domingo, 5 de novembro de 2023

O PENSAMENTO LIVRE

Na continuação de texto anterior.
Por João Boavida
 
Os racionalistas chamaram a atenção para a enorme força libertadora que cada um de nós tem em si, e para a capacidade de alcançar os níveis mais elevados daquela faculdade – o pensamento livre. E ao fazê-lo abriram janelas para a humanidade, porque não só disseram que as pessoas eram capazes de pensar livremente como o deviam fazer sempre. Isto foi socialmente magnífico, representou uma extraordinária evolução política e social, e de tal modo que não podemos pensar em democracia sem ter em conta este pressuposto e esta condição.
 
É por aqui – pela possibilidade que os cidadãos têm de se expressar livremente – que se distinguem as verdadeiras democracias das que não são. E ao apelidarem-se muitas delas de democracias, não o sendo, e muitos tiranos quererem passar por democratas, só provam o valor que a democracia tem e quanto é necessário, portanto, defendê-la dos falsos amigos e dos que a minam por dentro. 
 
Mas os racionalistas não contaram, ou não avaliaram convenientemente, as forças que era preciso vencer, e mesmo as ínsitas na própria natureza humana, que tornam a coisa ainda mais difícil. A primeira, é de que o ser humano precisa de aprender a pensar, é-lhe indispensável chegar a certos níveis de desenvolvimento intelectual para ser capaz de pensar livremente. 
 
As crianças e os jovens têm de aprender a pensar por si próprias, têm de treinar essa capacidade; e necessitam de viver em ambientes onde o pensar livremente seja regra para usufruir desses modelos. 
 
Ora, todos nós sabemos que a educação foi, entre nós, até algumas gerações atrás, essencialmente repressora e inculcadora de regras e de ensinamentos, e que em muitas partes do mundo de hoje, sobretudo por razões políticas e religiosas, se está longe de dar as condições para as criança e os jovens desenvolverem essa faculdade e ganharem o hábito de a utilizar. 
 
O drama é que os próprios pais, muitos diretores e professores, bem como outros educadores e todo o ambiente em geral sofrem do mesmo, isto é, não chegam a aperceber-se da teia atrofiante em que estão presos e de quanto isso os embaraça e enfraquece. E, portanto, reproduzem, sem se aperceberem, as condições que impedem a libertação intelectual e moral de todos, perpetuando o mal. 
 
Alias, em termos religiosos, a liberdade sempre foi vista como um perigo a combater, como toda a gente sabe e, portanto, ela é ainda, em muitas regiões do mundo, o contrário daquilo que se devia desejar para todas as pessoas. E algo de semelhante se pode dizer de todos os regimes políticos não democráticos, que veem no pensamento livre dos cidadãos o grande inimigo e, por isso, nunca deixam de o proibir e castigar. 
 
Há, pois, uma imensa tarefa educativa a fazer. 
 
Difícil, mas não impossível. 
 
Muitas das sociedades atuais passaram, em poucas gerações, do estado de grande atraso e opressão para sociedades desenvolvidas, prósperas e tolerantes. E o que era até há pouco privilégio duma pequena minoria é hoje usufruído por milhões de indivíduos em condições de praticarem o livre pensamento e colaborarem ativa e livremente na sua sociedade. 
 
Mas, infelizmente, há muitos milhões de outros seres humanos que estão ainda longe de usufruir deste bem valiosíssimo. Uns, porque vivem em regimes opressivos onde a liberdade de pensamento e de expressão é proibida e perseguida, outros, onde as crenças religiosas são de tal modo inculcadas às crianças que, mais tarde, se torna impossível qualquer autonomia de pensamento. Frequentemente os dois males andam associados, reforçando o seu poder atrofiante. 
 
No meio disto tudo, o mais lamentável e até revoltante é o espetáculo daqueles que vivendo em sociedades onde o pensamento é livre e onde se podem expressar com toda a liberdade, usem esse poder e essa capacidade, (que adquiriram porque tiveram a sorte de viver em regimes que possibilitaram essa educação e essas práticas) para atacar e diminuir a sociedade onde eles foram educados e puderam alcançar esse nível de autonomia. 
 
Ora, sabendo que esse nível é sempre difícil de alcançar, que só se chegou a este ponto por uma longa e dramática evolução histórica, e à custa de imensas vítimas, é estranho que não percebam o perigo que este bem inestimável corre, e não se sintam incomodados com o serem objetivamente agentes dessa regressão.
 
Muitos transformaram-se em forças ao serviço do obscurantismo, tentando ver cada indivíduo não como um ser pensante mas como uma soldado ideológico ou um guerreiro pela sua (deles) causa, e que só serve para ser posto ao serviço das suas Cruzadas Ideológicas. 
 
É este, hoje, o calcanhar de Aquiles da sociedade ocidental.
 
O que está a acontecer em muitas universidades americanas é uma militância tão feroz por certas causas, que fazem do pensamento livre e autónomo a primeira vítima, sem perceberem que ao escorraçá-lo (assim como aos que o tentam praticar) estão a dividir a sociedade em duas partes antagónicas e irredutíveis, e a destruir a mais nobre e elevada capacidade humana.
 
Além disso, vão simultaneamente criando anticorpos em muitos moderados, que assim se vão radicalizando, por reação, e contra quem, depois, combatem ainda com mais energia ideológica, sem perceberem que, em grande medida, são culpa sua. 
 
Penso que já não há grandes dúvidas de que o sucesso de Trump, na América, e o radicalismo insuportável do Partido Republicano resulta, em grande parte, dos disparates acéfalos dos radicais de esquerda do Partido Democrático, entusiasmadíssimos com todas as questões fraturantes, e a cultura Woke, sem pensarem na incomodidade que causam e na aversão que provocam em grandes camadas da população. 
 
Quando o bom senso deixa de ser praticado, e ao outro nunca é reconhecida razão, estamos muito provavelmente a destruir princípios de honestidade intelectual e de moral, indispensáveis a qualquer sociedade evoluída e equilibrada. Se os outros se transformam em inimigos, a sociedade divide-se em dois campos e em cada lado se persegue o outro como alvo a abater. 
 
Quando toda uma sociedade começa a funcionar, a pensar e a sentir nestes moldes, e os que promovem este estado de coisas o fazem como missão “evangelizadora” só podem ser vistos como inimigos da democracia.
 
É evidente que os tiranos de todo o mundo olham regalados para o espetáculo ocidental, como urubus que, de cima, esperam que os dois pistoleiros em duelo, cá em baixo, na poeira, se matem para o banquete ser mais farto e sem interferências. 
 
João Boavida

11 comentários:

Eugénio Lisboa disse...

Assino por baixo. O Professor João Boavida alude ao calcanhar de Aquiles da democracia que é o facto de um dos seus mais altos valores - a liberdade de expressão - ser aproveitado pelos inimigos delas (democracia e liberdade de expressão), para as minarem por dentro. É astuto, mas é também cobarde e maquiavélico. Mas é essa mesma vulnerabilidade, facilitadora da acção do inimigo, , que constitui o maior título de nobreza
.deste regime político inventado pelos gregos antigos. Arrisca deliberadamente a sua existência, a bem do alto valor da liberdade. Karl Popper indicou um modo de a democracia, in extremis, se defender do atropelo dos bárbaros, o qual remédio só deverá usar-se mesmo in extremis. E é a este extremo que os inimigos da democracia tentam levá-la. Convém pois que ela esteja preparada.
Agradeço ao Professor João Boavida mais este luminoso texto, tão necessário, neste momento de radicalismos perigosos e de casamentos ideológicos impensáveis.

Anónimo disse...

"o mais lamentável e até revoltante é o espetáculo daqueles que vivendo em sociedades onde o pensamento é livre e onde se podem expressar com toda a liberdade" ... pois imagino o quanto J.Assange entre muitos outros, e este último da web summit, revoltam estes dois senhores, que aqui nos oferecem gratuitamente uma maravilhosa de hipocrisia.

Anónimo disse...

Lição de Hipocrisia.

Eugénio Lisboa disse...

Já cá faltavam estes dois pensadores enviesados, chamando aos outros aquilo que eles são. Se é que são dois. Perdoai-lhes porque eles sabem muito bem o que fazem!

Anónimo disse...

«radicais de esquerda do Partido Democrático» é capaz de ser um valente exagero. O Partido Democrático americano é, quando muito, social-democrata. Suponho que o articulista se quererá referir às questões identitárias, mas esse radicalismo vem mais do feroz individualismo americano e do hábito, também muito americano, de compartimentar tudo em caixinhas rotuladas do que de ideais de esquerda, radical ou não. O que já não é de todo exagero é achar que a esquerda europeia está a cair nesse hábito de compartimentar tudo. Um dos males da internet (apesar dos seus muitos lados bons) foi trazer para a Europa as esquisitices americanas.

Carlos Ricardo Soares disse...

Na minha perspetiva, não é de mais realçar a importância e a necessidade do livre pensamento , por todas as razões, apontadas pelo João Boavida e mais algumas, considerando o que de bom se pode associar e obter do livre pensamento e o que de mau acontece quando ele não existe. O livre pensamento é uma aprendizagem de prática individual, exigente e algo incompatível com a economia das relações humanas, num modelo organizacional político-militar cujas funções e objetivos se apresentam anquilosados, o modelo às funções e objetivos e estes ao modelo. Creio que já atingimos aquele ponto dogmático, equivalente ao dos dogmas da religião, em que a religião está para o dogma, como o dogma está para a religião. Ou seja, em linguagem trivial, o dogma sustenta a religião e esta sustenta aquele. Uma mão lava a outra. A minha esperança é que por ação do livre pensamento se consiga interromper o círculo vicioso das estruturas geradoras dos problemas para cuja resolução elas foram criadas e que são a razão de elas existem. O livre pensamento é algo tão rebelde às ordens, sejam quais forem, que é de difícil compreensão e aceitação, onde quer que se manifeste. Quem é que prefere que não estejamos calados se for para discordarmos? A própria democracia não fomenta, nem promove o livre pensamento, pelo contrário. Os partidos políticos são um exemplo de estruturas sociais mobilizadoras e agregadoras de fações. O livre pensamento deveria encontrar nas Universidades o seu espaço por excelência e um terreno fértil, mas sabemos que nem sempre assim é (paradoxalmente, tal como ocorre em democracia, em nome do livre pensamento). Nas artes, em geral, e nas literaturas, em particular, ainda se consegue encontrar quem cultive o livre pensamento, com maior ou menor proficuidade, mas nem aí, onde a liberdade tem amplas possibilidades de se exercer e manifestar, há muitos exemplos. A maior parte dos intelectuais, dos artistas, e das manifestações culturais, infelizmente, aparecem vinculadas a ideologias, religiões, partidos, interesses, políticas, grupos de pertença, organizações.
Paradoxalmente, se a liberdade de pensamento é ilimitada, no sentido em que só tem como limite a capacidade de estabelecer relações, porque não opera no neutro e no indiferente, antes se exerce no mundo e nos sistemas de significações, os seus limites são este mundo e estes sistemas de significações com os quais deverá interagir e dialogar. Não há pensamento livre que não adote uma perspetiva, ou que adote todas as perspetivas. A liberdade de pensamento tem estes limites inerentes à natureza do próprio pensamento e tem todos os outros que resultam das competências, nomeadamente discursivas, da lucidez e clarividência crítica, da formação, da educação, da cultura, das crenças, dos sentimentos éticos, estéticos, do sentido de humanidade e dos hábitos comportamentais, de ser e saber estar. É nestes limites que o paradoxo sobressai, porque o indivíduo, por mais informado e capaz que seja de pensar livremente, mais consciente se torna de que o que verdadeiramente importa não é pensar (livremente), mas pensar o que deve pensar e como deve exprimir ou realizar o seu pensamento, e isto nem sempre é fácil, mesmo quando é possível numa sociedade que consagra o livre pensamento.

João Boavida disse...

Meu caro Amigo
Agradeço, mais uma vez, a sua colaboração sempre esclarecida e inteligente. O pensamento verdadeiramente livre será um ideal. Não há pensamentos verdadeiramente livres porque sempre estão, de algum modo, condicionados. Mas há um processo de libertação das coações, há aprendizagens que se podem fazer, e ambientes onde se procura pensar com autonomia, e onde não se restringe nem persegue o outro por pensar diferente de nós. Há diferenças muito grandes na escala da liberdade de pensamento em função dos lugares, dos regimes políticos e das religiões dominantes. As democracias não são perfeitas, muito menos os partidos, mas onde podemos expressar as nossas opiniões certamente que somos mais livres do que numa autocracia, ou teocracia qualquer onde não as podemos expressar, ou, se o fizermos, arriscamo-nos fortemente. Há obviamente sociedades muito mais livres que outras, e até são as mais evoluídas, humanas e progressivas. Portanto, há cidadãos com uma liberdade de pensamento que noutros lugares é impensável. Por isso, trabalhar para acabar com as sociedades livres e não perder nenhuma oportunidade para avantajar os seus defeitos esquecendo que, apesar de tudo, têm muitíssimo menos que as outras formas de organização política, e sabendo todos o que nos espera, se algum dia conseguirem destruí-las, é muito mais que incompreensível, tem algo de satânico.

Carlos Ricardo Soares disse...

É uma bela utopia a do indivíduo livre pensador, ou a de uma sociedade em que os indivíduos pensam livremente, fora das caixas de sentido, de significado e de valor dos grupos, das tribos, das seitas, dos partidos, dos exércitos, das igrejas, dos tribunais, das polícias, e das moedas, enfim. Mesmo que tal, por hipótese, fosse momentaneamente possível, o desamparo em que isso deixaria o indivíduo seria fatal para ele. Na realidade, faz todo o sentido e tem todo o interesse apelar a que se pense autonomamente, lucidamente, esclarecidamente, pela própria cabeça, criticamente, justamente, mas não tenho ilusões quanto ao facto de que só o conseguiremos dentro de limites muito estreitos, que são os da visão que nos é facultada, ou que temos ensejo de adotar, no sistema de referenciais disponíveis e de possibilidades. Se, por exemplo, eu tivesse de usar uma pasta dentífrica apenas com base naquilo que eu sei sobre o produto concreto, ficaria paralisado entre confiar no que me disseram e verificar se o que me disseram merece credibilidade. O que não é aceitável é que, aproveitando-se sistemática e politicamente desta condição de dependência dos indivíduos relativamente aos grupos, estes os façam crer que é do interesse deles comportarem-se de qualquer modo que, em condições de não dependência, eles não se comportariam. Neste ponto, o apelo e a defesa do livre pensamento é no sentido de salvaguardar o indivíduo de sujeições físicas, ideológicas, morais e intelectuais, que o reduzem a mero instrumento de poderes dos quais ele não pode libertar-se.
A questão dos limites até onde é legítimo e eticamente admissível que o indivíduo ceda a sua liberdade e a questão dos limites até onde é legítimo e eticamente admissível que a sociedade, o coletivo, o Estado, restrinja a liberdade do indivíduo, são duas faces da mesma moeda: os seres humanos são indivíduos, qualquer grupo é constituído por indivíduos e o livre pensamento é individual.

Anónimo disse...

 PENSAMENTO LIVRE DE HUMANIDADE

"E os que defendem o povo palestiniano, esquecendo-se de que faz parte deles o HAMAS" Eugénio Lisboa

Agora a versão do Discípulo que desde tenra idade seguiu os ensinamentos do seu mestre Eugénio Lisboa.

"Desta vez foram alguns palestinianos que começaram a guerra" Marcelo Rebelo de Sousa

É o mesmíssimo pensamento livre de HUMANIDADE.

Discípulo e Mestre em sintonia na aceitação da barbárie, e do GENOCÍDIO.

Anónimo disse...

Pois! ... já que fala em algo de satânico lembro que o povo palestino está a passar pelo INFERNO aqui Terra simplesmente porque há quem tenha os mesmos pensamentos livres de Eugénio Lisboa e de Marcelo Rebelo de Sousa.

O satânico, pelo que leio do que escreveu, parece só ser perigoso se nos atingir a nós próprios.

Sim, hoje o INFERNO está em GAZA, já morreram mais de 4000 crianças às mãos de homens criminosos que vivem no mundo do pensamento livre, com o consentimento, a indiferença e a covardia do resto do mundo onde há as virtudes do pensamento livre.

Eugénio Lisboa disse...

A barbárie e o genocídio estão dos dois lados: Israel e o HAMAS. É curioso que os Anónimos e Cia nunca mencionem o HAMAS como bárbaro, obscurantista e genocida. É só Israel. Este Islamo-esquerdismo de uma certa esquerda, além de imbecil é suicida. Eles esquecem-se de que se estão situando como defensores de uma religião que pretende dominar o mundo e dar aos "infiéis" o mesmo tratamento que o Irão costuma dar. Qualquer aliança política com gente como a do Islão terá o mesmo resultado que tiveram os soldados soviéticos no Afeganistão.: se gostam disso, pois comam-no.
Considero horrível, inumano e totalmente repugnante o que está a acontecer ao povo palestiniano, mas isso tem dois grandes promotores: Israel e o HAMAS, que é um bando de assassinos fanáticos. Apontar o dedo a Israel, omitindo o HaMAS é deshonesto, infame e suicida. Mas cada um come do que gosta. A diferença entre mim e este Anónimo é que eu tenho respeiton pelo pensamento claro e frontaql e o Anónimo busca os caminhos manhosos e tortuosos. E o pior é que o faz de boa "consciência tranquila", como costumam fazer os corruptos, sempre que apanhados a cometer delitos. Trapacear com o pensamento não é menos grave do que trapacear com dinheiro. E nunca se esqueça de que o HAMAS foi ELEITO.

NOVOS CLÁSSICOS DIGITALIA

Os  Classica Digitalia  têm o gosto de anunciar 2  novas publicações  com chancela editorial da Imprensa da Universidade de Coimbra. Os volu...