domingo, 19 de novembro de 2023

ELOGIO DOS LIVROS E DAS BIBLIOTECAS


Minha intervenção ontem na Casa da Cultura de Coimbra, a convite dos Lions:

É meu privilégio, respondendo ao amável convite dos Lions, fazer o elogio dos livros e das bibliotecas. Não era preciso fazê-lo nesta cidade de Coimbra, onde a Universidade tem uma biblioteca mais do que cinco vezes centenária, a Biblioteca Geral (BGUC), e a cidade tem uma biblioteca centenária, a Biblioteca Municipal. Quando servi a universidade dirigindo a primeira propus, embora sem êxito, juntar as duas num grande empreendimento: a “Casa do Conhecimento”, a erguer sobre a Penitenciária de Coimbra tal como outrora a Joanina foi erguida sobre uma prisão medieval. É com gosto que vejo aqui a universidade e acidade reunidas. A universidade tem a cidade lá dentro se só trocarmos uma letra.

Não era preciso fazer o elogio do livro numa cidade que tem a biblioteca mais bela do mundo: a Joanina, que integra a BGUC, beneficiária de uma plêiade de directores como Luís de Albuquerque, Guilherme Braga da Cruz, e João da Providência e Costa. Posso até recuar até 1545 quando o cronista da Índia Fernão Lopes de Castanheda foi nomeado “guarda do cartório e da livraria” da Universidade. de Coimbra foi e é a cidade de grandes editores como João de Barreira, João Álvares, no séc. XVI, a Imprensa da Universidade, a partir do séc. XVIII, e a Atlântida, a Coimbra Editora e a hoje muito activa Almedina, no séc. XX. Foi e é a terra de grandes tipografias, como a Gráfica de Coimbra, livrarias, algumas delas afectas a editoras, e alfarrabistas, como o Miguel de Carvalho, hoje na Figueira da Foz. 

Foi e é também a terra da maior parte dos nossos escritores. Nos cem anos de Eduardo Lourenço e de Eugénio de Andrade, é mister lembrar que os dois passaram por aqui. Como passaram por aqui tantos outros: D. Dinis, Luís de Camões (embora não haja a certeza), Almeida Garrett, Eça de Queirós, Antero de Quental, Guerra Junqueiro, António Nobre, Teixeira de Pascoaes, Mário de Sá Carneiro, Almada Negreiros, José Régio, Fernando Namora, Joaquim Namorado, Miguel Torga, Carlos de Oliveira, Herberto Hélder, Virgílio Ferreira, Ruy Belo, Manuel António Pina,  Manuel Alegre, Luís Quintais, etc., uma lista tão numerosa que é muito mais fácil fazer uma lista dos que não passaram (talvez seja constituída apenas por Fernando Pessoa, que, no país, quase não saiu de Lisboa). 

Distingo, nesta Sala Sá de Miranda, os escritores que nasceram em Coimbra: Sá de Miranda, claro, mas também Camilo Pessanha, Eugénio de Castro, João José Cochofel, Fernando Assis Pacheco, Inês Pedrosa, Teolinda Gersão, Nuno Camarneiro, etc. O poeta António Gedeão “nasceu” em Coimbra em 1956, quando Rómulo de Carvalho ensinava naquele que havia de ser o meu liceu, o D. João III. Uma lista muito pequena, mas significativa, é a dos escritores que, não tendo aqui nascido aqui, quiseram ficar para sempre, como Vitorino Nemésio.

Estou a falar no edifício da Biblioteca Municipal. Foi nessa biblioteca que, quando era adolescente, expandi os meus horizontes de leitura, trazendo e levando três livros de cada vez das estantes que enchiam no Claustro de Santa Cruz. Somos o resultado genético e educativo dos nossos pais, da instrução dos nossos professores (no meu caso dos mestres do Liceu de D. João III e da Universidade) e, com certeza, da nossa própria viagem interior, o nosso grand tour, feita através dos livros que escolhemos. 

Tive a sorte de ter tido acesso a grandes bibliotecas no estrangeiro, como a da universidade e cidade de Frankfurt, a terra de Goethe, que tem mais de seis milhões de livros e por cujos depósitos eu, no início dos anos de 1980, me passeei à vontade, trazendo muita literatura portuguesa e brasileira para ler em casa. Está nessa cidade em curso um investimento de cem milhões de euros numa nova biblioteca, com verba conseguido com a venda da antiga sede da Polícia no centro da urbe. Mais tarde gozei de sabáticas nos Estados Unidos, onde percebi que, bem mais do que aqui, a biblioteca é o verdadeiro centro não só das universidades, mas também das cidades. O presidente da América, no final do mandato, recebe uma biblioteca com o seu nome como prenda. Talvez com a excepção de Donald Trump, que não lê livros.

A biblioteca, qualquer biblioteca, é um mundo, um cosmos. Permitam-me que invoque a minha condição de físico para citar o grande físico e divulgador científico Carl Sagan. No seu livro Cosmos, editado entre nós pela Gradiva, a minha editora, num capítulo intitulado “A persistência da memória”, descreveu como os seres vivos começaram por ter informação armazenada nos genes e, depois, passaram a ter também informação armazenada nos cérebros (porque não cabia nos genes) e, depois ainda (porque não cabia nos cérebros), uma das espécies, a nossa, passou a ter bibliotecas, isto é, informação fora dos cérebros, mas sempre acessível a eles. Escreveu:

“Os livros permitem-nos viajar através do tempo, de beber na própria fonte o saber dos nossos antepassados. A biblioteca põe-nos em contacto com as concepções e o saber, a custo extraídos da natureza, das maiores mentes até agora existentes, com os melhores professores, provindos de todo o planeta e de toda a nossa história, para nos instruírem sem nos fatigarmos e para nos inspirarem a dar a nossa contribuição ao saber colectivo da espécie humana. As bibliotecas públicas dependem de contribuições voluntárias. Considero que a saúde da nossa civilização, a profundidade da percepção que temos das bases de apoio à nossa cultura e o nosso cuidado relativamente ao futuro podem ser medidos pelo tipo de apoio que damos às nossas bibliotecas.”

Quem leu suficientes livros sabe que eles são por vezes responsáveis pelo que nos acontece. Os livros transformam o mundo, basta pensar nesse livro dos livros que é a Bíblia. E os livros transformam-nos a nós: por exemplo, eu aprendi a ler pela Cartilha Maternal de João de Deus, outros dos escritores oitocentistas que passou por Coimbra.

As palavras de Sagan fazem-nos evocar as de Descartes, que ele decerto leu: “A leitura de todos os livros bons é como uma conversa com as pessoas mais sérias dos séculos passados que deles foram autores.”  A mesma ideia surgiu numa conferência proferida em 1864 por John Ruskin, o grande artista, cientista, poeta, ambientalista e crítico de arte inglês da época vitoriana, num pequeno burgo perto de Manchester onde ele estava a criar uma biblioteca. Passo a citá-lo: 

“Partindo do princípio que temos quer a bondade quer a inteligência de escolher bem os nossos amigos, muitos poucos de nós têm esse poder, que limitada que é a esfera das nossas escolhas. Não podemos conhecer quem nos apetece... Podemos por acaso entrever um grande poeta e escutar o som da voz dele, ou fazer uma pergunta a um homem de ciência que nos responderá amavelmente. Podemos usurpar dez minutos no gabinete de um ministro, ter uma vez na vida o privilégio de atrair o olhar de uma rainha. E, no entanto, esses acasos fugidios nós desejamo-los, gastamos os anos, as paixões e as nossas faculdades a tentar alcançar um pouco menos do que isso, enquanto, durante esse tempo, há uma sociedade que nos é continuamente aberta, constituída por pessoas que falariam connosco tanto quanto o desejássemos, fosse qual fosse o nosso estatuto social. E esta sociedade, porque é tão numerosa e agradável e podemos fazê-la esperar ao pé de nós um dia inteiro – reis e homens de estado à espera pacientemente não para concederem uma audiência, mas para a obterem – nunca vamos procurá-la nessas antecâmaras mobiladas que constituem as prateleiras das nossas estantes.”

Pois as bibliotecas são esses sítios onde podemos falar com amigos que desconhecemos, mas que nos querem conhecer. Marcel Proust, em O Elogio da Leitura, um livrinho em que fala das suas longas horas de juventude que passou a ler, faz o seguinte comentário a Ruskin – o seu texto é, de resto, um prefácio a um livro de Ruskin (os livros comunicam uns com os outros!):

“O que difere essencialmente entre um livro e um amigo, não é a sua maior ou menos sensatez, mas a maneira como se comunica com ele; a leitura, ao arrepio da conversa, consistindo para cada um de nós em receber comunicação de um outro pensamento, mas permanecendo a sós.”

Ainda recentemente o escritor português Afonso Cruz, que não é de Coimbra, mas quase (é da Figueira da Foz) comentava numa sua crónica no JL, “Ler ou não ler, eis a questão,” como é extraordinário que uma pessoa sozinha possa ser sujeito de uma transformação tão grande: 

“É realmente difícil fazer passar a ideia inacreditável de que uma pessoa parada, debruçada sobre um livro, está a ter uma experiência emocionante, espectacular, capaz de lhe mudar a vida”.

Sim, os livros transfonam o mundo, porque começam por nos transformar a nós. Ainda recentemente num restaurante em Aveiro uma senhora veio ter comigo e me disse que um meu livro a tinha mudado, pois tinha deixado de tomar banhas da cobra cuja ineficácia eu apontei.

Sagan diz-nos que o saber dos livros é a custo extraído da Natureza: está decerto a pensar nos livros de ciência, que são apenas uma pequena parte do grande número dos livros da biblioteca. Encontra-se, com efeito, em Galileu – que, para Ítalo Calvino, o autor cujo centenário se comemora este ano, era o melhor prosador na língua italiana - a ideia de que a própria Natureza é um livro, um livro que, segundo ele, “está escrito em caracteres matemáticos,” como linhas e números. Assim, a maior biblioteca do mundo, a fonte de todas as outras, seria o próprio mundo, o Cosmos. Mas, como está tudo nos clássicos (Calvino disse que os clássicos são os livros que se releem como se se estivessem a ler pela primeira vez), já antes de Galileu a metáfora do do mundo como um livro aparece em Dante, no último canto da Divina Comédia (um grande clássico!): “No seu profundo vi que já se interna, /ligado com amor num só volume/ o que pelo Universo jaz esparso”.

Mais modernamente Jorge Luís Borges, um dos meus escritores preferidos, fala no conto “A Biblioteca de Babel”, inserta no seu livro Ficções, do “Universo, a que outros chamam Biblioteca”. É um Universo infinito, caleidoscópico, que nos deixa confundidos e nos sobressalta a imaginação: ele contém não só todos os livros como a tradução deles em todas as línguas, todos os catálogos e o catálogo dos catálogos.

O mundo é, portanto, uma biblioteca (se cito tantos autores é porque, como dizia Montaigne, é “deixo a outros a tarefa de exprimir o que eu não saberia dizer tão bem, quer pelas fraquezas da minha linguagem, quer pelas da minha inteligência”) e a biblioteca é, por sua vez, um mundo. Se acrescentarmos aos livros de não-ficção os de ficção, poderemos dizer que a biblioteca é um conjunto de mundos, do mundo que existe e dos mundos que não existem, mas poderiam existir, e, além disso, dos mundos que não existem nem poderiam existir. A biblioteca é afinal muito maior do que o mundo!

Hoje dispomos de uma moderna biblioteca de Babel, a Internet. E, se me pedirem, quando chegar às portas guardadas por São Pedro, para defender os meus méritos, direi: «guardei livros», alguns deles livros dos apóstolos, conforme o Senhor Reitor me encarregou. E, se for preciso argumentar mais, direi que «espalhei livros», ao mesmo tempo que os guardava: propus ao Senhor Reitor a criação do Alma Mater, o repositório de fundo antigo de livros da Universidade que projecta o nome de Coimbra em todo o globo, pois permite entrar em Coimbra através do telemóvel de qualquer sítio do mundo, em São Paulo, Macau ou Dili.

Livros significa memória, património, e gostaria de salientar isso numa cidade Património Mundial. Os autores dos livros não morrem porque, ao lê-los, estamos a falar com eles. E, se deixarmos livros para falar com os nossos descendentes, teremos garantida uma vida para além da morte.  Romano Guardini, um teólogo italiano do séc. XX que era um espírito eclético pois se interessou por ciências naturais, medicina, psicologia e direito (o papa Francisco começou a fazer uma tese de doutoramento sobre ele), escreveu que

o livro tem uma relação com a memória: com essa faculdade misteriosa que o homem possui de convocar do passado para o presente tudo o que antes aconteceu, sem, no entanto, esquecer (...) que se trata de coisas pretéritas. 

É porque temos muitos e bons livros que é grande o poder da memória em Coimbra. Há muito que repito que seria bom que essa memória se projectasse em futuro. Foi o Padre António Vieira, que esteve recluso no Colégio das Artes em Coimbra, que escreveu uma História do Futuro. Pois Coimbra tem memória suficiente para escrever a sua história do futuro, uma história que poderia passar pela ambição de construir uma “Casa do Conhecimento”, a maior biblioteca do país. 

Eu pertenço ao número das pessoas que, em Coimbra, estão mais preocupadas com os próximos sete anos do que com os últimos 700 anos. E por uma razão simples: graças à lei física que dá pelo nome de Segunda Lei da Termodinâmica distinguimos passado do futuro, o tempo em que nada mais podemos fazer do tempo em que ainda podemos fazer alguma coisa. Podemos fazer mais pelos próximos sete anos do que pelos últimos 700 anos. Que memória podemos, portanto, deixar, no domínio dos livros e das bibliotecas, no futuro próximo para ser admirado no futuro remoto? Penso que é essa uma das questões que nos devia preocupar. Os nossos tetravós deixaram-nos memórias. Nós temos de guardar a memória deles, acrescentando a nossa, para que os nossos tetranetos saibam deles e de nós.

Um dia gostaria de deixar os meus livros numa biblioteca para ficarem à disposição dos vindouros – refiro-me à minha biblioteca de mais de 30 000 volumes que acrescem aos cerca de 10 000 que ofereci ao Rómulo, a biblioteca de cultura científica em honra de Rómulo de Carvalho, que criei na Universidade de Coimbra. Cito - e perdoem-se a abundância de citações - o cardeal italiano Basílio Bessarion, que legou os seus ca. 800 códices à cidade de Veneza. Hoje estão na famosa Biblioteca Marciana. Numa carta ao doge em 1468 escreveu Bessarion:

“Os livros estão cheios das palavras dos sábios, dos exemplos dos antigos, dos costumes, das leis, da religião. Vivem, discorrem, falam connosco, ensinam-nos, instruem-nos, consolam-nos, tornam-nos presentes, pondo-as sob os nossos olhos, coisas muito remotas da nossa memória. Tão grande é a sua dignidade, a sua majestade e, enfim, a sua santidade, que se não existissem os livros nós seríamos todos grosseiros e ignorantes, sem qualquer lembrança do passado, se nenhum exemplo; não teríamos qualquer conhecimento das coisas humanas e divinas; a mesma urna que acolhe os corpos apagaria também a nossa memória.”

Encontrei estas palavras de há mais de 500 anos - porque, insisto, os livros comunicam uns com os outros -, num livro saído entre nós em 2016 da autoria do professor de Filosofia italiano Nuccio Ordine, que eu conheci pessoalmente quando o convidei a visitar Portugal em nome da Fundação Francisco Manuel dos Santos, mas que infelizmente nos deixou em 10 de Junho passado, com apenas 64 anos. Ele deixou-nos, mas os seus livros não nos deixaram. Tenho aqui a minha fonte: A Utilidade do Inútil

Num tempo em que impera o útil, trata-se de um eloquente manifesto em louvor do inútil. Os livros parecem ser coisas inúteis, pois não passam afinal de alinhamentos de letras do alfabeto em papel ou num ecrã, mas são as coisas mais úteis do mundo. Contêm ideias que mudam o mundo porque nos mudam a nós. O mundo não mudaria se não houvesse livros. O extraordinário é que o mundo muda, mas continua, na sua essência, a ser o mesmo, já que a memória das vidas passadas está nos livros que lemos para iluminar as nossas vidas futuras. 

Assim vai continuar a ser. Os livros são a nossa vida eterna.

2 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

O Carlos Fiolhais também merece um grande louvor, nem que fosse apenas por este elogio dos livros e das bibliotecas, grandiloquente, como é merecido e justo. Estaremos sempre a pensar e a descobrir a imensa vantagem e o extraordinário privilégio de os termos e de os lermos.
Pensando no universo como o conjunto e nos livros e nas bibliotecas e em nós, humanos, como subconjuntos, ocorre-me partilhar com o Físico, Carlos Fiolhais, a melancolia de não saber o que acontece à memória, e perguntar se a Física, nomeadamente, na formulação clássica da Lei de Lavoisier - geralmente expressa na forma: "Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma." - encontra resposta adequada para aquela questão: o que é a memória e em que é que se transforma?
A razão da minha melancolia tem a ver com o sentimento de perda irreparável, para a qual Lavoisier não dá conforto.
Grato pelo artigo.

Manuel Lima Bastos disse...

Como complemento minúsculo da excelente divagação de Carlos Fiolhais sobre os livros, permito-me acrescentar algumas palavras do grande Padre António Vieira: "De como não há coisa mais escrupulosa no mundo que o papel e a pena. Três dedos com uma pena na mão é o ofício mais arriscado que tem o género humano".

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