Meu artigo no último Artes e Letras:
O ano de 2023 foi o ano do centenário de grandes escritores portugueses:
por ordem cronológica de nascimento), Eugénio de Andrade, i.e., José
Fontinhas (n. Póvoa da Atalaia, Fundão, 19 de Janeiro de 1923), Eduardo
Lourenço (São Pedro de Rio Seco, Almeida, 23 de Maio de 1923), Mário Cesariny (n.
Lisboa, 9 de Agosto de 1923), Natália Correia (n. Fajã de Baixo, São Miguel,
Açores, 13 de Setembro de 1923) e Urbano Tavares Rodrigues (n. Lisboa, 6 de
Dezembro de 2013).
Falemos do último dos “centenários”: Urbano Tavares Rodrigues, falecido há
dez anos. A sua longevidade, só batida entre os escritores nascidos no mesmo
ano, pela de Eduardo Lourenço, permitiu-lhe deixar uma obra muito vasta. O seu primeiro
livro foi o livro de crónicas de viagens Santiago de Compostela (1949) e
a última, já póstuma, foi o romance Nenhuma vida (2013). Entre uma e
outra escreveu livros de viagens (mais sete), ensaios (25, das quais destaco a
tese doutoral Manuel Teixeira Gomes. O sentido do desejo (de 1984, sobre
o escritor que foi Presidente da República há cem anos, e que, como Urbano,
escreveu sobre o amor, a mulher e o erotismo), 40 romances (destaco dois best-sellers:
Bastardos do Sol, de 1959, e Os Insubmissos, de 1961),
contos e narrativas (cinco livros), antologias (cinco), crónicas (quatro),
teatro (um), e outros (oito). salvo erro ou omissão, dá o total de 97 títulos, um
número difícil de superar.
Urbano foi perseguido pelo Estado Novo. Foi obrigado a exilar-se em França,
onde foi leitor e assistente nas universidades de Montpellier, Aix-en-Provence
e Paris entre 1949 e 1955 (em Paris, onde viveu com a então sua mulher, a escritora
Maria Judite de Carvalho, conheceu pessoalmente Louis Aragon, Albert Camus e
Marguerite Duras). Só pôde ascender a uma cátedra da Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, onde se tinha licenciado em Filologia Românica, depois
do 25 de Abril. Membro do Partido Comunista Português, considerava-se um
comunista heterodoxo. Descendente de latifundiários alentejanos, doou, em
coerência ao seu ideário, a maior parte das terras que herdou a trabalhadores
rurais. Porém, ao contrário de outros escritores comunistas, nunca foi neorrealista.
Mantendo sempre preocupações sociais, bem visíveis na valorização que fazia da solidariedade
humana, cultivou uma literatura intimista, em que o eu estava omnipresente. O
amor e a morte foram temas que o obcecaram. Disse, numa entrevista ao JL em
1991, que “boa parte da minha obra é projecção da minha vida, não no sentido biográfico,
mas naquele em que espelha preocupações, angústias, esperanças, formas de estar
no mundo» e, noutra em 1993, que “a escrita é sempre autobiográfica assim como
a biografia não deixa de ser romanesca.”
Como colecciono livros que contam os relatos e impressões de escritores e cientistas
das suas viagens ao estrangeiro, fui a essa secção das minhas estantes para
procurar um livro muito curioso de Urbano: Viagem à União Soviética e Outras
Páginas (Seara Nova, 1973; reedição: Cavalo de Ferro, 2017). Nele conta a
sua visita à União Soviética, em 1973, na companhia de Alberto Ferreira (como
ele militante comunista, autor de vários livros sobre a cultura portuguesa no
século XIX, incluindo Bom Senso e Bom Gosto. Questão Coimbra, 1968) e de
Fernando Namora (que nem era comunista nem anticomunista; haveria de publicar as
suas impressões dessa viagem no livro URSS Mal Amada, Bem Amada, 1986). Os três viajaram a convite da União das
Associações Soviéticas para a Amizade e Relações Culturais entre os Povos.
Urbano declara-se admirado com o progresso da União Soviética, que ele
percorreu em grande extensão. Foram-lhe dadas a conhecer pessoas e obras não
apenas das artes e letras, mas também da ciência e tecnologia. Na Sibéria, teve
a oportunidade de visitar a central hidroeléctrica de Bratsk, então a segunda maior
do mundo. Escreveu: “Creio que só um cretino ou um obcecado, independentemente
das suas ideias políticas, poderá ficar insensível ao cântico colectivo desta nova
Sibéria. A frase de Lenine, segundo a qual o saber tem de tornar-se parte integrante
da existência, é ali uma verdade diariamente vivida. Na Central Hidroeléctrica
de Bratsk, a barragem majestosa atinge 127 m de altura e estende-se por mais de
5 km, retendo a pressão do mar artificial de Bratsk, parte do qual pude ver em
pleno degelo, numa euforia suave de branco-ausência e de perfumes virgens (...).”
Mas, para além das obras de engenharia, apreciou o ambiente humano: “A vivência
humanística acompanha, como em toda a URSS, o fantástico avanço científico e
técnico, que é simultaneamente o prolongamento e o resultado das profundas transformações
sociais.” O escritor, que sofria de enxaquecas, teve uma crise aguda em Tachkent,
capital do Uzbequistão, que o obrigou a cuidados dos médicos uzbeques. E recebeu
também sugestões de uma companheira de viagem de um voo interno, que lhe recomendou
uma pomada oriental para as cefaleias.
Urbano disse mais: “Homem de letras, não deixo de maravilhar-me ante as realizações
da ciência e da técnica sobretudo, quando, como nesses arredores de Tachkent,
posso (pude) constatar a existência dos tampões verdes que absorvem as poeiras e
os gases poluentes. As cortinas de árvores neutralizam a acção deletéria dos
gases sulfurosos. O escoamento dos resíduos é igualmente objecto de atenção máxima.”
Realcem-se as suas preocupações ecológicas nesses anos de 1970, quando a questão
maior não era tanto, como é hoje, a das emissões de dióxido de carbono, mas sim
as emissões de substâncias poluentes, venenosas mesmo. O escritor remata: “O
primeiro dos dogmas (há alguns) na União Soviética é não envenenar a existência
humana.” A União Soviética desfez-se, como é sabido, em 1991, ao fim de uma
sucessão de eventos que Urbano acompanhou, com mágoa, em Portugal. Ele, que tinha
chegado a simpatizar com Gorbachev, repudiou-o depois.
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