Meu posfácio ao livro de Manuel Antunes, "Uma vida com o coração das mãos", que acaba de sair na Gradiva:
Se o leitor chegou até aqui é porque leu este livro. E, se o fez, deve, como eu, estar grato ao autor por ter partilhado connosco as suas memórias de uma vida intensamente vivida em favor dos outros. Há, numa vida, coisas que só o próprio pode contar e que ficariam injustamente ignoradas se não tivessem sido transmitidas.
Uma Vida com o Coração
na Mãos, do Professor Doutor Manuel Antunes, nome maior da
medicina portuguesa, é um documento imprescindível não apenas para conhecer o
seu notável percurso pessoal e profissional, mas também para conhecermos melhor
a história do nosso país na segunda metade do século XX e nas primeiras décadas
do actual. Fomos – somos – um país de pessoas que, por razões variadas, em
grande número se espalharam pelo mundo. Uma pequena parte delas voltou,
procurando, dentro das suas possibilidades, melhorar o país, com base nos
conhecimentos e na experiência adquiridos lá fora. Todas essas pessoas tiveram
percursos singulares e com cada uma delas podemos aprender a ser melhores.
Parecia, em princípio, improvável que um rapazinho nascido de uma família modesta na Memória, um pequeno lugar no extremo interior do município de Leiria, chegasse, aos 40 anos, a Professor Catedrático de Medicina da Universidade de Coimbra e a Director de Serviço de Cirurgia Cardiotorácico dos Hospitais da Universidade. Aos seis anos, com a mãe e um irmão, rumou para Moçambique, onde o pai já estava há quatro anos, e, entrando então na escola, completou toda a escolaridade necessária para se tornar médico. Só depois de terminado o curso se casou com uma jovem curiosamente também da Memória.
Foi, aos 27 anos, obrigado pelas contingências da história, a
transferir-se, com a família, para Joanesburgo, na África do Sul, onde se
praticava cirurgia cardíaca da mais alta qualidade (esse país é a terra do famoso
Doutor Christiaan Barnard!), e onde pôde, por isso, aprender e praticar o exigente
ofício de cirurgião cardíaco. Em boa hora, Coimbra o chamou, pois foi graças a
ele que foi montado nessa cidade um moderno Serviço de Cirurgia Cardiotorácica.
Se já tinha nome, o Doutor Manuel Antunes ganhou aí renome.
Por azar da minha saúde – uma
pneumonia prolongada forçou a uma descorticação da pleura, nada de grave
comparado com a situação de alguns pacientes que lá vi – tive, há mais de uma
década, de passar por esse Serviço como doente. E posso testemunhar por
experiência directa que, bem cedo, se me não falha a memória logo pelas 7h da
manhã, o Doutor Manuel Antunes já percorria as camas para se inteirar sobre como
estavam os doentes. Um ministro falou de «manuelantunização» e, se isso
significa rigor e cuidado, só posso dizer que o referido Serviço estava bem
«manuelantunizado». O «estrangeirado» estabeleceu um modelo organizacional num
país bastante avesso a organização. Mas nessa organização havia a
imprescindível compaixão.
A sua Última Lição, há cinco
anos, proporcionou a escrita destas memórias a um cirurgião, que teve nas mãos,
com impressionante sucesso, cerca de 50 mil corações. Tendo dedicado toda a sua
carreira ao sector público, entre nós no Serviço Nacional de Saúde, o autor continua,
aos 75 anos, activo, agora no sector privado, a ajudar quem precisa dos seus
serviços, uma actividade a que ele acrescenta outras que considera serem sua
obrigação social e moral. Como ele diz, continuará «até que as mãos lhe
tremam».
Qual foi o segredo do seu tão bem-sucedido
percurso? Julgo que ele reside na assumpção plena da definição de médico que
foi feita por um outro cirurgião, este do cérebro, o Doutor João Lobo Antunes, bom
amigo dele e meu. O Doutor Manuel Antunes cita uma frase do Doutor João Lobo
Antunes que vale a pena repetir aqui:
«Médicos - Médicos - mulheres e homens dedicados e íntegros, imbuídos do sentido do dever e do sacrifício, corajosos na luta, humildes na vitória, inconformados na derrota; devotados à verdade e à excelência intelectual, dotados de sentido de humor e das conveniências, aptos a trabalhar em harmonia com outros – iguais ou diferentes, tudo temperado por uma profunda compaixão (…)»
Como bem disse Rodrigo de Castro,
um médico português de origem sefardita que trabalhou em Hamburgo, na
Alemanha, no seu livro O Médico Político (1614), um médico não pode ser
apenas alguém que sabe medicina. Tem também, e primeiro que tudo, de ser um «homem
bom», um homem que se dedica com gosto a ajudar os outros, minorando ou
anulando o sofrimento e a angústia que não raras vezes afligem a nossa frágil condição
humana. «Dedicação e paixão» tem sido e continuará a
ser o lema da vida do Doutor Manuel Antunes.
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