tempo desenvolve-se a gestação cósmica. Em cada segundo, o Universo
prepara qualquer coisa. Ele sobe lentamente os degraus da complexidade.” E Reeves
continua imaginando um Paul Valéry assistindo ao aparecimento dos primeiros
átomos e das primeiras células. Comenta: “Para as primeiras células, teria
composto uma ode”. Comos e vê, Reeves junta ciência e poesia de uma maneira
singular. Porque, como Mário Sá-Carneiro intuiu antes dos modernos avanços
astrofísicos, ciência e poesia estão mais ligadas do que se pensa. Tanto o
cientista como o poeta precisam de uma grande imaginação. Poder-se-á pensar que
o cientista tem uma imaginação limitada pela «imaginação da Natureza». Mas a
Natureza tem revelado uma «imaginação» extraordinária, que nos desafia
permanentemente.
Ler Reeves é penetrar na imaginação da Natureza. Um Pouco Mais de Azul,
esgotado há muito, depois de se terem vendido todos os exemplares da 7.ª edição
(de 2013), vai em breve estar de novo à disposição dos leitores nacionais,
porque a mensagem do autor não perdeu de modo nenhum actualidade. Na colecção
“Ciência Aberta”, que tenho a honra de dirigir desde o n.º 200,” Reeves é,
devido ao continuado interesse dos leitores, o autor com mais títulos
publicados. Depois do n.º 2, seguiram-se o n.º 13 (A Hora dos Deslumbramento),
o n.º 43 (Malicorne, Reflexões de um observador da Natureza), o n.º 73 (Poeiras
de Estrelas, ilustrado a cores), o n.º 78 (O Primeiro Segundo), o n.º
104 (Aves, Maravilhosas Aves), o n.º 155 (A Agonia da Terra, uma
entrevista a Frédéric Lenoir), o n.º 163 (Crónicas dos Átomos e das
Galáxias”, do n.º 185 (Já não terei tempo, as suas memórias, que
incluem uma foto onde estou a seu lado, numa visita que ele fez a Coimbra em
1998) e o n.º 205 (Onde cresce o perigo surge também a salvação). Em breve
vai sair, ainda na mesma colecção, o livro Eu Vi Uma Flor Selvagem. O Herbário
do astrofísico, que dá conta do seu profundo interesse pelas plantas. De
facto, ele e a sua mulher compraram uma
casa na Borgonha, no sítio de Malicorne, onde não só podia passear sob árvores
centenárias como apanhar as flores que irrompem do solo. Escreveu no seu livro Malicorne:
«Tenho uma grande paixão por estas árvores. Que me sobreviverão por muito tempo
(sairei do túmulo para as proteger se alguém tiver a ousadia de querer cortá-las!)
O facto de ser responsável pela sua existência dá-me um prazer infinito.»
Hubert Reeves é não apenas um apaixonado pelo Cosmos, mas também um
apaixonado pela Natureza. Ele sabe bem que a Natureza veio do Cosmos. O físico
com ar de poeta – calvo, de barbas brancas e olhos azuis – que nos encantou
comas histórias do espaço é também um ecologista, que nos inquieta com a
«agonia da Terra». Ele lembra-nos que somos – devíamos ser – a consciência da Natureza.
Devemos respeitar a Natureza, cujo tempo é bastante maior do que o nosso. No
seu livro Onde cresce o perigo surge também a salvação (verso do poeta
alemão Friedrich Hölderlin), dedicado à associação Humanité et Bioversité, a
que ele presidia, cita um velho provérbio chinês: «É em vão que bate nas
pétalas de um botão de flor para o fazer florir mais depressa.»
Reeves morreu. Mas os seus livros continuam vivos. Leiam-nos porque ele, esteja onde estiver, ficará feliz por continuar a acrescentar azul às nossas vidas.
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